(Charlie "Bird" Parker / Igor Stravinsky)
Acompanho grupos de Facebook especializados em algum tipo
de estudo (estudo informal, nada acadêmico). Rede social tem fofoca demais,
futebol demais, politicagem demais. Quando não estou com disposição para isso,
vou ao mural dos “meus” grupos – grupos de literatura (Harlan Ellison, James
Joyce, Machado de Assis, J. G. Ballard, Shakespeare, Dashiell Hammett, etc.),
estilos artísticos (Surrealismo, Artes na República de Weimar, Moebius, etc.),
cinema, música, poesia popular, etc.
Dias atrás eu estava clicando através das postagem do
grupo Discover Jazz e me deparei com
uma troca de idéias sobre um episódio, banal mas curioso, envolvendo dois
grandes músicos, o jazzista Charlie “Bird” Parker e o erudito Igor Stravinsky.
A postagem inicial dos administradores do grupo dizia (as
traduções são minhas):
“Derramou o uísque, de puro êxtase!”
Não é segredo para ninguém que Charlie Parker era um fã da música do
compositor clássico Stravinsky – especialmente de sua obra “Sagração da
Primavera”.
Mas você sabia que, em 1951, Parker aparentemente avistou Stravinsky no
meio da platéia de seu show na Birdland, em Nova York, e começou a incluir
trechos de músicas de Stravinsky dentro dos seus solos?
De acordo com o autor Alex Ross, Stravinsky ficou tão satisfeito que
“derramou seu uísque, de puro êxtase!”.
Logo em seguida, um membro do grupo comentou:
Izak Komo:
Isto aconteceu em Paris, não em Nova York. Charlie Parker e sua banda
estavam em turnê. Stravinsky, que chegou ao clube jazzístico quando Charlie
Parker já estava tocando, ficou chocado, e derramou vinho na própria roupa, quando
Parker, que estava no meio de um improviso no sax, reconheceu Stravinsky e
incluiu na melodia um trecho que era de uma composição recente dele. Stravinsky
ficou tão surpreso que derramou vinho sobre si mesmo. É assim que grandes
artistas reconhecem e valorizam uns aos outros.
E logo vieram outros:
Ellen LaFurn:
Na verdade foi o trumpetista de “Bird”, Red Rodney, quem reconheceu o
maestro na platéia e avisou a “Bird” de sua presença.
Graeme Gerard:
A versão que eu li foi de que Stravinsky bateu com o copo na mesa, com
força, deliciado ao ver o “Bird” tocar trechos de “Sagração da Primavera” em
seu improviso.
Alguém está mentindo deliberadamente? Duvido. Ninguém
estava lá. Todas essas pessoas ouviram algum relato (estou presumindo que o
fato aconteceu mesmo) e cada uma narra a versão que conheceu. Todas as versões
são plausíveis, mas essas variações mostram a relatividade dos testemunhos: Foi
em Paris ou em Nova York? Era vinho ou uísque? Quem reconheceu o maestro foi
“Bird” ou foi um dos seus músicos?
Nada disso é essencial para este episódio, cuja utilidade é apenas a de mostrar que os verdadeiros talentos se respeitam, e que a distância entre o jazz e a música erudita é menor do que se supõe. (Outros comentários, no mesmo post, ressaltam que na residência de “Bird” havia mais discos de música clássica do que de jazz.)
A questão é que esse tipo de divergência acontece também
no testemunho de crimes, de acidentes graves, de diálogos políticos com
consequências sérias. Cada pessoa diz: “Eu estava lá e vi tudo, vou lhe dizer
como foi.” Se três ou quatro pessoas fazem três ou quatro relatos com
variações, como saber quem está sendo mais fiel aos fatos? Mesmo supondo que
cada pessoa está agindo de boa fé, e sem interesse pessoal (o que é raro)?
Advogados hábeis, como o grande Perry Mason dos romances
policiais de Erle Stanley Gardner, são capazes de pegar uma dessas testemunhas
e reduzir seu depoimento a pó, apertando os parafusos até rachar a estrutura
inteira.
