terça-feira, 29 de abril de 2025

5174) As dúvidas do tradutor (29.4.2025)




Existe um princípio na arte da tradução literária segundo o qual a gente não traduz apenas texto, traduz contexto também. 
 
Isso se dá pelo fato (começam a ressoar as trombetas do Arauto do Óbvio) de que todo texto literário traz um contexto enrolado como um casulo em volta de si. 
 
Não são apenas as palavras que estão no papel e o seu sentido imediato (denotativo) e as suas nuances impalpáveis (sentido conotativo). 
 
Traz também consigo um emaranhado de hábitos pessoais do autor, hábitos coletivos do mercado editorial que ele tinha em mente ao escrever (em que país ele estava escrevendo, em que ano, em que século?), hábitos coletivos e muitas vezes inconscientes do público leitor em vista. 
 
Quando revisamos um livro, com a ajuda de um editor, um colega escritor, um professor de oficina, etc., detalhes assim emergem com frequência. 
 
-- Você escreveu aqui: “naquele instante, uma angústia kafkeana se abateu sobre mim: e se alguém estivesse hackeando minha conexão e invadindo meu computador?"
-- Sim, e o quê que tem?
-- O leitor sabe o que é angústia kafkeana, sabe quem foi Kafka?
-- Geralmente sabe. Kafka é um dos autores mais comentados do século 20. O leitor pode não ter lido um livro dele, mas tem uma vaga idéia do que o adjetivo quer dizer. Angústia, medo, paranóia, complexo de perseguição... E se eu uso o verbo “hackeando”, por que não posso usar o adjetivo “kafkeano”?
-- Ah, todo leitor hoje em dia sabe o que é hackear. 
 
Que leitor hipotético é esse? Não sabemos ao certo, pode estar em qualquer ponto do Brasil, pode ter qualquer idade, qualquer escolaridade. Ao escrever, estamos totalmente no escuro, guiados apenas por vagas informações estatísticas, pelo hábito de frequentar livrarias, por conversas, etc. 
 
De vez em quando estou traduzindo um autor e fico de olho nos cacoetes dele e nos possíveis cacoetes de seu público, do mundo editorial onde ele trabalhava. 


(Edgar Allan Poe, "The Masque of the Red Death") 


Já traduzi contos (Edgar Allan Poe é um bom exemplo) em que um parágrafo único se alongava por duas ou três páginas, transformando cada página dessas num bloco compacto de palavras, sufocante, maciço. Isso é proposital? Deve ser mantido assim na tradução? 
 
Alguns autores fazem isso de propósito, conscientemente, por uma escolha de estilo. “Quero o parágrafo assim, para produzir no leitor o efeito X ou Y.”  
 
É uma decisão autoral que deve ser respeitada. Eu não quebraria ao meio um parágrafo longo de James Joyce ou de Virginia Woolf. Sei que tudo ali tem um objetivo. 




(Edgar Allan Poe, por Mario Bag)

 
E quanto a Poe? Poe escrevia em jornal no começo do século 19, e o objetivo ali era preencher a página de jornal com a maior quantidade de texto possível. Ver as imagens das publicações originais de Poe nos dá uma idéia do que era a leitura de jornal daquele tempo – uma primeira página de jornal coberta de texto como um campo de futebol é coberto de grama. Sem uma foto, um desenho, uma ilustração sequer. Texto texto texto texto texto. 
 
Poe sabia que o leitor de seu conto estava acostumado com parágrafos assim, porque na imprensa do seu tempo tudo era diagramado assim. 
 
Uma editora muito conscienciosa me disse: “Vamos quebrar esse texto. É cansativo. O leitor de hoje prefere uma página mais clara, parágrafos mais curtos”. 
 
E naquele latifúndio de parágrafo era possível, sim, encontrar um ponto de inflexão, uma mudança de assunto, uma mudança de tom, onde era possível “dar um Enter” e começar um parágrafo novo logo abaixo, dando um certo “respiro” ao texto, sem grande prejuízo ao ritmo narrativo. 



 
Provavelmente o próprio Edgar Poe sabia, também, que na Antiguidade e na Idade Média os velhos pergaminhos eram escritos em texto corrido, todas as letras emendadas umas às outras e que de século em século foram sendo conquistados importantes avanços: um espaço em branco separando cada palavra das outras... letras maiúsculas indicando começo de texto ou nomes próprios... sinais de pontuação para indicar as inflexões mais significativas da palavra falada... 
 
O modo de “sinalizar” o texto muda de época para época, de país para país. Uma variação interessante na qual fiquei de olho a vida toda é o uso de travessões ou de aspas para indicar mudança de interlocutor no diálogo. 
 
Aqui no Brasil usamos travessões: 
 
-- Acho que vou dar uma volta. 
-- Vai aonde?... 
-- Vou ali no bar de Genival, ver se encontro a turma. 
-- Vá, mas não demore, porque oito horas a gente vai sair para ir ao teatro. 
-- Ih, é mesmo. Talvez seja melhor esperar, então. 
-- Por mim tudo bem. Só não quero que a gente se atrase. 
 
Todo mundo entende esse diálogo banal entre duas pessoas. Cada travessão indica novo interlocutor. O mercado editorial dos EUA, contudo, usa aspas. Lembro de um comentário antigo de Robert Silverberg. Ele pegou uma tradução italiana de um romance seu, e achou parecido com “uma lista de lavanderia”, porque as falas dos diálogos vinham precedidas por travessões. 
 
Aqui no Brasil sempre usamos travessões, e nos anos 1980 Rubem Fonseca era considerado meio excêntrico (e “americanizado”) porque insistia em usar aspas. Hoje, há uma geração de pessoas que só leem em inglês, e estranham os travessões brasileiros. 
 
