terça-feira, 5 de agosto de 2025

5193) Anotações sobre a poesia (5.8.2025)



("Você disse que era escritor, mas é poeta!...")

 
Um poema pode dizer uma coisa, e logo em seguida dizer o contrário. O poema não precisa necessariamente ter (como às vezes nos ensinam na escola) “uma idéia central” que é preciso descobrir qual é. Às vezes ele tem duas idéias centrais, ou mesmo três. 
 
“Qual a idéia central do poema?” Infelizmente é um tipo de abordagem que muitos professores assimilaram anos atrás, quando eram estudantes, e ficam repassando para as novas gerações. Pode-se ler de mil maneiras um poema sem a obrigação de procurar “idéias centrais” onde elas não existem. O fato de existir uma idéia central nos poemas A e B não quer dizer que tenha de existir a mesma coisa nos poemas C e D. 
 
O mesmo se aplica a um (ou uma) poeta, a uma pessoa. Ser poeta é ser contraditório, porque a experiência humana é contraditória. 
 
“Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”, dizia Mário de Andrade. É um dos grandes versos de nossa literatura. 
 
Ser contraditório não é dizer a verdade e depois dizer uma mentira: é dizer a verdade de cada momento. Ontem eu estava com calor, hoje estou com frio. Ontem eu estava tranquilo, hoje estou com raiva. Ontem eu gostava dessa música, hoje estou achando insuportável. 
 
Violeta Parra, a grande poeta e “cantadora” chilena, criou o que me parece o ponto mais alto dessa contradição poética com duas de suas canções. 



 
Muitos brasileiros conhecem “Gracias a La Vida” pelas gravações (ao vivo e em estúdio) de Mercedes Sosa, que durante muitos anos tocaram muito no Brasil. 
 
GRACIAS A LA VIDA
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio dos luceros que, cuando los abro
Perfecto distingo, lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes, el hombre que yo amo
 
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario
Con él, las palabras que pienso y declaro
Madre, amigo, hermano y luz alumbrando
La ruta del alma del que estoy amando
 
Aqui, ao vivo:
https://www.youtube.com/watch?v=INZ1OfRDuE8&t=92s  
 
A mesma Violeta Parra compôs esta outra canção, uma canção de desespero e revolta, que repete o refrão: “Quanta será a minha dor?”. 


 
MALDIGO DEL ALTO CIELO
 
Maldigo del alto cielo
la estrella con su reflejo,
maldigo los azulejos
destellos del arroyuelo,
maldigo del bajo suelo
la piedra con su contorno,
maldigo el fuego del horno
porque mi alma está de luto,
maldigo los estatutos
del tiempo con sus bochornos.
Cuánto será mi dolor?
 
Maldigo la cordillera
de los Ande y de la costa,
maldigo toda la angosta
y larga faja de tierra,
también la paz y la guerra,
lo franco y lo veleidoso,
maldigo lo perfumoso
porque mi anhelo está muerto,
maldigo todo lo cierto
y lo falso con lo dudoso.
Cuánto será mi dolor?
 
Aqui, em gravação:
https://www.youtube.com/watch?v=P12pwUSR5V0&list=RDP12pwUSR5V0&start_radio=1
 
Dois extremos opostos, na voz poética da mesma pessoa: um ponto máximo de alegria de viver, e um ponto máximo de desespero e desengano com a existência. 
 
“Não sou alegre nem triste: sou poeta.” (Cecília Meireles). Outro grande verso de nossa literatura. 
 
O poeta (a poeta) registra o que lhe passa na alma em seu atrito com a existência. Pode ser um calor reconfortante, e pode ser um fogo que ninguém suporta. 
 
Sentimentos opostos coexistem em cada pessoa, e podem coexistir num mesmo poema, às vezes num mesmo verso. São o registro sismográfico dos abalos que alguém sofre ao longo da vida, ou às vezes ao longo de uma tarde. 




Poucos poemas começam com um pessimismo existencial tão grande quanto “A Flor e a Náusea” que Carlos Drummond de Andrade incluiu em A Rosa do Povo (1945). A começar pela alusão explícita à angústia existencial de Jean-Paul Sartre (La Nausée, 1938). 
 
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me? (...)
O tempo é ainda de fezes, maus poemas,
alucinações e espera. (...)
Vomitar esse tédio sobre a cidade. (...)
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal. (...)
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. (...)
 
O poeta segue pela rua afora – e eu sempre visualizo esse poema na Avenida Rio Branco, já que o poeta trabalhava ali pertinho, no Palácio Capanema da Rua da Imprensa. 
 
E nesse momento ele vê uma flor brotando do asfalto!  
 
Eu não sou muito chegado a flores como símbolo de beleza, paz, pureza, amor, o que seja; afinal de contas, é um dos clichês mais reciclados da literatura. Mas li esse poema pela primeira vez com uns dezesseis anos. Era talvez o leitor ideal para essa cena que se segue, tão visual, tão cinematográfica – um filme em preto-e-branco, com imagem trêmula, câmera na mão. 
 
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, novens maciças avolumam-se,
pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
 
Verso final que ouvi ecoar muitos anos depois, na voz do deputado Ulysses Guimarães, durante a promulgação da Constituição de 1988: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.” E a Constituição foi naquele instante, para quem ouvia, uma espécie de flor. Feínha, mas uma flor.




Poemas servem também para isto, para mostrar estados de espírito contrários. O objetivo do poema é o mesmo de um filme, um romance, uma peça de teatro etc.: sacudir a consciência individual e o inconsciente coletivo. Abalar firmezas e abolir certezas. Tirar a mente do leitor pra dançar. 
 
Um poema é como um telegrama: algo compacto, intenso, urgente, para ser aberto com presságio e lido com alumbramento. E não estranhem o anacronismo da metáfora, mesmo que nunca tenham recebido um telegrama. É como diz, mais uma vez, Carlos Drummond: 
 
Não há criação nem morte perante a poesia. 
Diante dela, a vida é um sol estático, 
não aquece nem ilumina. 
(“Procura da Poesia”, em A Rosa do Povo).






 
 





quarta-feira, 30 de julho de 2025

5192) O trabalho que enlouquece (30.7.2025)




 
Trabalho é uma coisa boa, ou uma coisa ruim? 
 
