Brooks Hansen, o autor de The Chess Garden (1995), é um autor mais próximo do mercado
editorial mainstream do que da fantasia
e ficção científica. The Chess Garden foi considerado um dos “Livros Notáveis” do
ano pelo New York Times, tal como outros três livros seus (Boone, 1990; Perlman’s Ordeal, 1999; The
Monsters of St. Helena, 2003).
É uma história que transcorre em dois planos – o mundo
real, onde tudo acontece como num romance qualquer, e um plano de Fantasia onde
o protagonista tem acesso (e nós com ele) a um mundo radicalmente diferente do
nosso, e acompanhamos suas aventuras nesse mundo bizarro.
O Dr. Gus Uyterhoeven é um médico holandês do século 19,
cuja vida científica é descrita de maneira envolvente: nascido em 1824, ele tem
uma crise intelectual com a morte do pai, interessa-se por biologia, filosofia,
homeopatia, e em certo momento adquire dois “vícios” não muito graves: o xadrez
e o ópio. Apaixona-se pela filha de um barqueiro nos canais dos Países Baixos,
e lhe faz a corte até casarem e terem um filho. Perdem esse filho, e moram em
várias capitais da Europa até se transferirem para os EUA – mais precisamente para
Dayton (Ohio).
Ali, instalam-se numa casa espaçosa, com um enorme
jardim, e o Dr. Uyterhoeven resolve transformar esse jardim no Clube de Xadrez
aberto a todas as pessoas da cidade. Como ele coleciona jogos de xadrez, jovens
e adultos de Dayton passam a frequentar o Jardim e usar as dezenas de
tabuleiros que ele possui. O Doutor e sua esposa Sonja tornam-se pessoas
queridas e respeitadas por todos.
Toda esta parte da narrativa é contada como uma narrativa
realista do século 19, sem nada de fantástico, mas com um notável senso de
ambiente cultural e filosófico, ao descrever as polêmicas científicas em que o
Doutor se envolve; e com muita finura psicológica retratando seu relacionamento
com esposa, amigos, colegas, família.
Por volta de 1901, o Dr. Uyterhoeven, já com mais de 70
anos, resolve surpreendentemente viajar para a África do Sul, onde os ingleses
estão em guerra com os “bôeres” locais (colonos descendentes dos holandeses),
porque acha que pode ser útil, por ser holandês e médico. Pega um navio e ruma
para lá.
Começa então, após essa viagem, a parte fantástica do romance. O Doutor começa a enviar para D. Sonja uma série de cartas, nas quais revela que, na verdade, empreendeu esta viagem por ter encontrado entre seus documentos, de modo misterioso, o mapa de uma região fantástica chamada Os Antípodas, e decidiu-se a descobri-la e desbravá-la.
Nesse continente imaginário ocorrem suas aventuras daí em
diante, narradas em doze cartas que D. Sonja lê em voz alta, uma a uma, à
medida que chegam, para seus vizinhos de Dayton e suas crianças, em sessões
coletivas no Jardim do Xadrez, reunindo dezenas de pessoas, todas acompanhando
fascinadas as aventuras surreais do Doutor, um homem sobre cujo caráter,
inteligência e credibilidade não paira nenhuma dúvida.
Logo nas primeiras cartas do Doutor, descobrimos que esse
continente fantástico é habitado basicamente por peças de jogo: peças de
xadrez, de damas, de dominó, de jogo de dados, de gamão, etc. Essas peças, contudo, são também pessoas:
vivem, pensam, falam, têm sentimentos. Podem
ser comparadas às cartas de baralho de Alice
no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, uma influência marcante neste
livro.
Perambulando por esse mundo, o Dr. Uyterhoeven faz
amigos, desafetos, corre perigos, mete-se na vida alheia, encontra a todo
instante situações e conflitos inexplicáveis, e se aprofunda cada vez mais na
vida daquelas criaturas, que em geral o recebem bem e o ajudam como podem.
O livro de Brooks Hansen não é um desses romances que trazem revelações surpreendentes ou desfechos trovejantes em suas últimas páginas. É o livro horizontal, sem saltos acrobáticos de dramaturgia. A história de um homem aparentemente comum, mas com um universo mental fora do comum, o que não o impede de ser querido e respeitado por todos. Sua história é uma história de revelações e descobertas íntimas, que trazem uma luminosidade gradual à história contada.
Um dos aspectos mais eficazes do romance é a estrutura de
seus capítulos. O resumo que fiz acima está por ordem cronológica, “de A a Z”,
como se diz. O livro se abre com um excelente capítulo inicial com a morte da
Sra. Uyterhoeven, uma inundação na cidade de Dayton, e a releitura das
primeiras cartas, que a família guardava cuidadosamente. Daí em diante, os
capítulo vão se alternando: a biografia do Doutor, e as cartas dos Antípodas,
duas séries paralelas de revelações que mais de uma vez se explicam ou se
enriquecem mutuamente.
Essa alternância entre a narração do presente e a
narração do passado do personagem é um recurso interessante, que lembro de ter
encontrado em Os Despossuídos (Ursula
Le Guin, 1974), cujos capítulos se alternam desta forma. Um efeito curioso
disto é que estamos vendo a história do meio para o fim (a narração do
presente) e ao mesmo tempo do começo para o meio (a narração do passado), de
modo que há uma forte compulsão, fechado o livro, a ler tudo de novo.