Num livro editado nos EUA o diálogo seria marcado com aspas, assim: 
 
“Não vamos atrasar, fique tranquila.” 
“Claro. Mas você sabe – teatro começa na hora.” 
“Ah, nem sempre. Já vi meia hora de atraso”. 
“Eles podem atrasar, a gente não. Detesto entrar numa fila de poltronas com a peça já começada, e a gente no escuro, pisando nos pés dos outros, feito idiota: licença... licença... desculpe...” 
 
Uma coisa que me incomoda de vez em quando, em diálogo, é o autor que sinaliza excessivamente quem falou e quem replicou. Por mim, mesmo num diálogo comprido, basta deixar claro de início quem é um e quem é outro, e confiar que o sentido das frases explique quem foi que disse aquilo. 
 
Mas às vezes o autor sinaliza assim: 
 
-- Qual é mesmo a peça que a gente vai ver? – perguntei. 
-- “Romeu e Julieta” – respondeu ela. 
-- Você só gosta de peça de amor – gracejei. 
-- E você só gosta de ação e aventura – retrucou ela. 
-- Pode ser. “Macbeth” é muito boa. – observei. 
 
Esses pequenos comentários depois de cada fala servem a dois propósitos. O mais simples é este que estou comentando aqui: deixar claro quem disse o quê. O segundo é indicar uma nuance de tom de voz, de intenção, etc. 




Qualquer manual de escrita criativa aborda esse problema. Em inglês, o pessoal chega a aconselhar que o autor não dê a um personagem o nome de “Fred”, para não finalizar esses diálogos dizendo: “ – It’s time to go – said Fred”. Um eco desagradável. Melhor chamar o rapaz de Frederick. 
 
Mais importante do que isto, contudo, é a repetição constante do “ele disse... ela disse... ele disse...”. No tempo dos escritores de pulp fiction, nas paleozóicas décadas de 1930, 1940, por aí, os autores (e seus respectivos tradutores) começaram a querer substituir o “ele disse” por qualquer coisa que lhes passasse pela cabeça. Começou um tal de “ele pontuou”, “ela redargüiu”, “ele obtemperou”, “ela balbuciou”... 
 
Isso virou uma verdadeira diversão, e cada escritor ficava tentando encontrar sinônimos mais rebuscados para o verbo “dizer”, chegando a exemplos como: 
 
“Oh my God, the ship is sinking!...”, ejaculated the Captain. 
 
Propus essa questão a um professor meu, anos atrás. Ele balançou a cabeça e falou: 

-- Não se preocupe. Diga ‘ele disse’, ‘ela disse’. É invisível. O leitor não vai reclamar de repetição, a não ser que você repita isso em todas as falas... Esse é o problema a evitar. 
 
Tinha razão. Vamos imaginar um diálogo entre três pessoas. 
 
Acordamos às 7 da manhã para viajar. Íamos eu, meu irmão Francisco, e meu pai. Fomos para a garagem, papai abriu o carro e começamos a nos organizar. 
-- Mochilas na mala do carro – disse papai. – Dentro, só o que precisarem durante o trajeto. 
-- Vou pegar minha garrafa de água, somente – disse eu. 
-- Eu levo meu táblet – disse Francisco. 
-- E na mochila, têm mudas de roupa suficientes? Outro par de tênis? 
-- Sim.
-- Eu estou levando só um – disse eu.
-- Tudo bem, mas se chover pode dar problema. Estão levando casacos?
-- Faz frio lá? – disse Francisco.
-- À noite esfria um pouquinho.
-- Estou com uma camisa de lã.
-- Pode servir. E você?
-- Um casaco jeans, acho que basta – respondi.
 
Este diálogo está bem sinalizado, porque não é preciso dizer “Fulano disse” em todas as linhas: pelo fluxo da conversa, dá para saber quem está falando. 
 
Como escritor, eu quebro meu galho da maneira mais simples possível. Como tradutor, me sinto no direito de colocar uma rubricazinha dessas que não tem no original, mas que eu sinto necessária. 
 
Outro exemplo improvisado: 
 
-- O Flamengo jogou até bem, hoje – disse meu amigo João, ligando o motor e pegando o fluxo de saída do estádio. 
-- Jogou a conta do chá – disse eu. – Mas deu pro gasto. 
-- O problema continua sendo essa defesa. Aquele gol deles... pelo amor de Deus. 
-- Todo jogo a gente leva um gol assim. 
-- Cruzou bola na área, eu cruzo os dedos. 
-- Isso é falta de treino. 
-- Sim, mas tem que jogar toda quarta, todo domingo... 
-- Toda semana. 
-- Toda semana. Quem tem tempo de treinar? 
-- Esse calendário é uma maluquice. 
-- Outra coisa: o time faz um gol e recua. 
-- É o mesmo problema. Time cansado. 
-- Recua, chama o outro pra cima. 
-- Pelo menos tem a chance do contra-ataque. 
-- Sem velocidade? Time cansado? Aaah...
-- A sorte foi aquele gol de falta.
-- Que nem falta foi.
-- Foi, cara.
-- Foi nada. Choque normal do jogo.
-- Mas a gente mereceu.
-- Sempre merece.
 
Quando eu vejo um diálogo como este, pouco sinalizado, há momentos em que preciso voltar lá no começo e sair separando mentalmente as linhas pares e as ímpares, para saber quem disse o quê. "Por isso," (dizia meu professor) "sinalize de vez em quando para o leitor não se perder". 

Traduzindo um texto assim, eu colocaria em pontos estratégicos um anódino “ele disse”, para ajudar o leitor sem interferir no texto.
 
No exemplo acima, eu (se estivesse traduzindo) mudaria uma ou duas linhas:
 
(...)
-- Outra coisa – disse ele, freiando e esperando a passgem de um ônibus. -- O time faz um gol e recua.
(...)
-- Foi, cara! – insisti.
(...)
 
Sinalizando assim, ninguém se perde. Vencer, vencer, vencer.