Nós crescemos num ambiente de feroz dualidade. Na vida informal, todo mundo reclama do trabalho e elogia a diversão. Todo mundo odeia a segunda-feira. Todo mundo celebra o fim-de-tarde da sexta (é a cultura do SEXTOU!), porque vem por aí o fim de semana que implica em descanso ou divertimento. 
 
Por outro lado, o discurso ideológico no diz que “o trabalho enobrece”, “o trabalho dignifica”, e quando esse argumento de índole moral não é o bastante, nos dizem que “sem trabalho ninguém sobrevive”, “sem trabalho você não vai ter como financiar o seu lazer, nem os seus prazeres, nem sequer os seus vícios”. 
 
Há divergências, é claro, mas todos nós ouvimos variações desse discurso. O trabalho é ruim, mas é necessário. Quer dizer então que não existe trabalho bom? 
 
Curiosamente, há pelo menos duas categorias profissionais em que já ouvi dezenas de vezes algo assim: “Sou um cara de sorte, porque me pagam uma boa grana para fazer a coisa que eu mais gosto no mundo!” Esses profissionais são os músicos e os jogadores de futebol. Mesmo quando o cara ganha apenas o suficiente para sobreviver sem sustos ele se acha um cara de sorte. Porque gosta muito do que faz. 
 
Há muitos outros, sem dúvida. Deve haver mais gente nessa faixa do que imaginamos. Publicitários. Professores (sim, alguns ganham bem). Motoristas. (Conheci motoristas profissionais que diziam: “A única coisa que eu gosto é dirigir.”) 



 
Quero falar, porém, do extremo oposto. Dos trabalhos que ninguém quer executar, e só executa porque está MUITO precisado de dinheiro. Já tive um professor de Economia que usava sempre o “limpador de fossas sanitárias” como exemplo do trabalho detestável, mas socialmente imprescindível. (Como dizem nos filmes norte-americanos: “It’s a dirty job, but someone has to do it”.) 
 
Trabalho de estivadores, carregando peso na cabeça. Cassacos de engenho, cortando cana num sol de 40 graus. Empregadas domésticas esfregando diariamente cada centímetro de uma casa enorme. 



Alguém executaria esses trabalhos, se não fosse pago? Somente por diversão, por exercício? Ou (como tantas vezes dizemos) “para adquirir experiência de vida”? Talvez – se for o caso daquela pessoa que, depois de adquirida a experiência de vida, volta para seu apartamento com ar condicionado, manda trazer cervejas e conta para os amigos: “Eu tive duas semanas que me ensinaram muitas coisas importantes”. Vida que segue. 
 
É diferente a situação de quem está preso a uma classe social e não tem nenhuma rota de fuga, provavelmente vai ter que pegar-no-pesado pelo resto da vida. Alguém pode até tentar se consolar, pensando que é melhor uma mercadoria entregue do que uma mercadoria parada, ou uma casa limpa do que uma casa suja. Existe algum propósito no que está fazendo, existe alguma utilidade. “Eu estou aqui me matando, dirigindo esse ônibus no sol do verão, mas as pessoas vão chegar em casa com segurança.” 
 
O problema é que na maioria desses empregos brutais a relação patrão-empregado é mais brutal ainda. O patrão, em vez de atenuar os desconfortos, procura torná-los ainda mais cruéis, para que o trabalhador não esteja ali defendendo a feira da semana, e sim a própria vida. 
 
Já vi patrão, em momento descontraído à mesa de um bom restaurante, comentar: “Eu podia pagar ao meu pessoal o dobro do que pago, não ia abalar um fio de cabelo nas minhas finanças. Mas aí eles iam começar a gastar dinheiro, a se inchirir, a arranjar distrações, a querer melhorar de vida... Comigo não!...” 




Há uma pequena parábola, que li na infância, provavelmente na revista Sesinho, editada por Vicente Guimarães (o tio de Guimarães Rosa, vejam só). Era a revista recreativa do Serviço Social da Indústria (Sesi), que meu pai recebia todo mês. 
 
O autor da parábola contava ter chegado a um canteiro de obras onde estava sendo erguida uma catedral. Perguntava ao primeiro operário: “O que você está fazendo?” O homem respondia, secamente: “Quebrando pedras.” Ele perguntava o mesmo ao segundo, que respondia, resignado: “Estou ganhando o sustento da minha família.”  E depois a um terceiro, quase eufórico, que explicava: “Você não vê? Estou construindo uma catedral!”. 
 
São níveis diferentes de envolvimento, mas em todos eles existe um mínimo de sentido. De projeto pessoal. Mesmo o cara que está quebrando pedras pode extrair certo prazer do ato de quebrar uma pedra bem certinha. Ou então de visualizar na pedra a carantonha do capataz, e descer-lhe a marreta. Algum prazer a gente sempre encontra. 
 
Existe um outro tipo de trabalho, no entanto, que é a versão grotesca do trabalho desagradável. É o trabalho propositalmente absurdo, que não resulta em nada, não beneficia ninguém, e é imposto a uma pessoa como castigo, ou como processo de enlouquecimento deliberado. 
 
Prisioneiros são muitas vezes obrigados a tarefas sem sentido – passar a manhã inteira cavando um buraco, e a tarde inteira recolocando a terra no lugar, todos os dias, no mesmo local, sob vigilância. (Me pergunto às vezes se a vigilância disso não será, também, uma forma de punição.) 



(Van Gogh, "Prisoners", 1890)

 
Algumas cadeias obrigam os prisioneiros a marchar sem parar, em círculo, para se desgastarem fisicamente, e também para facilitar a vigilância. Van Gogh pintou um quadro famoso sobre esse tema, que aparece também em filmes como Irma La Douce de Billy Wilder e Laranja Mecânica de Stanley Kubrick. 



(Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, 1971)


São atividades desgastantes, sem sentido, sem resultado. Uma forma de cansar o corpo e de embotar a mente através da repetição sem propósito. 
 