Não há duas versões iguais de uma história. Um fato
envolvendo duas pessoas (uma discussão, uma batida de carro, etc.) tem duas
versões. Testemunhado por outras pessoas, tem tantas versões adicionais quantas
forem as testemunhas.
As pessoas estão mentindo? Não – cada pessoa percebe apenas
uma parte dos acontecimentos. Desta parte,
ela recorda depois uma parte menor ainda. E quando chamada a depor, essa “parte
menor ainda” vai ser contaminada pelas suas emoções e percepções no momento do
relato (o nervosismo diante de um tribunal, p. ex.).
É dever de quem lida com essas coisas aceitar depoimentos
alheios, sempre, com “um grão de sal”, um grão de dúvida.
Jornalistas e biógrafos se deparam com isso muitas vezes.
Ao relatar algo que não presenciaram, dependerão sempre do que outras pessoas
disseram a respeito. O que fazer quando há duas histórias diferentes? E quando
há quatro, cinco histórias? Todas supostamente são sinceras, bem intencionadas,
procurando ser fiéis à realidade... Mas o que é “ser fiel à realidade”?
Quando estamos reproduzindo um relato de alguém, esse
relato inevitavelmente tem lacunas, e de forma inconsciente vamos preenchendo
essas lacunas da maneira que nos parece mais lógica ou mais provável, e nem
sempre é este o caso.
Na mesma postagem do Facebook, acontece outra troca de
idéias desse tipo, nos comentários:
Jeff Weinberger
Imagino que Stravinsky ficou mais em êxtase do que o “Bird”. Não me
surpreenderia em saber que também derramou sua vodka.
John EH
Stravinsky bebia exclusivamente uísque escocês, de modo que... não.
O primeiro cara presume, com alguma lógica, que
Stravinsky, por ser russo, estaria também bebendo vodka. É um pouco como
imaginar que todo gaúcho bebe chimarrão e todo mineiro bebe cachaça. Por que
não?
E logo em seguida vem um desmentido – sem muita ênfase, sem muita pose de “cala a
boca, eu sou especialista no assunto”, apenas a declaração de que ele só bebia
uisque; e cada um de nós, meros leitores distantes, pode apenas aceitar ou não.
Parece bobagem, mas toda vez que a gente está escrevendo
um texto meio jornalístico-biográfico, onde tem que relatar fatos acontecidos
com pessoas distantes, às vezes muitos anos (ou séculos!) atrás, é preciso ter cuidado
com o que a gente afirma – mas ao mesmo tempo é preciso afirmar alguma coisa,
senão ninguém escreve nada.
Paul MacCartney, comentando em 2016 (na revista Rolling Stone) um dos melhores livros
sobre os Beatles (Revolution in the Head,
de Ian MacDonald), afirma:
São esses livros que o pessoal escreve a respeito do significado das
canções, como Revolution in the Head – este eu li do começo ao fim. É
aquele tipo de livro para ter no banheiro, um bom livro para ler um pouquinho
de cada vez. Eu pego e leio: “MacCartney escreveu isto em resposta àquela
venenosa canção de Lennon”, e eu penso, “OK, mas não é verdade”. No entanto,
está entrando para a História. Esse livro já se tornou um livro muito
respeitado, e eu digo, “Muito bem, está ótimo.” Ora, é um fato da minha vida.
Esses fatos estão sendo propagados como uma espécie de história musical dos
Beatles. Há milhões deles, e tudo que eu sei é que, como fato, esse aí está
incorreto.
As histórias têm mil faces, e mais de uma vez relatei um
fato, com a maior honestidade e boa fé, e o vi ser desmentido pela apresentação
de provas concretas, ou até pelo depoimento dos próprios protagonistas (“Olha,
BT, essa versão desse episódio comigo circula há muito tempo, mas não foi bem
assim, vou te contar como foi...”).
E, mais uma vez, nem mesmo isto serve de garantia total
de autenticidade, porque as próprias pessoas interessadas podem estar
deformando o acontecido, seja por desmemória, seja por algum tipo de
conveniência pessoal.
Em resumo: quando alguém questionar sua versão dos fatos, peça para ouvir a versão dela. Sem obrigação de aceitar nem de recusar. Ouça, e lembre. De preferência, anote.
Escreva, mas duvide; duvide, mas escreva.