(Edição antiga dos "Diálogos", de Platão)  
 
 
 
 
 





terça-feira, 22 de abril de 2025

5173) Curso: "A Narrativa de Mistério e Crime" (22.4.2025)




 
Como todo mundo sabe, costumo ministrar cursos on-line de vez em quando. É uma das atividades remuneradas que me mantêm à tona, e que são de razoável utilidade para pessoas em busca de uma visão geral e comentada sobre um assunto. 
 
Desta vez, a realização do curso é por conta do Instituto Caminhos da Palavra, de meu amigo Henrique Rodrigues, e coube a ele a sugestão: “Que tal um curso seu sobre literatura policial?...” 
 
Foi o que bastou para que eu traçasse o plano de um curso sobre o gênero que celebrizou Conan Doyle (que comecei a ler aos nove anos) e Agatha Christie (que comecei a ler aos dez). Não só estes – milhares, impossíveis de cobrir por igual, mas criadores de um edifício narrativo com muitas alas, muitos andares, muitos blocos, muitos aposentos fascinantes. 




Intitulei o curso A Narrativa de Mistério e Crime. “Policial” é um termo muito questionado pelos críticos. Sugere um tipo de história onde a polícia aparece com frequência, mas nessa literatura isto não é o elemento principal. Que elementos são estes? Para mim, justamente a presença do mistério e a presença do crime, juntos ou separados. 
 
(Sim, porque há histórias de mistério sem crime, e de crime sem mistério.) 



 
“Narrativa”, aliás, engloba não somente a prosa de ficção (o romance, o conto), mas também o cinema, a série de TV e assim por diante. “Narrativa” se refere à nobre arte de contar histórias, e esse gênero é celebrado por muitos teóricos da Literatura como um dos territórios onde é essencial haver narrativa, haver história, haver enredo, haver uma sucessão de peripécias que se causam mutuamente e que geralmente convergem para um desfecho. 
 
E com isto fazem da “narrativa de mistério e crime” um dos principais gêneros da literatura de entretenimento no mundo inteiro. Sem prejuízo, necessariamente, da qualidade literária – porque grandes, imensas obras da literatura mundial foram construídas em cima destes dois conceitos. E no curso, obviamente, falaremos também de Julio Cortázar, Dostoiévsky, Albert Camus, Paul Auster, Rubem Fonseca, Jorge Luís Borges, G. K. Chesterton e muitos outros que tinham fascinação por esse tipo de narrativa. 



 
Uma narrativa inferior? De jeito nenhum. 
 
Com a literatura policial pode-se dizer o que Theodore Sturgeon dizia da ficção científica: “Noventa por cento da ficção científica é lixo. Mas noventa por cento de qualquer coisa neste mundo é lixo.”  São os dez por cento superiores que fazem uma literatura valer a pena; a parte visível do iceberg. 
 
Como toda literatura vinculada a um gênero – um gênero literário não passa de um pacote de convenções, de expectativas – essa literatura pode ser formulaica, repetitiva. Mas o escritor de talento sempre pode se sobrepor a isto. 



 
Dizia Raymond Chandler, o criador do detetive Philip Marlowe: 
 
Um escritor que aceita uma fórmula e trabalha dentro dela não é mais mercenário do que Shakespeare foi pelo fato de que, para prender a atenção do seu público, tinha que incluir uma certa quantidade de violência e de comédia vulgar; não é mais mercenário do que os pintores da Renascença foram por terem de explorar motivos religiosos que iriam agradar à igreja.  Minha definição de mercenário é um homem que permite outra pessoa dizer-lhe o quê e como escrever, um homem que escreve, se se trata de um escritor, não dentro de uma fórmula aceita, mas dentro da definição que algum editor dá sobre essa fórmula. 
(carta a Hamish Hamilton, 1950) 




A planta-baixa do curso, para os que se interessarem, é mais ou menos assim (claro que não vou colocar aqui todos os detalhes; o romance policial abomina o spoiler): 
 
Aula 01
Os elementos básicos da narrativa de mistério e crime: o crime, o detetive, a polícia, a violência, o mistério. 
 
Aula 02
As variantes, ou sub-gêneros: o romance hardboiled, o romance noir, o suspense, o “crime verdadeiro”, a espionagem, a pulp fiction, o romance às avessas, a história de assalto. As formas “aristocráticas” o mistério aconchegante, a história de clube, o crime na casa-de-campo. 
 
Aula 03
O mistério clássico: a narrativa analítico-detetivesca. O subgênero mais elaborado. Os grandes detetives. Os temas clássicos: o quarto fechado, o crime impossível, o grupo isolado, o álibi forjado, a mensagem do moribundo, o objeto desaparecido. 
 
Aula 04
As fronteiras da literatura policial. A literatura como jogo. O “fair play” e o “desafio ao leitor” de Ellery Queen. Os decálogos de instruções. Os criminosos heróis (Rocambole, Arsène Lupin). A metalinguagem do mistério detetivesco (Pierre Bayard). 



Esse rótulo vago e pouco elucidativo, “romance policial”, cobre uma variedade enorme de literaturas muito diferentes entre si, e cada uma delas com seu público. Quem gosta dos enigmas de crimes impossíveis não aprecia necessariamente as histórias sórdidas de crime, típicas do romance noir. Quem gosta de acompanhar as técnicas de investigação da polícia científica nem sempre sente prazer com histórias de detetives particulares que usam os punhos para interrogar suspeitos. 
 
A literatura “policial” tem um lado coletivo (o crime e a investigação como reflexos das tensões sociais e políticas) e um lado intimista (os impulsos de violência que a sociedade precisa reprimir). 
 



Vêm daí as três grandes perguntas que cercam o gênero: “Whodunit? Howdunit? Whydunit?”.
 
Ou seja: Quem matou? Como matou? Por quê matou? E temos à nossa disposição alguns milhões de obras respondendo estas perguntas.
 