A revista eletrônica Jacobina publica uma entrevista do antropólogo norte-americano David Graeber, em que ele comenta os diferentes graus de necessidade ou de absurdo no trabalho. Destaco aqui alguns trechos (trad. Fábio Fernandes). 
 
https://jacobin.com.br/2020/09/a-ascensao-dos-empregos-de-merda/
 
 “Você pergunta a qualquer marxista sobre trabalho e valor-trabalho, eles sempre vão imediatamente para a produção. Bem, aqui está uma xícara. Alguém tem que fazer a xícara, é verdade. Mas fazemos um copo uma vez e lavamos dez mil vezes, certo? Esse trabalho simplesmente desaparece por completo na maioria desses relatos. A maior parte do trabalho não é produzir coisas, é mantê-las iguais, é mantê-las, cuidar delas, mas também cuidar de pessoas, cuidar de plantas e animais. (...) 



(David Graeber)

 
“Em teoria, você está recebendo algo por nada, você está sentado aqui sendo pago para fazer quase nada, em muitos casos. Mas isso simplesmente destrói as pessoas. Há depressão, ansiedade, todas essas doenças psicossomáticas, locais de trabalho terríveis e comportamento tóxico, agravados pelo fato de que as pessoas não conseguem entender por que tem motivos justos para estar tão chateadas. 
 
“Porque, sabe, por que estou reclamando? Se eu reclamar com alguém, eles vão dizer: “Pô, você está ganhando algo por nada e ainda está reclamando?” Mas isso mostra que nossa ideia básica da natureza humana, que é inculcada em todos pela economia, por exemplo – que todos nós estamos tentando obter a maior recompensa com o mínimo de esforço – não é realmente verdade. As pessoas querem contribuir com o mundo de alguma forma. Então, isso mostra que se você dá às pessoas uma renda básica, elas não vão sentar e assistir TV, o que é uma das objeções.” 
 
 



sábado, 26 de julho de 2025

5191) O que é um milagre (26.7.2025)




 
Já disse um deísta irreverente: “Os milagres são interferências metalinguísticas em que Deus conserta seus erros de plot”. Não foi Jorge Luís Borges. A irreverência deste só ia até um certo ponto. No último parágrafo de “Os Teólogos”, ele ia quase afirmando que a Divindade era capaz de se enganar, mas logo recuou. 
 
O que é então um milagre? É qualquer ruptura das leis naturais, produzindo um fato impossível de tal proporção que só pode admitir origem divina. 
 
Algumas questões, porém, podem ser levantadas. Uma: um milagre é necessariamente algo bom, ou pode existir um milagre maligno? Duas: um milagre é apenas uma violentação das leis físicas, ou pode haver também um tipo de milagre que violente a lógica, o senso comum?  Três: quem decide que um evento foi milagroso?  Quatro: Todas as religiões trabalham com o conceito de milagre, ou só algumas? 
 
Não vou entrar no terreno filosófico-religioso porque nunca estudei nessa direção.  A direção que estudo é a do uso coloquial e do uso literário dessa palavra tão elusiva. 




 
Primeiro, lembro esta curta parábola de Julio Cortázar no seu clássico Hitórias de Cronópios e de Famas (1952): 
 
História verídica
Um homem deixa seus óculos caírem no chão, e eles fazem um enorme barulho, ao se chocar com os ladrilhos. Ele se abaixa, aflitíssimo, porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre com assombro que por milagre elas não se quebraram.
Então, esse senhor sente-se profundamente agradecido, e compreende que o que lhe ocorreu serve como uma advertência amistosa, de maneira que seegue para uma ótica e compra imediatamente uma caixinha de couro acolchoado, proteção dupla, para cuidar-se melhor. Uma hora depois, deixa cair a caixinha e ao abaixar-se sem maior preocupação percebe que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva algum tempo para entender que os desígnios da Providência são inescrutáveis, e que na realidade o milagre aconteceu agora. (trad. BT)
 
A historieta de Cortázar mostra o milagre-no-varejo, o pequeno milagre do nosso cotidiano. Nada de presença divina, nada de violentação das leis da natureza: apenas um instante em que acontece o extremamente improvável – primeiro, em nosso benefício; e depois, para nosso prejuízo, em sinal de alerta. 
 
“Meu tio foi consertar o telhado, caiu lá de cima, não morreu por milagre!”  Dizemos coisas assim o tempo todo, mas deve ser um erro. O milagre não é o improvável, é o impossível de acontecer. Milagre seria o tio sair voando e ir parar na Guatemala. 
 
Tentar entender o que é um milagre equivale, talvez, a tentar adivinhar o segredo de um cofre cuja porta está aberta. Deve existir para aquilo uma explicação visível, óbvia, perfeitamente aceitável; a gente é que não está enxergando. 
 
O milagre não é que a lagarta se transforme em borboleta, é que ela não vire lagarta de novo na manhã seguinte. Coisas que nos parecem espantosas ocorrem o tempo todo na Natureza. Seriam milagrosas se acontecessem apenas uma vez. Claro que para quem tem uma visão poética da realidade, tudo é espantoso: o sol e a chuva, o dia e a noite, a flora e a fauna, a cultura e a civilização. Dizia Guimarães Rosa: “A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio.” (“Fatalidade”, em Primeiras Estórias). 


(Manuel Bandeira)


E dizia com ceticismo o fatigado Manuel Bandeira (“Preparação Para a Morte”, em Estrela da Tarde):
 
A vida é um milagre.
Cada flor,
com sua forma, sua cor, seu aroma,
cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
com sua plumagem, seu voo, seu canto,
cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
o espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
o tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
 
Uma interpretação recente e assustadora do milagre é a noveleta “Hell Is The Absence Of God” (2001) de Ted Chiang, incluída em sua coletânea Histórias da Sua Vida e Outros Contos (Ed. Intrínseca; trad. Edmundo Barreiros). Nela, a Divindade se manifesta no mundo material através da visitação dos anjos, um fenômeno sempre inesperado e assustador. A vinda dos anjos produz verdadeiros cataclismos, explosões, ondas de choque, ruptura do espaço físico; e resulta em efeitos aleatórios, desde a morte ou mutilação de umas pessoas até a ascensão imediata de outras rumo ao paraíso. 
 
