Um
programa que eu não perdia no antigo Canal Multishow (ou seria no antigo GNT?)
era Inside the Actor’s Studio, aquele
talk show comandado por James Lipton. Um papo sobre cinema e teatro, com atores,
atrizes, diretores, etc., num palco, diante de uma platéia cheia de estudantes
de teatro.
Os
melhores conselhos do teatro são os que a gente pode aplicar na literatura,
assim como os melhores da pintura são os que a gente pode aplicar no cinema, e
assim por diante. Isto não é uma verdade científica, é claro. É apenas uma
frase-de-efeito para sugerir que a mão da gente pode até estar tocando numa
árvore, mas é obrigação do olho enxergar a floresta.
Al
Pacino, entrevistado por Lipton (o programa hoje está no YouTube, com legendas
em inglês que o algoritmo improvisa na hora), lembra seus primeiros trabalhos juvenis sob a direção de Lee Strasberg, um dos criadores do Actor's Studio.
É interessante lembrar que
Strasberg aparece no Poderoso Chefão 2,
encanecido, comedido, exato.
(Lee Strasberg e Al Pacino, O Poderoso Chefão 2)
E
ele recorda alguns conselhos que recebeu do mestre.
PACINO – Ele
me ensinou também uma coisa que nem sempre eu me lembro de por em prática... e
que eu considero algo valioso, e que eu esqueço, às vezes... e eu gostaria que
ele estivesse por perto para me lembrar. Ele dizia: “Às vezes, não vá o mais
longe que pode.”
LIPTON – Fique
firme em você mesmo.
PACINO (concordando)
– Fique firme em você mesmo. Exatamente.
O
que significa esse “não vá o mais longe que pode”? Pode ser uma porção de
coisas, mas no momento o que me vem à cabeça é algo como: “Não passe do ponto”.
Ser criativo é ótimo, mas tem um ponto, e não passe do ponto. Ser emocionalmente
intenso é ótimo, mas não passe do ponto. Ser cerebral? Beleza, mas não passe do
ponto.
Trago
isso para a literatura porque um escritor está sujeito a duas catástrofes, a do
bloqueio criativo e a da incontinência criativa, se bem me exprimo. É quando a
criação verbal encontra o tom certo, o diapasão certo, o fluxo certo, mas aí o
escritor se entusiasma consigo mesmo e não consegue conter o fluxo. Pelo
contrário: ele se desdobra na tentativa de manter o fluxo por duas páginas,
doze, vinte.
E
nem sempre é o que o texto está pedindo. Não há regra para isto, todo texto é
diferente, e não há duas noites-de-trabalho iguais. Não tem como passar uma
receita precisa. É preciso sentir onde é o ponto de dizer “chega, tá bom, vamos
para o próximo”.
Você
fazer essas coisas é como fechar uma caixa de fósforos: você vai empurrando a
caixinha de dentro, a que guarda os palitos, até encaixá-la na caixinha de
fora... E aí pára. É esse o ponto. Se continuar empurrando, a caixa dos palitos
sai pelo outro lado.
Não
passe do ponto. O que às vezes é pedir muito para um ator ou atriz, que
trabalha com o corpo – o rosto, as mãos, os olhos, a voz, esse repertório de
partes traiçoeiras que passamos a vida tentando manter sob controle, tentando evitar
que nos traiam.
Vale
para os escritores, sim, e mesmo os melhores dentre eles passam do ponto, às
vezes. Eu afirmo (polemicamente) que o ponto alto da obra de James Joyce é o Ulisses, e com Finnegans Wake ele passou do ponto. Afirmo que o ponto alto da obra
de Guimarães Rosa é Grande Sertão:
Veredas, e que com Tutaméia ele
passou do ponto. Neste último caso, chamo ao banco das testemunhas um roseano
insuspeito, o mestre Ariano Suassuna, para quem Tutaméia parecia “amaneirado”.
Isso
quer dizer que são livros ruins? De jeito nenhum. Tutaméia entra em qualquer lista dos melhores livros de contos da
literatura brasileira. Mas é um livro onde o autor (compreensivelmente
atarantado por problemas de demarcação de fronteiras, de saúde e tudo o mais) destilou
tanto a si próprio que passou do ponto.
O
conselho de Lee Strasberg tem a ver com uma certa duplicidade de visão que o
grande ator e a grande atriz conseguem manter: a capacidade de, no “quente” da
cena, serem cem por cento O Personagem, e ainda terem espaço para uns 50% de si mesmos,
aquele controle distanciado que não lhes permite “passar do ponto”.
(Al Pacino em Dick Tracy)
Aquele
sexto ou sétimo sentido que faz o ator de teatro, mesmo numa briga de faca,
saber sempre em que direção está a platéia, e o ator de cinema, mesmo numa cena
de sexo, saber exatamente onde estão as duas ou três câmeras presentes, e que
provável enquadramento cada uma está usando.