Mais detalhes sobre o curso:
 
A NARRATIVA DE MISTÉRIO E CRIME
Instituto Caminhos da Palavra
Aulas via GoogleMeet
Todas as 2as. Feiras de maio: dias 5, 12, 19 e 26 de maio
Das 19:30 às 21:30
Preços e inscrições: https://caminhosdapalavra.com.br/Cursos/a-narrativa-de-misterio-e-crime-com-braulio-tavares/
 


 
 
 





sábado, 19 de abril de 2025

5172) Fingir até fazer (19.4.2025)



 
A língua inglesa tem uma dessas expressões que valem tanto pela simetria sonora quanto pela simetria do conteúdo. 
 
Fake it till you make it, dizem eles. O sentido seria mais ou menos: “finja que sabe fazer, até ser capaz de fazer de verdade”. 
 
Bate com uma frase que cunhei há muitos anos, e que tangencia o mesmo assunto: “Fingir que sabe – mas saber que finge”. Porque tem muito indivíduo por aí que “tira onda” de conhecedor de um assunto (principalmente quando está na frente de gente leiga) mas se entusiasma muito com alguns sucessos parciais, e acaba acreditando que entende mesmo daquilo. 
 
Há um mico à sua espera quando ele menos estiver esperando. 
 
E na verdade o conselho dos ingleses é bom, porque a gente não pode esperar para praticar uma atividade somente quando tiver mestrado, doutorado e pós-doc naquilo. Tem que começar a meter a mão na massa enquanto aprende, porque na verdade a gente nunca pára de aprender, e a certa altura do trajeto tem que começar a fazer, e até mesmo começar a ensinar – sem ter aprendido tudo. 
 
Esse aparente paradoxo deve estar na origem da famosa “Síndrome do Impostor” que acomete muita gente. “Eu não sou músico, juro! Eu apenas faço esses barulhos, as pessoas acham interessante, e até me pagam para isso!” “Eu não sou escritor, mas o público compra meus livros, o que hei de fazer?”. “Eu não interpreto personagem nenhum, eu decoro as falas, subo no palco e sou eu mesmo toda vez.” 
 
Ou o sempre sincero Raul Seixas, que dizia: “Na verdade, acho que eu sou um ótimo ator, porque finjo que sou cantor e todo mundo acredita”. 
 
Raul fingiu até fazer, e tantos e tantos outros, antes e depois dele. 
 
E não se trata apenas de fingir que é artista. Um dos melhores filmes de Roberto Rossellini é Il Generale Della Rovere, onde um sujeito meio picareta, meio charlatão (Vittorio de Sicca), vai parar na cadeia durante uma guerra e ali é confundido (por semelhança física e outros mal-entendidos) com um general que chefia as tropas revolucionárias. Todos começam a se entusiasmar com sua presença. Ele assume o papel, e no final acaba sendo condenado à morte, mas sustenta a farsa até o final, porque percebe o quanto aquela falsa identidade tornou-se importante para manter a fé daqueles prisioneiros. 




Há um belo conto (“Tempest”) da sempre inesperada Karen Blixen (“Isak Dinesen”) em que um grupo de teatro dinamarquês viaja de barco para montar peças de Shakespeare. O barco é atingido à noite por uma tempestade feroz. Uma das atrizes, jovem e inexperiente, demonstra uma valentia inesperada, e comanda a tripulação, exortando-a a lutar mais, animando-a quando estão exaustos. Depois, aclamada como heroína, ela mesma confessa que fez tudo aquilo porque pensou que estava numa peça. Pensou que era fake, pois aquilo era tão irreal (para alguém jovem e inexperiente como ela) que não podia estar acontecendo de verdade. 
 
E também acontece o contrário. 
 
O excesso de responsabilidade de quem se sabe “de verdade” (um artista consagrado, um expert, um scholar de respeito etc.) muitas vezes é tão inibitório quanto a Síndrome do Impostor. Certos indivíduos não se acham impostores, pelo contrário: sabem que são “a coisa de verdade”, sabem que são sumidades, autoridades, são aquele indivíduo capaz de dar a última e definitiva palavra sobre o assunto. 
 
E nesse instante – olha só o paradoxo – o sujeito trava. Ele sabe que não é fake, mas justamente por isso a angústia da responsabilidade o paralisa. O mundo real depende de uma palavra sua, e o peso dessa credibilidade acaba por travar sua mente bem como "o mulambo da língua paralítica”. 
 
E, na mesma linha de paradoxo, um não-ator pode se sentir mais leve no palco, porque se atuar mal e for desmascarado resta-lhe dar de ombros e dizer: “Mas quem disse que eu sou ator?”. E sair assobiando. (Uma situação explorada em variadas nuances no excelente romance Scaramouche de Rafael Sabatini, em que um fugitivo político se junta a uma trupe teatral e faz de conta que é ator.) 



 
Já vi atores experimentados dizendo em dia de estréia aos nervosíssimos novatos: “Gente, calma, é só uma peça, vamos nos divertir... se alguém errar, a gente dá um jeito na hora, e no dia seguinte faz certo. É só uma peça. O mundo não vai se acabar.” 
 
Só falta dizer: “Faça de conta que sabe. Ou então faça de conta que aquilo é só uma brincadeira, um passatempo, sem grande responsabilidade.” 


 
Um jogo que na verdade não é um jogo. Como no romance Ender’s Game de Orson Scott Card, em que um garoto que é “fera” no videogame trava batalhas espaciais ferozes, imaginando que é apenas um game – mas é uma batalha real contra inimigos reais, que ele extermina sem pena. Ora, não é somente um jogo?... Era de verdade?!... Eu exterminei uma raça inteira? 
 
“Fingir que é” equivale a “ser”? Não; mas em alguns casos pode se tornar um caminho para ficar sendo. 




Para mim, a filosofia do “fake it till you make it” tem um peso existencialista, cheio de liberdade e responsabilidade. Ninguém nasce alguma coisa: a gente se torna aquela coisa, primeiro imitando (ou fingindo) e depois fazendo de verdade. Todo mundo é assim. 
 