No mundo imaginado por Chiang, vale mais do que nunca o lema latino “credo quia absurdum”, “acredito porque é absurdo” – porque se não fosse absurdo não seria necessária a fé, bastaria o bom senso comum. E evoca também o verso famoso de Rainer Maria Rilke nas Elegias de Duino: “Todo anjo é terrível”.
 
 
 




sábado, 19 de julho de 2025

5190) Nove fatos acontecidos (19.7.2025)




1
Quando jovem, a escritora Ruth Rendell (criadora dos romances policiais com o Inspetor Wexford) arranjou emprego de repórter num jornal. Caiu-lhe nas mãos a tarefa de cobrir o jantar anual de um Clube de Tênis. Para não perder a noite com uma tarefa tão sem graça, ela não foi ao jantar: redigiu a matéria dando informações banais sobre o evento e comentando trechos do discurso do convidado de honra. Somente no dia seguinte, ao ser demitida, ficou sabendo que o orador morrera de enfarte durante o discurso.  
 
2
A escritora francesa Colette estava passeando num jardim com a condessa de Noailles, uma célebre aristocrata parisiense, muito rica, patrocinadora das artes e das letras, que gostava de se cercar de artistas. Pararam diante de um arbusto florido e a condessa exclamou: “Que flor mais linda! Como será que se chama?...”  Colette respondeu: “É um amaranto, condessa.” E a outra: “Amaranto?!  Mas é a flor de quem falo tanto nos meus poemas!...” 
 
3
Quando Erico Verissimo “estourou” para o sucesso com o romance Olhai os Lírios do Campo (1938) viajou a São Paulo para fazer palestras e noites de autógrafos. Um amigo, médico, lhe fez um pedido: que fosse a um hospital visitar uma senhorita, grande admiradora sua, que estava internada com grave tuberculose. Verissimo remanejou a agenda, cancelou compromissos, e foi com ele ao hospital. Chegando no quarto da moça, o médico disse: “Fulana, olhe quem está aqui: Erico Verissimo!”  A moça olhou os dois com estranheza e disse não saber quem era. O médico lembrou: “É o escritor que você admira... o que escreveu Olhai os Lírios do Campo”.  E a moça: “Mas, doutor, o senhor está enganado. O escritor que eu disse que gosto é Humberto de Campos!”. 
 
4
Aos 46 anos de idade, o compositor Cole Porter estava cavalgando num clube, quando o cavalo tropeçou e caiu por cima dele, quebrando-lhe as pernas. Ninguém presenciou o acidente (era num local afastado) e Porter ficou sob o corpo do cavalo durante cerca de seis horas. Sofreu fraturas graves que o obrigaram a fazer várias cirurgias e a usar muletas dali em diante. Cole Porter afirma que durante essas longas horas entreteve-se compondo um trecho da canção “At Long Last Love”, em que diz: “Será um terremoto, ou apenas um choque? É uma sopa-de-tartaruga legítima, ou uma falsa? Será que é só um coquetel, esta sensação de felicidade? Ou isto que eu estou sentindo é a-coisa-pra-valer?”. 
 
5
Ibn-Battuta, o grande viajante árabe do século 14 (descrito como “o homem que conheceu o mundo mais do que qualquer outro antes dele”), estava de visita à corte do sultão de Mul-Jawa quando presenciou uma audiência em que um homem postou-se diante do trono e fez para o sultão uma longa declaração emotiva, numa língua desconhecida para o viajante, e em seguida ergueu um facão afiado e cortou o próprio pescoço, com tal violência que sua cabeça rolou pelo chão. Depois disso, alguém explicou ao viajante que o suicida era um escravo, e seu discurso tinha sido de devoção e amor pelo sultão, afirmando que iria se matar diante dele assim como seu pai se matara diante do pai do sultão, e seu avô diante do avô do sultão; e que dali em diante sua família seria coberta de ouro e honrarias. 
 
  
6
Conta-se que em 1817 o escritor Stendhal, autor de O Vermelho e o Negro, viajava pela Itália e estava num hotel de luxo em Terracina, quando foi convidado a juntar-se a uma mesa onde estavam outros viajantes, recém-chegados de Nápoles. A conversa derivou na direção da música e Stendhal viu-se fazendo perguntas a um rapaz de vinte e poucos anos, que lhe dava respostas interessantes e bem fundamentadas. Vendo seu interesse pelo assunto, Stendhal perguntou-lhe se quando chegasse a Nápoles teria chance de ver a ópera Otelo, de Rossini, que estreara recentemente; e falou de sua ansiedade, pois na sua opinião Rossini, que não conhecia, era o único compositor vivo dotado de verdadeiro gênio musical. O rapaz ficou constrangido e o resto da mesa caiu na gargalhada, porque o rapaz era o próprio Rossini. 
 
7
Numa noite quente de verão em 1939, o compositor Ary Barroso vestiu seu terno elegante, penteou o cabelo e preparou-se para sair e curtir a noite com seus amigos de boemia. Nesse momento desabou uma daquelas furiosas tempestades de verão, bem conhecidas por quem mora no Rio de Janeiro. Inconformado com a chuva desmancha-prazeres, Ary resignou-se a ficar em casa e perder aquela noitada. Sentou-se ao piano, passou os dedos pelas teclas. Teve a idéia (é ele quem relata) “de libertar o samba das tragédias da vida”, e começou a compor uma sequência de acordes em que o ruído da chuva sugeria as “batidas sincopadas de tamborins fantásticos”. E graças a esse toró inesperado nasceu “Aquarela do Brasil”. 
 
8
Francis Fletcher (1555-1819) era capelão na frota do explorador e aventureiro Sir Francis Drake, que deu a volta ao mundo entre 1577 e 1580, repetindo a façanha de Fernão de Magalhães. Conta ele que, quando estavam atracados na costa do Peru, internaram-se na mata à procura de água potável, e em certo ponto se depararam com um espanhol exausto, profundamente adormecido, tendo ao lado treze barras de prata cujo valor aproximado seria de 4 mil ducados. E narra: “Vendo como ele corria dessa forma um grande perigo, nós o aliviamos dessa carga, e deixamos que aproveitasse o resto do seu sono em completa segurança”. 
 