É
difícil? Olhe, deve ser, por isso não quero ser ator. Mas, para mim, muito mais
difícil é dirigir automóvel e conversar ao mesmo tempo, e as ruas estão cheias
de gente fazendo isso.
É
um olho no gato e outro no peixe, como diz o ditado, e se não é assim digamos:
é um olho na estrada e outro no retrovisor. Somente com esse grau de entrega e
de distanciamento (cada um puxando numa direção oposta) é possível despejar um
vesúvio de emoção e ao mesmo tempo impedir que a montanha se desmanche toda.
Isto tem tudo a ver, também, com o improviso do ator, esse momento delicado onde ele, por mais
que “saiba suas linhas” (conheça de cor suas falas), se joga no ar como um
trapezista que pula sem saber se tem trapézio livre no lado oposto.
Sobre
O Poderoso Chefão, Lipton pergunta a
Al Pacino:
LIPTON –
Francis [F. Coppola] é famoso pelo amor que tem ao improviso. Ele encorajava
isso, nos filmes da série Godfather?
PACINO – Sim,
mas às vezes você precisa ter muita informação para improvisar. E eu não
recomendaria começar pelo improviso. Eu aconselharia: faça depois de você estar
conhecendo melhor o material.
Parece
a minha conversa, meio século atrás, com um dos repentistas do programa
“Retalhos do Sertão” na Rádio Borborema. Eu perguntei (hoje não lembro se foi a
Santino Luís ou a José Gonçalves): “Qual é a primeira coisa que um repentista
precisa ter?”. Eu pensava que a resposta seria algo tipo “rapidez de
raciocínio”, etc. Ele respondeu: “Boa memória”. E questionei: “Mas a boa
memória não serve para criar de improviso, serve para repetir”, e ele disse: “Não,
a memória serve para você ter onde buscar”.
Para
você ter onde buscar, você tem que se impregnar de todo tipo de material
relativo ao personagem e à história. Pacino diz que quando foi fazer o personagem
de Satã em O Advogado do Diabo (Taylor
Hackford, 1997) passou a devorar tudo a respeito. Inclusive ler o Paraíso Perdido de John Milton (1667).
Isso serviu ao filme? Diretamente, não, mas indiretamente, quem sabe?
PACINO – É isso
que eu digo: osmose. Você penetra numa certa coisa e começa a acumular todo o
material daquilo para dentro de você. Eu sempre recomendo aos atores: absorvam
a maior quantidade possível de material, porque assim você vai ficando cada vez
mais distante das palavras, e mergulhando no comportamento e em tudo o
mais, e isso penetra em você, e é absorvido pelo seu inconsciente... E se tudo
corre bem, isso encontra um canal de saída, e pode resultar em todo tipo de
momentos interessantes.
Lipton
evoca o filme Sea of Love, onde
Pacino contracena com Ellen Barkin, e pergunta se os dois ensaiaram por conta
própria para as cenas em conjunto.
PACINO – Sim, nós
chegamos mesmo a improvisar em algumas cenas. Essa é uma coisa boa que os
filmes têm, e pode significar muito para alguém. Se você improvisa numa cena, e
grava isso em fita, e aquilo é transcrito... E se você tem conhecimento dos
personagens que vocês estão interpretando, e você improvisa, honestamente, numa
situação particular... põe os dois personagens naquela situação e simplesmente
improvisa.
É
bom ter em mente, ouvindo essa menção a “gravar em fita”, que Sea of Love é de 1989, quando os filmes
ainda eram rodados no caríssimo celulóide. Para que servia a fita magnética?
Para gastá-la com improvisos que muitas vezes demoram horas inteiras e não
levam a lugar nenhum, vão direto para o lixo, mas outras vezes descobrem, no
calor da improvisação, caminhos (de texto, inclusive) que não teriam ocorrido
nem ao dramaturgo nem ao diretor.
O
improviso, no ensaio de teatro ou de cinema, é regido por esta mandamento:
“Anote, e incorpore”. Mil bobagens serão ditas e serão feitas, mas sempre que
alguma coisa realmente boa aparecer, anote na memória (ou no papel) e incorpore
à cena.
Não
é muito diferente a reflexão do nonagenário Zé de Cazuza, o homem-gravador das
cantorias do Vale do Pajeú. Zé de Cazuza diz, sensatamente:
“Todo mundo
improvisa. O poeta, o que escreve no papel, muitas vezes está também inventando
na hora, está criando em questão de segundos, no calor do improviso. Qual é a
diferença dele para o cantador de viola? É que ele pode voltar atrás e corrigir
o que não gostou. E o cantador não pode.”
(Al Pacino, "Shylock", em O Mercador de Veneza)