Não existe uma “missão”, um “sentido prévio para a vida”. As pessoas se angustiam tentando descobrir qual é o sentido da nossa existência. Não existe um sentido pronto, para ser descoberto: existe um vácuo, onde temos a liberdade (e a responsabilidade) de inventar um sentido para nossa vida. 
 
A gente começa a inventar (“to fake”) um sentido qualquer. Sou jogador de futebol. E descobre que não é. Sou músico... e descobre que não é. Sou motorista de ônibus... e descobre que não é. De repente... sou técnico de informática: aí você descobre que é facílimo fingir, porque você entende tudo daquilo, começa como técnico, daqui a poucos anos está com uma empresa, doze empregados, casa financiada e carro na porta. Pronto. Você inventou, depois de várias tentativas, um sentido para sua existência. Nada disto estava pronto. 
 
Nada está pronto à nossa espera. Nada está escrito nas estrelas. Existem tendências, pesos, influências, convergências de oportunidades, relações sociais, o escambau – tudo influenciando suas escolhas. Mas nada está escrito. Aprender a fazer é, em certa medida, fingir que já sabe, e criar o destino. 
 
 
 
 
 
 




terça-feira, 15 de abril de 2025

5171) A arte sórdida da espionagem (15.4.2025)



 
(Richard Burton como “Alec Leamas” em “The spy who came in from the cold”)
 
 
O romance de espionagem (e também o conto, o filme, etc.), como forma de narrativa policial, eleva ao quadrado a paranóia existente no policial clássico – onde há um crime e, em princípio, qualquer um pode ser o culpado. 
 
Jorges Luis Borges, numa conferência famosa sobre este tema, comentava que a literatura policial criou não só um novo gênero literário, mas um novo tipo de leitor: o Leitor Desconfiado. Esse leitor suspeita de todos os personagens, põe em dúvida cada frase que é pronunciada, acha o tempo todo que o autor está tentando enganá-lo (e está mesmo). 
 
No livro de espionagem, porém, não se trata de descobrir um criminoso que cometeu um crime. Trata-se de descobrir, no vasto elenco de personagens, quem são os inimigos, os agentes secretos da potência estrangeira, dos quais o protagonista tem que se esquivar, mas para isso precisa identificá-los primeiro. 
 
Na história de espionagem, todo mundo pode se tornar uma vítima, todo mundo pode ser um criminoso. O trabalho do espião, ou do agente secreto, é duplo. 




Ele age como detetive quando precisa vigiar os passos de alguém, seguir um suspeito, decifrar uma mensagem, interpretar um código, conseguir entrar num ambiente e enxergar pistas sobre o que acontece ali, imaginar que são as pessoas inocentes e quem são os “culpados” (= adversários). 
 
E ele age como criminoso quando se protege atrás de uma identidade secreta, se esforça para não ser identificado pelos inimigos, vigia-se o tempo inteiro para ver se não está sendo observado, gravado, fotografado, seguido na rua... E quando age, faz o que pode para apagar as pistas de suas ações. 
 
No romance policial tradicional, há dois conceitos para definir o que é crime, elemento importante no gênero. 
 
O primeiro é o conceito filosófico-religioso: o conflito entre o Bem e o Mal. Um conflito moral, no qual (basicamente) o crime é uma ação influenciada pelo Mal, e cabe ao Bem identificá-la e puni-la. (E os autores, é claro, fazem mil variações e inversões desse princípio.) 
 
O segundo é a lei dos homens: o ordenamento civil-jurídico da sociedade onde a história acontece. Cada país fornece uma moldura específica onde as histórias (as histórias escritas a sério, pelo menos) precisam se situar. Cada país define a natureza dos crimes, como podem se dar as prisões, os julgamentos, as condenações, a execução da sentenças. Atos que são criminosos em um país podem ser aceitos em outros. O poder da polícia é temido e respeitado num lugar, mas pode ser frouxo e corrompido no país vizinho. E assim por diante. 
 
Quando lemos ou escrevemos uma história assim, há sempre questões imprevistas que muitos autores esquecem de levar em conta. Nessa cidade (nesse país) existe policia científica (capaz de recolher impressões digitais, p. ex.)?  É permitido interrogar qualquer suspeito?  Existe crime organizado e politicamente forte? São questões sociais que a literatura de cada país aborda de uma maneira diferente, o que se reflete na trama, nos personagens, etc. 
 



(Robert Flemyng como “Samuel Fennan” e James Mason como “Charles Dobbs” aka “George Smiley”, em Chamada Para Um Morto, de Sidney Lumet)


 
Mas... o romance de espionagem traz o leitor para uma terceira moldura, que é a Política Internacional – mais imperativa e poderosa do que meras leis federais, e mais implacável do que qualquer preceito filosófico-religioso, pois ela redefine os conceitos de Bem e Mal como lhe convém. 
 
Essa questão de “Meu País, Certo ou Errado” está ficando um pouco superada. Hoje estamos combatendo o comunismo. Muito bem. Se eu estivesse vivo cinquenta anos atrás, o tipo de conservadorismo que temos hoje bem que poderia ser chamado de comunismo, e nós receberíamos ordens de combatê-lo. A História está avançando muito rápido nos dias de hoje. Heróis e vilões trocam de lugar o tempo todo. 
(Ian Fleming, Internet Movie Database, trad. BT) 
 
Podemos acreditar que um detetive comum tem convicções religiosas – o Padre Brown (de G. K. Chesterton), por exemplo. Um espião as tem? Gostaria de acompanhar suas aventuras. Mesmo as histórias de espionagem que envolvem, por exemplo, agentes judeus e muçulmanos (como A Garota do Tambor) faz com que o lado religioso seja minimizado pelo imperativo cego, massacrante e onipotente da guerra política. 
 
A Política Internacional passa por cima o tempo inteiro das meras leis de governos locais; é um Poder acima dos poderes, uma Lei acima de todas as leis.
 