9
Numa conversa com o artista gráfico Ziraldo, o poeta Carlos Drummond de Andrade confidenciava algumas das paixões que manteve na vida adulta – à distância ou, às vezes, chegando às vias de fato. Relata ele que certa vez manteve um caso com uma senhora que acabou por traí-lo e abandoná-lo. O poeta não contou conversa: pegou um trem, foi para Belo Horizonte, de lá pegou um ônibus para Itabira, arranjou um cavalo e partiu na direção de uma fazenda conhecida sua, que tinha um pomar enorme. E todos os dias ia para o pomar, subia numa árvore, e lá de cima, sozinho, começava a berrar os maiores palavrões: “filha da puta, traidora, safada, cretina!”. E remata: “Sabe que eu voltei bem melhor?...” 
 






sexta-feira, 11 de julho de 2025

5189) "O Eternauta" e o fim do mundo (11.7.2025)




 
Sabemos com mais clareza, e mais riqueza de hipóteses, como vai ser o fim da humanidade do que como foi o seu começo.  Nosso começo se perde em hipóteses abstratas nos livros de paleontologia ou antropologia. Nosso fim, por outro lado, vem sendo insistentemente escrito, dirigido, imaginado, fantasiado e encenado de todas as maneiras possíveis no cinema e na literatura. 
 
Estou assistindo o seriado da Netflix O Eternauta (Bruno Stagnaro, 2025), baseado na famosa série de quadrinhos escrita por Hector Oesterheld e desenhada por Francisco Solano López e, depois, por Alberto Breccia. O Eternauta é um dos orgulhos da FC argentina desde seu lançamento original em 1957-59, seguido por uma segunda série retomada em 1969. 
 
Nunca li os quadrinhos; até tenho uma edição aqui, mas preferi mergulhar direto na série e avaliar seu impacto sem comparações com outro material. 
 
Não comparar, entretanto, é impossível. Histórias de fim do mundo continuam a pipocar por todos os lados. Por diferentes motivos, assisti duas destas obras ultimamente. 



 
No YouTube, vi há algumas semanas duas versões diferentes do clássico de John Wyndham The Day of the Triffids, o famoso livro em que uma chuva de meteoros deixa a humanidade (quase) toda cega, perseguida por plantas capazes de caminhar. 
 
Há duas versões em vídeo: uma versão mais antiga, de 1981, com seis episódios (direção de Ken Hannam), muito fiel ao livro original. E uma série de 2009, com dois episódios longos, de Nick Copus, que se afasta muito do livro mas tem bons efeitos especiais e também vale uma olhada. 
 
E dias atrás vi meio por acaso o filme A Quiet Place: Day One (2024, Michael Sarnoski), daquela franquia em que a Terra é invadida por seres bestiais com audição agudíssima, e quem fizer o menor barulho é rapidamente localizado e devorado. 
 
E o pesadelo recorrente volta. É uma Londres de ruas vazias mas com carros batidos, carros virados, corpos caídos no chão, gente cega tateando sem rumo. É uma Nova York de ruas vazias, carros incendiados, gente prendendo a respiração e caminhando na ponta dos pés por uma Quinta Avenida juncada de cadáveres. 
 
E agora é uma Buenos Aires coberta por uma neve venenosa que dá morte instantânea, as ruas vazias a não ser pelos carros batidos e os corpos deitados na neve, de celular em punho. 

 


O primeiro episódio de O Eternauta mostra meia dúzia de amigos presos em casa, surpreendidos pela catástrofe durante uma noitada de baralho e uísque. De repente falta luz, falta sinal de celular, falta rádio, falta tudo, e quem sai à calçada cai morto sem tempo para dar um ai. Todo esse episódio lembra uma peça teatral asfixiante, claustrofóbica, com pessoas aterrorizadas olhando o tempo inteiro através de janelas, desesperando-se com as famílias que estão longe e indefesas. 




Uma pergunta que vez por outra me fazem é sobre a possibilidade de um teatro de ficção científica. Mais de uma vez me ocorreu a idéia óbvia de um grupo de pessoas trancadas num local, protegendo-se minimamente de uma catástrofe que acontece lá fora, e discutindo como escapar dali, o que fazer, o que aconteceu de fato, como poderia ter sido evitado, quem foi o culpado da destruição do mundo – enfim, uma situação que tanto pode tender para o pessimismo existencial (as peças de Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre) quanto para o questionamento da realidade (Philip K. Dick, J. G. Ballard). 
 
E foi justamente a obra de Ballard (principalmente High Rise ou The Drowned World) que me veio à mente no episódio 2, quando Juan Salvo (o onipresente Ricardo Darín) protege-se com capotes e máscara e sai pela cidade, vendo o desespero de pessoas trancafiadas em vagões de trem ou acuadas dentro do prédio em que moram. 
 
Nesses momentos, surge com força total aquela sensação não muito honrosa de que no momento do fim do mundo a primeira vítima é a solidariedade. Tudo se transforma num salve-se quem puder governado pela lei do mais forte. Vizinhos de rua, vizinhos de prédio, a turma do café, a turma do bar? Está todo mundo de rifle em punho. Ninguém conhece ninguém. 




Aos poucos as pessoas vão saindo à rua; grupos encapotados e com máscaras anti-gás, de arma em punho, começam a disputar os territórios. Enquanto isso, a neve venenosa continua a cair, cobrindo o piso, os prédios, os cadáveres. Buenos Aires inteira está coberta por essa geada branca e eles começam a perceber que ela é apenas a primeira ofensiva de limpeza que precede uma invasão. 
 
O “sobrevivencialismo” (“survivalism”) é uma corrente de pensamento que se amplia a cada década: pessoas que se dedicam a imaginar possíveis cenários de fim do  mundo, e possíveis estratégia de sobrevivência para bolsões localizados de seres humanos. Um conceito que me parece frequente nessa discussão (envolvendo videogames, ficção científica, ativismo cultural, ambientalismo, etc.) é de que não faz muito sentido falar no “fim do planeta” – o planeta continuará existindo, mesmo após um apocalipse nuclear, e mesmo precisando de dezenas de milhões de anos para recuperar a Natureza que ostenta hoje. 




