O “Provence” é um transatlântico rápido, confortável, comandado pelo mais afável dos homens. A sociedade mais seleta achava-se aí reunida. Travavam-se relações, organizavam-se divertimentos.(Arsène Lupin, Ladrão de Casaca, Ed. Vecchi, 1951, trad. (João Távora)
Naquele hotel da rua do Catete havia uma sociedade eclética, mas toda bem colocada. (...) Havia eletricidade em todos os quartos, um aparelho de duchas no terraço de cima e um cozinheiro chinês.
Lady Jerland, amiga de Miss Nelly, entrou correndo. Estava fora de si. Cercamo-la, e só depois de muito esforço ela conseguiu balbuciar:– Minhas jóias, minhas pérolas!... Roubaram tudo!...Não, não haviam roubado tudo, como verificamos logo em seguida. Coisa muito curiosa: tinham escolhido!
(E)u que nessa noite não saí de casa, ao subir antes do chá, encontrei no corredor apenas o velho Melchior muito abatido, fechei a porta por dentro, dormi e no dia seguinte dei por falta do meu porte-monnaie de prata. Coisa estúpida, afinal! O gatuno – porque era o gatuno, não havia dúvida – o gatuno ou farsista sem graça deixara a minha carteira e deixara até os níqueis, certo para mostrar que aquilo era seu, que aquilo estava ali porque ele voltaria.
O “Provence” foi esquadrinhado minuciosamente. Examinaram-se todos os camarotes, sem exceção, sob o pretexto, muito justo, de que os objetos deviam estar escondidos em algum lugar, salvo no camarote do culpado.
O medo prendia as senhoras no quarto. Ninguém saía sem necessidade urgente, com receio de ser apontado pelo menos um segundo, como o fora o Antônio. Éramos os forçados daqueles crimes, tínhamos que chegar à tragédia. O gerente, lívido, armava uma polícia interna ferocíssima, os criados serviam – coitados! – com uma humildade dolorosa, temendo a suspeita, o ex-vice presidente da ex-missão do México teimava em escrever ao chefe de polícia, em revistar os quartos.
Horas depois rebentava o escândalo. Pela manhã, madame de Santarém dera queixa por lhe terem roubado um face à main de madrepérola com incrustações de ouro sob desenhos, dizia ela, de um pintor húngaro. E o gerente pôs fora o criado Antônio, porque a ele faltavam também passadores de guardanapo – dois, três por dia. Antônio saiu protestando, furioso.
E, de fato, as investigações não deram resultado algum, ou, pelo menos, os que deram não corresponderam ao esforço geral. O relógio do comandante desapareceu.Furioso, o comandante redobrou seus esforços e começou a vigiar Rozaine ainda mais de perto, interrompendo-o diversas vezes. No dia seguinte, ironia encantadora, encontraram o relógio entre os colarinhos postiços do imediato.
Passamos assim uma semana e, com grande pasmo nosso, madame de Santarém e a atriz Zulmira Simões, no mesmo dia, à mesma hora, encontraram em cima do lavatório, uma o seu face à main, outra o seu berloque.– É uma aventura! É um caso de diabolismo! – sentenciava o negociante tuberculoso. O hotel convulsionava-se.
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Arsène Lupin entre nós! O inalcançável ladrão cujas proezas enchiam as páginas dos jornais havia meses! A enigmática personagem com quem o velho Ganimard, nosso melhor policial, se tinha empenhado naquele duelo de morte, cujas peripécias se desenrolavam de maneira tão pitoresca! Arsène Lupin, o caprichoso gentil-homem que só operava nos castelos e nos salões e que numa noite, tendo penetrado em casa do barão Schormann, partira de mãos vazias, deixando o seu cartão com estas palavras: “Arsène Lupin, ladrão de casaca, voltará quando os móveis forem autênticos”. Arsène Lupin, o homem dos mil disfarces: chofer, tenor, “bookmaker”, filho de família, adolescente, velho, caixeiro-viajante marselhês, médico russo, toureiro espanhol!(“A prisão de Arsène Lupin”)
E João do Rio?
João do Rio não trabalhava num contexto literário de
“narrativas policiais”. Sim, há várias tentativas brasileiras de criar
histórias criminais e/ou detetivescas, naquela época: os habituais suspeitos
são O Mistério (narrativa round-robin de Afrânio Peixoto, Coelho Neto, Viriato
Corrêa e Medeiros e Albuquerque, 1920), O Assassinato do General (1926) e Se Eu
Fosse Sherlock Holmes (1932), ambos também de Medeiros e Albuquerque.