O mundo não se divide em preto e branco. É mais para preto e cinza.
(Graham Greene, The Observer, 1983, trad. BT)
 
E curiosamente isto transforma o universo da espionagem, como um todo, num universo sem Deus mas carregado de culpas, onde o disfarce e a mentira são procedimentos obrigatórios, onde nenhuma amizade, nenhuma aliança, nenhuma relação pessoal está a salvo da dúvida. Um universo onde reina a paranóia. Todos estão mentindo. Todos são culpados. Todos podem estar apenas esperando a chance de me apunhalar pelas costas – ou de usar a ponteira envenenada de um guarda-chuva para atingir minha perna em plena rua. 



 
O que diabo você pensa que são os espiões: filósofos morais, comparando cada ação sua com as palavras de Deus ou de Karl Marx? Não são!  São apenas um bando de bastardos sujos e esquálidos como eu: gente pequena, uns bêbados, uns viados, uns maridos manobrados pela esposa, funcionários civis brincando de cowboy-e-índio para dar uma esquentada nas suas vidinhas podres. Você acha que eles sentam como monges numa cela, comparando o certo e o errado? Ontem eu teria assassinado Mundt porque acho que ele é um sujeito mau e um inimigo. Mas não hoje. Hoje ele é um sujeito mau e é meu amigo. Londres precisa dele. Precisa dele para que o gado, a massa idiotizada que você tanto admira, possa dormir em paz nas suas caminhas cheias de pulgas. Precisa dele para a segurança de gente ordinária e encardida como você e eu. 
(Alec Leamas, em O Espião Que Veio Do Frio, John Le Carré, filme de Martin Ritt)
 


 
A recente e ótima série de TV Slow Horses (Apple-TV, baseada nos romances de Mick Herron) introduz um interessante condimento nessa situação. Os “pangarés” (ou cavalos vagarosos) são agentes do Serviço de Segurança Britânico, o MI-5, cujo inimigo mais imediato é o próprio MI-5. 
 
Eles são agentes “desqualificados” e colocados na “geladeira”.  Cada um deles fez, um dia, alguma burrada monumental, comprometeu seu currículo para o resto da vida, mas não pode simplesmente ser expulso do Serviço. Vai para esse departamento, cujo nome oficial é “Slough House” (nome da série de livros) , um misto de punição burocrática e Purgatório. 
 
Ali trabalha uma dúzia de pessoas revoltadas, feridas, amargas, alguns querendo se redimir diante do Serviço, mas outros sentindo um prazer perverso em bater de frente com ele. É o caso de Jackson Lamb (Gary Oldman), o chefe do grupo, que se refestela na marginalidade e constantemente trata o Serviço como se fosse uma potência estrangeira cujos “podres” ele precisa desenterrar. 
 
A série é excelente em roteiro e interpretações ao elenco (já está na quarta temporada, todas muito boas) e coloca um viés novo (para mim, pelo menos) no gênero.  Um viés que radicaliza a paranóia constante de que “um amigo pode se revelar um inimigo”. Aqui, os primeiros inimigos dos “slow horses” são as pessoas para as quais eles trabalham. 
 
 
 
 




quinta-feira, 10 de abril de 2025

5170) Meu artista me decepcionou (9.4.2025)




Está acontecendo cada vez mais. Você é fã incondicional de obra de um(a) artista, lê, assiste, compra, coleciona, elogia, divulga, endeusa... E um belo dia o seu ídolo ou sua ídola revela um comportamento ou uma atitude que faz você recuar com o olhar cheio de horror. 
 
Tem alguns exemplos recentes e incômodos. Vou citar estes sem nenhuma intenção especial, apenas porque são autores que eu conheço e que (imagino) muita gente conhece. 
 
J. K. Rowling, a autora da série “Harry Potter”, andou falando contra as mulheres trans, nos últimos tempos. Não li as declarações originais. Não sei se foi em entrevistas ou em artigos, mas não importa: não estou aqui para acusá-la nem para defendê-la – apenas registro o quanto me assustei com a virulência dos ataques contra ela, virulência proporcional ao sucesso espantoso dos seus romances. (Só li dois; gostei, e dispensei-me de ler os outros cinco.) 
 
Outro exemplo que me ocorre é o de Neil Gaiman, este sim, um autor que admiro e sobre quem já escrevi várias vezes neste blog. Li vários artigos e depoimentos detalhados sobre as violências sexuais e psicológicas que ele praticou contra mulheres jovens e relativamente indefesas. E mais uma vez fiquei impressionado com a reação de uma parte do seu fandom, meio no tom de “vou queimar os livros todos em praça pública”. (Aliás, mesmo condenando as ações de Gaiman, aviso que se alguém quiser se desfazer de uma coleção completa do Sandman, pode mandar aqui para casa, pois tenho alguns volumes faltando.) 
 
Vou ficar com estes dois exemplos por enquanto, mas a lista poderia ser aumentada. Há um formato em casos assim. Alguém começa a produzir uma série de obras que, pelos motivos imprevisíveis de sempre, vendem dezenas de milhões de exemplares no mundo inteiro e dão a essa pessoa riqueza e poder impressionantes. E então essa pessoa faz algo que nos decepciona moralmente. E a reação é uma só: passar do amor para o ódio, da exaltação para o cancelamento. 
 
Em casos assim, eu sempre tento parar de pensar como fã e pensar como um crítico. Não é fácil, precisa de treino, mas basta treinar. 
 
Não vou discutir aqui o comportamento de Rowling ou Gaiman, mas a reação dos seus leitores. Por que tanto ódio por uma pessoa que até ontem à noite, até a leitura da notícia, era amada incondicionalmente? E a resposta: por isso mesmo. 
 
Nós, fãs, caímos na armadilha de amar um autor, amar um artista, projetar nesse ou nessa artista uma idealização moral e afetiva que só pode ser descrita em termos amorosos. 
 
Não é somente hipérbole, somente exagero, quando um leitor diz: “Eu amo de paixão os filmes de Pedro Almodóvar”, ou “Eu sou louca por Woody Allen”, ou “Sou apaixonado por Bob Dylan”. O leitor não conhece pessoalmente essas ilustres figuras; conhece a obra, e a “persona” pública, mas cai na armadilha de entregar a esse nevoeiro distante sua fé e seus anseios emotivos.
 