Não faz sentido, também, falar no “fim da humanidade” – as catástrofes mais prováveis, mesmo nucleares, não chegariam a eliminá-la, mesmo reduzindo-a a uma pequena fração do que é hoje. Faz mais sentido falar o “fim da civilização”, do mundo como está organizado hoje. No caso de um cataclismo em escala planetária, o conceito de civilização industrial-militar-político-financeira iria ser esquartejado e recomposto de maneiras imprevisíveis. 
 
O Eternauta opta por mostrar uma invasão alienígena, um tanto no estilo de A Guerra dos Mundos de H. G. Wells (1898). A certa altura, a cidade é tomada por monstros, os “cascarudos” (o termo argentino original), besouros do tamanho de um bezerro, rápidos, incansáveis. Os monstros envolvem cadáveres numa espécie de casulo de seda, como os fios que as aranhas segregam, e os arrastam para baixo da terra. E demonstram uma certa organização: amontoam automóveis para bloquear ruas, com a rapidez de quem ensaiou bastante (ou de quem está sendo manipulado à distância). 



A primeira temporada (seis episódios) está completa no Netflix, e anuncia-se que a segunda já foi aprovada.
 
 




sexta-feira, 4 de julho de 2025

5188) O conto de mistério e suas variantes (4.7.2025)



 
Uma coisa é conto de mistério, e outra coisa é conto de crime. O que chamamos “conto policial” é a convergência entre os dois. Uma coisa não depende literariamente da outra. Há milhares de exemplos de ótimos contos (ou romances) onde aparece apenas um dos dois. 
 
Quando a gente vai ler em inglês, contudo, o romance policial aparece quase sempre sob a rubrica “Mystery”. Cada pessoa tem suas simpatias: eu simpatizo mais com o conceito de Mistério do que com os conceitos de crime, polícia, suspense, espionagem, investigação... 
 
Qualquer manual de escrita criativa ou de roteiro que a gente folheia irá nos dizer que o que empurra uma narrativa para diante é o Conflito. Ou seja: para que a narrativa tenha impulso, motivação, tensão psicológica, e force o leitor a ficar virando as páginas, sem conseguir soltar o livro, é preciso haver Conflito. O personagem quer algo, mas há uma porção de forças (pessoas, instituições, leis, etc.) tentando impedir: Conflito. Ou então o personagem não quer algo, e as mesmas forças tentam impor esse algo sobre ele: Conflito. 
 
Eu concordo com a importância do Conflito, mas faço algumas ressalvas. A primeira é: pelos resultados que vejo por aí, as pessoas traduzem “conflito” por “briga, agressão mútua, guerra”. Conflito, para elas, significa troca de socos ou de tiros, perseguições, ameaças, duelos violentos. Ou então personagens brigando entre si o tempo todo. 
 
A segunda ressalva é que há milhões de narrativas importantes, na literatura, no cinema, no teatro, em que há elementos muito mais importantes do que o conflito, e na verdade os conflitos que se estabelecem nessas histórias são um efeito secundário do tema principal. 



 
Peço licença aos partidários do Conflito para sugerir que um motor igualmente possante para uma narrativa é o Mistério. Ou seja: a tensão e o equilíbrio entre o conhecido e o desconhecido. Podemos graduar o microscópio até o nível mais elementar de definição: o “mistério” jaz exatamente nessas centenas de páginas que não lemos ainda, quando abrimos o livro no famoso “Capítulo 1”. Todo livro é um mistério à nossa espera. 
 
Como esse nível é o mais óbvio, nem vou me demorar nele. Lembro, porém, que toda narrativa de ficção consiste no desdobramento gradual de informações, revelações, iluminações de todos os tipos. Isto acontece através da ação, que nos conduz ao longo de surpresas, peripécias, suspenses e desfechos, puxadas de tapete, “plot twists”. São os personagens, que evoluem e se modificam (ou se revelam) ao longo da história. É o próprio ambiente, que nos traz revelações inesperadas (aqui penso especialmente nas histórias fantásticas que transcorrem em mundos bizarros). 
 
Quando não conseguimos largar um livro e ficamos virando página, virando página, é porque um Mistério se ergueu à nossa frente, para nos atrair; e ele vai sendo revelado de-pouquinho, para manter essa atração. 
 
Eu uso de vez em quando, para abordar contos de mistério (em qualquer gênero literário) dois conceitos que chamo de “Protocolo da Resposta” e “Protocolo da Pergunta”. São conceitos opostos, que podem até vir misturados numa mesma narrativa, mas convém examinar cada um em separado. 
 
O Protocolo da Resposta é uma espécie de pacto, entre o autor e o leitor, de que os mistérios apresentados ao longo do livro têm uma resposta, elaborada pelo autor, e essa resposta será fornecida ao leitor no final, no interior da própria narrativa. 
 
Como se o autor avisasse: “Fique tranquilo. Sei que parece tudo confuso, ou sem pé nem cabeça, mas tudo isso vai ter uma explicação no fim.” 



 
O exemplo mais comum desse protocolo é o conto de detetive -- onde há um crime misterioso, cheio de pistas enigmáticas ou contraditórias, mas no final o detetive apresenta uma solução satisfatória para toda essa confusão. O leitor vai dormir tranquilo. O mistério foi respondido. 
 
Já o Protocolo da Pergunta é uma espécie de pacto em que o autor não promete nada ao leitor além da formulação de perguntas, de mistérios, de enigmas. A função dessas histórias não é esclarecer mistérios, mas deixá-los flutuando no ar, enquanto autor e leitor, de braços cruzados, os observam, perguntando-se: “E agora?...” 
 
Há quem deteste histórias assim. Há quem goste, e muito (eu, por exemplo). Os romances de Franz Kafka. A maioria dos filmes de David Lynch. Os contos de Robert Aickman. 
 
Por que? Talvez porque na vida real a quantidade de perguntas não-respondíveis seja muito grande, e a gente precise “engrossar o couro”, como se diz popularmente, para poder lidar com elas. Tornar-se calejado.  Não se deixar abater pelo Desconhecido. Ele faz parte da experiência humana. 
 
E é por esse mesmo motivo, claro, que as histórias com o Protocolo da Resposta nos são tão bem vindas, parecem tão confortáveis, como uma água de coco em dia de muita sede. 
 