Ou seja, João do Rio pode até ter sido um aficionado do
conto policial estrangeiro (não tenho informações sobre isto), mas certamente
não tinha em 1910 exemplos nacionais em que se espelhar, ou concorrentes
nacionais a quem lançar um desafio.
Por outro lado, ele decerto lia francês. Todo brasileiro com
fumaças literárias lia francês, naquela época, tal como leem inglês os de hoje.
Uma revista da moda como Je Sais Tout era conhecida aqui, tanto que sua possível
contrapartida Eu Sei Tudo começou a ser publicada em 1917.
E não podemos deixar de perceber que um dos contos de Pavor
Dentro da Noite tem o título de “O fim de Arsênio Godard”, o que pode servir
como um argumento a mais a quem procura ecos da obra de Maurice Leblanc na
obra de João do Rio.
“Uma Aventura de Hotel” é um conto policial? Sim, mas
apenas no sentido de que é uma história centrada na prática de um crime (o
furto de objetos valiosos), crime cuja razão de ser é explicada nos parágrafos
finais. Nenhuma reviravolta estonteante como em “A Prisão de Arsène Lupin”. Nenhuma
interferência da polícia, enquanto que, no conto francês, o inspetor Ganimard,
com sua imagem resignada de Jean Gabin, já está presente no conto inaugural da
série.
No conto de João do Rio, a autoria dos furtos é de uma
das damas, que se revela uma cleptomaníaca, sofrida e desorientada, e ao mesmo
tempo descoberta e protegida por um dos seus admiradores no hotel em que vivem.
Os mistérios de João do Rio são mistérios psicológicos, não policiais. São
focados no que a literatura de seu tempo chamava de “nevroses”. É uma mulher
viciada no furto de objetos alheios, assim como em “Dentro da Noite” há um rapaz viciado em
enterrar alfinetes nos braços da noiva e em “A Mais Estranha Moléstia” outro
homem é viciado em sair à rua para sentir os cheiros das pessoas que passam, e
dos ambientes onde penetra.
Do ponto de vista da literatura de gênero, do conto
policial, “A Prisão de Arsène Lupin” de Maurice Leblanc é o que se chama de um
“texto fundador”, uma obra que serve de celeiro de idéias para toda uma obra que
virá depois.
Do ponto de vista da literatura brasileira, “Aventura de
hotel” de João do Rio é um conto pequeno, compacto, sem grandes ousadias de
enredo, mas que se encaixa com perfeição no tipo de literatura que o autor
produzia então. O retrato de um Rio de Janeiro já republicano mas ainda
aristocrático, cheio de nobres endinheirados e ociosos – note-se em alguns
contos do livro a figura do Barão de Belfort, que o prof. Julio França, em seu
posfácio à edição da Bandeirola, interpreta como “a personificação da potência
corruptora da cidade”.
É apenas um hotel nas vizinhanças do Palácio do Catete, e
João do Rio resume no primeiro parágrafo, com olho de jornalista e pena de
escritor, o seu microcosmo:
Naquele hotel da rua do Catete havia uma sociedade eclética, mas toda bem colocada. O proprietário orgulhava-se de ter o senador Gomes com as suas sobrecasacas imundas, o ex-vice-presidente da ex-missão do México, a primeira ex-grande atriz de revista, com o seu cachorro, Mme de Santarém, divorciada pela quarta vez em diversas religiões, o barão de Somerino do Instituto Histórico, um negociante tuberculoso chegado das altitudes suíças com o fardo enorme da esposa, o engenheiro Pereira mais a mulher, mais sete filhos, mais a criada, a notável trágica Zulmira Simões concluindo sua última peregrinação provincial em companhia do elegante Raimundo de Souza, duas senhoras entre viúvas, solteiras ou estritamente casadas, enfim, todo um mundo variado, mas que pagava bem. De resto, o proprietário, como assegurava a ex-estrela de revista, correspondia, isto é, servia com cuidado. Havia eletricidade em todos os quartos, um aparelho de duchas no terraço de cima e um cozinheiro chinês.
Ao almoço era curioso ver toda aquela gente na sala de baixo, ornada de palmeiras e de flores comuns, entre os metais polidos das guarnições das mesas. A sala era baixa, com uma luz baça de recanto submarino. Parecia um aquário.
São duas faces igualmente legítimas da literatura da Belle
Époque, e a literatura brasileira já olhava mais na direção de Paris do que na
de Lisboa.