Nossa cultura (no mundo ocidental, terceira década do século 21) alimenta o conceito de Amor (e sua versão turbinada, a Paixão) como um valor absoluto, necessário, obrigatório e indiscutível. Não basta afirmar que o Amor existe: é preciso afirmar que ele é compulsório, que todos nós temos a obrigação de amar alguém nestes termos. 
 
No mundo de hoje, é mais fácil encontrar alguém que questione a existência de Deus do que quem questione a existência (ou a necessidade de existência) do Amor. 
 
Quem ama, exige. Quem ama, impõe sobre o objeto amado a Tirania Desejante, e cobra a perfeição desse objeto amado. Porque quem ama traz dentro de si um vácuo que só a perfeição pode preencher. 
 
Precisamos disso como de água ou de oxigênio. (Precisamos em nossa cultura – o Amor não é, repito, não é um valor universal.) 
 
Dizia Carlos Drummond: 
 
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
(“Amar”, em Claro Enigma, 1951)
 
Quando a obra de um(a) artista nos atinge de maneira especial, provoca em nós, fãs, um sentimento não muito distante do amor, do nosso amor-paixão por uma pessoa. 
 
E o fervor cancelatório de um fã decepcionado, nesta minha equação, equivale à de um amante traído. 
 
A obra desse artista de quem sou fã me iluminou por dentro, me abriu janelas para entender melhor o mundo, me enriqueceu como pessoa, me acalentou em momentos de desânimo ou de ceticismo-negativo. (Sim, existe o ceticismo-positivo – é o que me faz escrever.) 
 
A obra do artista tornou-se uma parte preciosa da minha vida de fã, tão preciosa que acabo me esquecendo de um fato essencial: essa obra é provavelmente o que há de melhor naquele artista. 
 
Ele esforçou-se em depurá-la, aperfeiçoá-la, torná-la mais bela, ou pelo menos mais nítida, de maneira a comunicar a alguém (a mim, no presente caso) uma impressão fugidia de como deveriam ser as coisas do mundo, e não são. 
 
Essa forma incipiente de perfeição que a Obra nos provoca acaba nos dando a impressão de que o artista é superior à obra – quando na verdade é o contrário. Todo grande artista é inferior ao que produz. 
 
Drummond dizia, num dos seus momentos de revolta (em “A Flor e a Náusea”) que “meu ódio é o melhor de mim”. Poderia dizer o mesmo do seu amor, e do seu verso, que era o resultado da briga entre esses dois. 
 
É a obra que nos apaixona, e na nossa imprudência transferimos esse afeto para a pessoa que criou essa obra, na comovente ilusão de que essa pessoa é alguém melhor do que nós, sem os nossos defeitos, sem os nossos lados rancorosos ou ridículos. Alguém que nos sirva de mestre à distância, e que possamos seguir e obedecer de olhos fechados. Porque quem é fã, quem é fanático, procura justamente isto – alguém a quem obedecer e seguir de olhos fechados. 
 
Quem tem visão crítica (ponho neste termo a ênfase mais elogiosa possível) é capaz de abrir os olhos, enxergar, interpretar, avaliar, e, quando necessário, dar um passo de lado, ou para trás, ou para fora da fila, e dizer: “Comigo, não.” 
 
 

 



domingo, 6 de abril de 2025

5169) "Flow" e a arte de narrar (6.4.2025)



 
Flow (2024), dirigido por Gints Zilbalodis, é um filme feito na Letônia, e que ganhou recentemente o Oscar de Melhor Animação. Está em cartaz em vários lugares pelo Brasil afora. 
 
O  principal encanto narrativo de Flow está sugerido no próprio título, que indica a noção de fluir, de fluência, de fluxo, de um fluido que escorre sem se deixar reter. 
 
Esta imagem provém, é claro, da situação inicial do filme. Uma floresta cheia de animais (e sem seres humanos visíveis) é invadida de repente por uma inundação, devido a um tsunami ou outro fenômeno parecido. As águas invadem tudo, elevando-se irresistivelmente, em poucos minutos. 




A narrativa acompanha um grupo de quatro animais unidos pela fuga e pelas circunstâncias: um Gato, um Cão, um Lêmur e uma Capivara. Eles se esbarram durante a fuga, brigam, afastam-se, reaproximam-se, ignoram-se, salvam-se mutuamente. 
 
Tudo isto ocorre numa dinâmica de surpresas, improvisos, atitudes espontâneas, tudo condicionado  pelos problemas imediatos que um deles, ou o grupo, é forçado a enfrentar. 



 
Flow é uma lição de narrativa porque de minuto a minuto aparece uma situação nova; um problema inesperado; uma solução salvadora; uma consequência não-prevista dessa solução; um re-arranjo de comportamento para contornar esse novo obstáculo; a chegada de um personagem novo; a hostilidade inicial desse encontro; o desequilíbrio de forças que um minuto atrás pareciam ter negociado satisfatoriamente os respectivos espaços. 
 
E tudo isto sem o benefício de um diálogo sequer. 
 
Os bichos de Flow não são bichos humanizados como os da Disney ou da Pixar, que não passam de seres humanos que pensam, falam, agem e vivem como seres humanos, mesmo tendo forma exterior de animais – como o Pato Donald e o rato Mickey. 
 
Em Flow, os bichos parecem se comportar da maneira instintiva e arisca dos respectivos bichos da vida real – o gato age como um gato qualquer, a capivara como uma capivara, e assim por diante. Suas atitudes não são as de bichos capazes de raciocinar, prever, deduzir como seres humanos. São atitudes de bichos que, diante de um perigo ou de uma vantagem, agem de acordo, como um bicho o faria. 