Mas enfim – a natureza da experiência literária é que seja variada, divergente, contraditória, complementar... Cada história cumpre uma função diferente num momento diferente. E cada leitor escolhe o que lhe convém. 
 
Algumas semanas atrás, ministrei um curso online sobre a narrativa policial, A Narrativa de Mistério e Crime, pelo Instituto Caminhos da Palavra, capitaneado pelo imbatível Henrique Rodrigues. 


 
Foram quatro aulas muito proveitosas, e surgiu o pedido para uma expansão – que vem agora, pelo mesmo Instituto, nos dias 8, 15, 22 e 29 de julho (sempre às terças-feiras), e vai se intitular “O Conto de Mistério e Suas Variantes”. 
 
Vamos examinar contos de mistério de diferentes formatos: mistério detetivesco, mistério sobrenatural, mistério psicológico, mistério fantástico... Os rótulos não importam muito, mas com essa pequena amostra (quatro aulas, doze contos apenas!) é possível ter uma idéia das variações possíveis para esse tipo de conto. 
 
Que dependem, sempre, da criatividade e imaginação do autor – e da receptividade e imaginação do leitor, que precisa entender qual o protocolo que rege aquele conto, e aceitá lo numa boa.  
 
Informações e inscrições aqui:
Link: https://caminhosdapalavra.com.br/Cursos/o-conto-de-misterio-e-suas-variantes-com-braulio-tavares/
Mail: contato@caminhosdapalavra.com.br
Fone: (21) 98816-7955  
 
 



sexta-feira, 27 de junho de 2025

5187) Esse artista é meu (27.6.2025)




 
É uma discussão que ferve por aí desde o tempo de Adão e Eva: por que motivo nos sentimos incomodados quando um artista que admiramos passa a ser admirado / consumido / incensado por gente “que não tem nada a ver”? 
 
(Primeira digressão: escrevi “desde o tempo de Adão e Eva” mas tecnicamente eu deveria jogar essa referência para o momento da primeira obra de arte registrada no Livro do Gênesis, coisa que não consigo situar... Qual seria?) 
 
Há distorções que são óbvias e chegam a ser caricaturais. Lembro muito bem da cara de dignidade ofendida de um amigo meu, comunista, setentão, nordestino, me mostrando no smartphone uma passeata de bolsonaristas cantando “Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores” de Geraldo Vandré, a Marselhesa esquerdista de nossa mocidade. 
 
Um incômodo mais sutil é o que acomete o pequeno fã-clube de algum artista de real talento que durante alguns anos só se vê reconhecido por esse núcleo fiel. Eles compram e divulgam seus livros, ou comparecem aos seus shows, peças, filmes. Vão aos poucos se solidificando num grupo onde todos são devotos e especialistas. Trocam informações entre si, reúnem-se para conversar sobre o artista, estão confortavelmente instalados numa comunidade que os aproxima e aconchega. 



(Os Ramones no metrô, foto de Bob Gruen)

 
E então alguma combinação de circunstâncias faz com que o “seu” artista seja revelado a esse ogro de mil cabeças, estúpido, insaciável, chamado O Grande Público. O escritor que vendia 20 mil livros passa a vender 700 mil. A banda de garagem que tocava em pequenos clubes agora está nos Lollapalooza e outros festivais, com turnê marcada na Europa. Ou seja, venderam a alma – não ao Diabo, com quem até Robert Johnson se entendia; mas ao Capitalismo, que é muito pior, porque existe. 
 
E de uma hora para outra os conhecedores-a-fundo e apoiadores-sinceros daquele Artista se veem atropelados por uma multidão de neófitos que ouviram cantar o galo mas não sabem onde, o que não os impede de ter opiniões exageradas e ruidosas sobre a afinação do galo e o giro da rosa-dos-ventos. E não adianta alguém dizer: “Eu acompanho esse artista há dez anos.” A resposta vai ser: “E daí?”.  
 
Penso nisso de vez em quando quando os meus Artistas obscuros são descobertos pela imprensa cultural ou, pior ainda, pela televisão. Ou, ainda pior, por influênceres que se baseiam em seus seis meses de experiência para emitir julgamentos definitivos sobre algum assunto em que eu queimo as pestanas desde quando tinha apenas o dobro da idade deles. 
 
A relação artística pode ser reduzida, de início, a um triângulo: Autor / Obra / Leitor (vou chamar só “leitor”, para simplificar).  Nunca é um triângulo equilátero, há sempre alguma dupla de pontos mais próxima, mas não importa: a área delimitada por estes três é o início de toda apreciação estética. 
 
Quando um quarto ponto se mete... essa área ganha outro tamanho, outra direção, outro significado. E aquele território que eu imaginava estar sob meu controle de repente não está mais. O playground aumentou de tamanho mas está cheio de gente esquisita que eu não conheço. (“Eu”, no caso, não tem que ser necessariamente a minha pessoa; é o grupo-de-consenso do qual eu faço parte.) 



(Bob Dtlan no estúdio, foto de Daniel Kramer)

 
Quando Bob Dylan se afastou da canção de protesto, aderindo à guitarra elétrica e ao rock, mais do que a repulsa ao estilo pop o que se viu foi a fúria dos que achavam que tinham um artista sob sua jurisdição: “Você vai fazer o que nós gostamos; você é nosso.” E Dylan (camaleônico, escorregadio, elusivo) não estava interessado nisso. 
 
Um artista tem sucesso sólido e permanente quando sabe (e consegue) conciliar a convivência entre o “núcleo duro” de seus fãs primeiros e fiéis, e essa vasta periferia dos que chegaram muito depois mas são muitíssimos mais. 
 
A psicologia do fã-raiz tende a ser ditatorial, se lhe derem muita corda. Não é apenas o fã bobinho das bandas pop. Os fãs intelectuais podem ser igualmente emocionais e possessivos. Quando Umberto Eco estourou vendendo milhões de cópias de O Nome da Rosa surgiram (na Europa, principalmente) protestos furibundos de semiólogos que se julgavam traídos porque seu ídolo estava agora “escrevendo romances comerciais para ficar rico”. 