Que cartas são essas que o Doutor manda para casa? “Na
vida real” ele está presenciando a Guerra dos Bôeres, na África do Sul. Que
Antípodas são esses onde ele foi parar?
A fascinação pelo xadrez explica uma parte dessa fantasia
do doutor. Outra parte pode ser explicada pela sua descoberta dos escritos de
Swedenborg. Como o Doutor, o sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772) foi ao mesmo
tempo um cientista (foi autor de numerosas invenções tecnológicas) e um
visionário, que afirmava visitar com frequência o mundo dos espíritos, anjos e
demônios.
Brooks Hansen parece sugerir que o Dr. Uyterhoeven partiu
para a guerra com o intuito de adentrar pouco a pouco o reino da morte,
conforme o via o místico sueco.
Para Swedenborg (valho-me aqui do artigo de Jorge Luís
Borges em Prólogos con un Prólogo de
Prólogos, Buenos Aires, Torres Aguero, 1975), quando um indivíduo morre
pensa que ainda está vivo, e é transportado para um mundo semelhante a este de
cá – um mundo que hospeda em alguns trechos o Paraíso e em outros o Inferno.
Julgando que continua aqui na Terra, o morto recente (e desavisado) faz suas
escolhas.
Diz Borges:
Se o morto é mau, agradam-lhe o aspecto e o trato dos demônios, e não
tarda a juntar-se a eles; se é um justo, escolhe os anjos. Para o
bem-aventurado, o orbe diabólico é uma região de pântanos, de cavernas, de
choças incendiadas, de ruínas, de lupanares e tabernas. Os réprobos não têm
rosto, ou têm rostos mutilados e atrozes, porém acreditam-se formosos. O
exercício do poder e do ódio recíproco é sua felicidade. Vivem entregues à
política, no sentido mais sul-americano da palavra.
(trad. BT)
O Além é uma expansão do mundo que coligimos para nós
mesmos ao longo de nossa vida; e isto parece ser a mesma percepção que inspirou
a Gilberto Gil os versos:
Basta ver-te em teu mundo interno
pra sacar teu inferno: teu inferno é aqui.
(“Pessoa Nefasta”)
Se isto se aplica ao romance de Brooks Hansen, os
Antípodas em que o Dr. Uyterhoeven mergulha (enquanto seu corpo físico
atravessa a Guerra dos Bôeres) são o seu Paraíso particular. Um mundo onde a
vida está sempre sujeita ao mistério, ao absurdo, ao inexplicável; um jogo
cujas regras passamos a vida tentando descobrir.
Ironizando seus colegas acadêmicos deterministas, o
doutor diz a certa altura:
Parece haver uma sutil mas profunda confusão que martiriza todos os que
partilham a crença determinista, metodista e racionalista: a confusão entre o
desejo de observar a agitação do universo – o que é perfeitamente
admirável – e o desejo de explicá-la
– o que é patentemente absurdo. (The
Chess Garden, pág. 144, trad. BT)
Os jogos em geral constituem ilhas de coerência onde o
absurdo penetra com dificuldade: mesmo os jogos que envolvem a sorte o fazem
sob regras estritamente controladas. O jogo nos dá uma ilusão de segurança, de
praticar uma atividade cujos propósitos e limites estão definidos com clareza,
o que não se pode dizer da Vida.
No mundo dos jogos, conflitos e decepções e até
violências não estão ausentes; mas esse mundo, feito de conjuntos de regras,
consegue estabelecer um limite entre ordem e caos.
Ele não via a história do pensamento e do conhecimento como um registro
do esclarecimento, mas um desfile de planilhas e esquemas em constante mudança
e em constante disputa entre si, e nenhum deles era capaz de definir uma idéia
sem ao mesmo tempo obscurecer outra.
(p. 121, trad. BT)
É o tipo do livro capaz de gerar em torno de si uma
espécie de fã-clube de gente disposta a analisar cada um de seus personagens e
episódios para descobrir as correspondências entre o mundo real do Doutor e o seu
mundo de fantasia – tal como vemos, por exemplo, em O Mágico de Oz, onde grande parte da população de Oz é um reflexo
das pessoas com quem Dorothy convive na sua fazenda do Kansas.
O Doutor é um cientista e um visionário, ao mesmo tempo,
e produz ao longo de sua vida uma relação tensa, esticada, entre realidade e
imaginação, como um elástico que mantém unidas duas formas de ver que tendem a
se afastar uma da outra. Ou seja, mais ou menos o que a literatura fantástica
(ou literatura “do insólito”, “da imaginação”, “de fantasia”, etc.) procura
fazer.
Outra coisa em que vim a acreditar é que a verdade nos é concedida
exatamente na medida e na forma apropriadas a cada um de nós, individualmente. Além
disso, creio que a tendência da verdade não é, como pode às vezes parecer,
sumir e depois mostrar-se novamente. A tendência da verdade é manter-se
constante. Desse modo, quando um homem se dispõe a fitar de frente o que quer
que esteja à sua volta – seja isto o que fôr – ele encontrará a verdade ali, à
sua espera. Fui claro?
(p. 413, trad. BT)