Claro que existe um trabalho sub-liminar de humanização nesses personagens, permitindo-nos deduzir ou prever muitas de suas ações. São as ações que nós, espectadores torcendo pelo seu sucesso, esperamos que eles pratiquem. 
 
A animação do filme, ao que se diz, foi feita com o software Blender, um software tão acessível que muitos amigos meus disseram: “Tenho no meu computador... Não é dos melhores, mas é bastante bom.”  Levou cinco anos. 
 
E cabe à animação projetar nesses animaizinhos mais uma tintura de verossimilhança, dando-lhes os movimentos característicos dos animais, algo que certamente requereu muitas e muitas horas de observação e de reprodução minuciosa, principalmente no personagem Gato, o que mais aparece e que arrasta consigo a narrativa. 




Graças a isto, aceitamos que aquele gato parece de fato um gato e se move, caminha, pula, escapole, esgueira-se e briga como gato. Essa verossimilhança física nos ajuda a aceitar que nos momentos mais fantasiosos da ação é mesmo um gato que está fazendo aquilo – p. ex., algumas acrobacias mais heróicas. 
 
É algo equivalente, na extremidade oposta do espectro, ao que os gibis de Walt Disney conseguem com a turma de Mickey e Donald. Essa turma se comporta de maneira tão inconfundivelmente humana que rapidamente qualquer criança aceita suas aventuras e seu universo, sem perguntar por que razão um deles é um rato de calças e o outro um pato sem calças. 
 
Os bichos de Flow têm essa plausibilidade visual (graças à boa animação) e psicológica (graças ao bom roteiro) para que os aceitemos totalmente como bichos, mesmo naqueles instantes em que, para corresponder às exigências cada vez mais dramáticas da história, eles precisam fazer coisas que bicho nenhum faria com tal fluência. Como quando eles, refugiados num barco à deriva, começam instintivamente a manejar a vela e o leme. 


 
E aí voltamos à questão do fluxo, do desenrolar contínuo e sem descanso da narrativa. É uma narrativa que nada tem de hitchcockiana, mas parece seguir ao pé da letra um dos lemas de Alfred Hitchcock: “Se a ação for suficientemente fascinante e suficientemente rápida, o público não terá tempo de se perguntar se aquilo é plausível ou não”. 
 
Flow tem cerca de uma hora e meia de duração, não tem tempos mortos. Os animais fogem das águas que se elevam, sobem em árvores, sobem em barcos, deixam-se levar pela correnteza, são atacados por pássaros, se viram como podem. 
 
Não há seres humanos na história. A correnteza os leva às ruínas de uma cidade, mas são ruínas já muito antigas, sem relação com o tsunami presente. Quem construiu aqueles palácios, aquelas muralhas, já se extinguiu há muito tempo. Os animais não parecem guardar memória alguma daquele ambiente. 
 
Seu mundo é um eterno presente, como o dos animais em geral parece ser. O passado existe, mas só o passado recente; e o presente, um compasso de espera até a próxima decisão de sobrevivência. 
 
É uma narrativa que parece levar em conta um princípio posto em prática por muitos ficcionistas, seja da literatura, do cinema, etc.  É o da narrativa onde só conta o que acabou de acontecer, ou, como dizem alguma “a narrativa Fibonacci”. 
 
A série de Fibonacci, para quem não conhece, é um artifício matemático com mil e uma utilidades. É uma série infinita de números onde cada novo número a ser adicionado é simplesmente a soma dos dois anteriores. 
 
Eis a série de Fibonacci em sua versão básica: 
 
1 – 1 – 2 – 3 – 5 – 8 – 13 – 21 – 34 – 55 – 89 - ... ... ...
 
Cada número é a soma dos dois que o antecedem: 89 = 55 +34; 55 = 34 + 21; e assim por diante. 
 
Este princípio pode ser mais ou menos aplicado à narrativa de ficção. Sem muita exatidão, claro, para não virar uma obrigação mecânica. Mas como um recurso que pode ajudar naqueles momentos em que o escritor não sabe com muita clareza o que fazer em seguida. 
 
O princípio básico deste recurso pode ser expresso assim: A próxima cena a ser escrita precisa desenvolver elementos que estavam presentes na última e na penúltima
 
Isto não é uma obrigação. É uma possibilidade útil. 
 
Até porque outro recurso importantíssimo é justamente o reaparecimento de algum elemento (um personagem, uma situação, um local, etc.) que o espectador tinha visto meia hora atrás, e do qual já tinha esquecido. Quando aquilo reaparece, e reaparece de maneira dramática, com impacto, ele pensa, subconscientemente: “ih, é mesmo, tinha esse detalhe, nem me lembrava, mas é isso mesmo”. 
 
O efeito “série Fibonacci”, no entanto, lida com outra tática. A tática de fazer algum malabarismo com elementos que o espectador ou o leitor acabou de conhecer, tem ainda vívidos na memória, e muitas vezes espera algum desenvolvimento. Situações tipo “ih, agora eles conseguiram isto, daqui pra frente tudo vai ser diferente”. 
 
A narrativa flutua com segurança entre o grande conflito (como os bichos sobreviverão à inundação?) e os conflitozinhos menores – principalmente quando os quatro conseguem se refugiar no barco-a-vela e isso produz uma série de pequenas rivalidades, pois cada um quer uma coisa diferente a cada momento. 


 
Flow é um filme de ação. É engraçado dizer isso, porque no linguajar de hoje em dia “filme de ação” implica sempre em ação humana violenta, em confrontos físicos, brigas de arma em punho, e assim por diante. A ação não-humana deste filme torna-se humana pelo grau de empatia que conseguimos desenvolver para com um gato que tenta não morrer afogado; e com o nosso grau de entendimento desses pequenos conflitos intra-grupo, em que os bichos não são muito diferentes de nós. 
 
Flow levou cinco anos em preparação, é hoje o filme de maior sucesso na história da Letônia, um país com menos de 2 milhões de habitantes. Um estátua do Gato foi erigida em sua homenagem na capital, Riga.