(Kathy Bates, em Misery de Rob Reiner) 

 
Claro que nada se compara ao fã-medusa, aquele que tenta petrificar o Artista amado. Sua encarnação mais górgona é Annie Wilkes, a personagem interpretada por Kathy Bates no filme Misery (Rob Reiner, 1990), baseado no livro de Stephen King. Ela não apenas sente-se dona do Artista: sente-se patroa. Sente-se capacitada a dizer-lhe o que deve escrever, e de que modo. É o caso extremo em que o rival não são os outros fãs, mas o próprio Artista, quando teima em ser ele mesmo e fazer somente o que quer. 




Um caso igualmente extremo, mas mais sutil do que o da história de Stephen King, é o do conto “Queremos Tanto a Glenda”, de Julio Cortázar, na coletânea do mesmo nome (creio que no Brasil saiu como Orientação dos Gatos, Nova Fronteira, 1981). 
 
Nele, Cortázar põe em cena uma nova versão, silenciosamente maligna, do Clube da Serpente, o círculo de intelectuais expatriados que, em O Jogo da Amarelinha (1960) devora e discute exaustivamente a obra teórica de um tal Morelli, sem saber que se trata de um velhinho obscuro que mora não muito longe deles. 
 
Neste conto, porém, trata-se de um grupo de admiradores da atriz de cinema Glenda Garson (uma homenagem explícita a Glenda Jackson). O grupo surge espontaneamente, porque começam a avistar-se uns aos outros no cinema antes e após as sessões, reconhecer-se, cumprimentar-se, sair depois do filme para um café ou um trago. E assim forma-se “a aliança, aquilo que depois todos chamamos de o núcleo e os mais jovens o clube” (trad. BT). 
 
(Nova digressão: O inesgotável Kurt Vonnegut propôs em seu romance Cat’s Cradle (1963) os conceitos de wampeter e de karass. Um wampeter é um ser que se torna o foco de atenção e devoção fanática de um grupo de pessoas, o karass. Essas pessoas giram em órbita ao redor dele (órbitas espirituais, claro). Exemplos de wampeter podem ser uma idéia, um livro, o Santo Graal...) 




Pois bem, no conto de Cortázar, o karass que se reúne em torno da imagem de Glenda Garson percorre todos os caminhos previsíveis dos fãs com um objetivo em comum: os encontros casuais, depois os encontros combinados, as visitas recíprocas, as infindáveis discussões sobre os incontáveis detalhes... Até que as discussões chegam a um ponto crucial. 
 
Somente pouco a pouco, a princípio com um sentimento de culpa, alguns se atreveram a deslizar críticas parciais, o desconcerto ou a decepção frente a uma sequência menos feliz, as quedas no convencional ou no previsível. (...) Começávamos a sentir que nosso carinho por Glenda ia mais além do mero território artístico e que somente ela se salvava do que imperfeitamente faziam os demais. (...) De repente os erros, as carências, nos pareceram insuportáveis; não podíamos aceitar que Nunca Se Sabe Por Quê terminasse assim, ou que O Fogo da Neve incluísse a infame sequência do jogo de pôquer (na qual Glenda não atuava, mas que de alguma maneira a maculava como um vômito, esse gesto de Nancy Philips e a chegada inadmissível do filho arrependido). 
 
Esses cinéfilos radicais dedicam-se, então a aperfeiçoar as obras em que sua musa atuou, para que em torno dela não existisse nada que não fosse a perfeição. São pessoas de recursos, isso não se discute. Um deles “havia sido sócio de Howard Hughes no negócio das minas de estanho em Pichincha”, de modo que dinheiro, jatinhos e tecnologia não são problema. Outro dispõe de “um computador” (o conto é de 1980). 
 
E eles põem mãos à obra. Localizam todas as cópias (numa época em que o cinema era 100% em celulóide) dos filmes de Glenda, extraem as cenas que lhes desagradam, refilmam (provavelmente com dublês) outras cenas de acordo com seus critérios... Ninguém (quase ninguém) percebe o deep fake que está sendo elaborado. 
 
A memória brinca com seus depositários e os faz aceitar suas próprias permutações e variantes, talvez a própria Glenda não tivesse percebido a mudança, e sim, porque isto todos nós percebemos, a maravilha de uma perfeita coincidência com uma recordação lavada de escórias, exatamente idêntica ao desejo. 
 
Glenda se aposenta das telas, o que parece coroar o esforço do fã-clube: sua obra agora está redonda, esférica, perfeita. Mas um dia a atriz resolve voltar a filmar, e isto é uma ameaça. A obra atingiu a perfeição: fazer um filme novo, agora, seria submeter-se aos erros, às influências da mediocridade alheia. O que fazer, então? E o narrador conclui: 
 
Quando Diana pousou a mão no braço de Irazusta e disse: “Sim, é a única coisa que nos resta a fazer”, falava por todos sem necessidade de nos consultar. (...) Saímos separados, cada um conduzindo seu desejo de esquecer até que estivesse tudo consumado, e sabendo que não seria assim, que ainda nos restaria abrir o jornal em certa manhã e ler a notícia, as estúpidas frases de consternação profissional. 
 
Ninguém é mais cruel do que um fã, ninguém é tão capaz de destruir a carne-e-osso do ser amado para manter intacta a imagem idealizada que tem dele. 
 
H. G. Wells tem uma crudelíssima parábola, “A Pérola do Amor” (1925; incluído na coletânea “O País dos Cegos e Outras Histórias”, Alfaguara, 2014, trad. BT) em que um príncipe indiano perde a jovem e linda esposa, por quem era apaixonadíssimo. Decidido a manter viva sua lembrança, ele gasta seus tesouros na construção de um palácio perfeito, chamado A Pérola do Amor. O corpo da princesa, num sarcófago de alabastro, é colocado bem no centro, e em volta dele começam a ser erigidas paredes, colunas, ornamentos arquitetônicos, com os materiais mais raros. 
 
Mas o príncipe não fica satisfeito. Embora todos digam que se trata do mais belo palácio já construído, ele todo dia acha um defeito aqui, outro acolá. O palácio está quase perfeito e ele não tem sossego. Um dia, ele pára por um longo tempo, olhando aquela maravilha, e por fim estende o braço e aponta com o dedo o sarcófago onde repousa a princesa, dizendo apenas: “Tirem essa coisa daí”.