quinta-feira, 19 de junho de 2025

5185) A Feira do Livro de São Paulo (19.6.2025)




“São Paulo, São Paulo, ai como o tempo voa... eu sinto saudade das noites de garoa...” Nem lembro mais quem entoava esta canção dolente, num velho disco de 78 rotações girando em nossa radiola, na Rua Miguel Couto, lá pelos meus dez anos de idade. 
 
Ir a São Paulo tem sido uma oportunidade rara para mim, o que é uma pena, porque é ao mesmo tempo uma viagem ao Passado (o meu passado pessoal) e ao Futuro (ao futuro da humanidade). Caí de paraquedas, dias atrás, na Feira do Livro, na praça Charles Miller, no Pacaembu, e ela me deu a chance de refazer esse passeio. 
 
Fui a trabalho, claro. Eu só viajo a trabalho. Fui lançar meu novo cordel infanto-juvenil, Artur e Isadora na Cidade Subterrânea, pela Editora 34, com ilustrações de Cecília Esteves. 




A Feira do Livro me lembrou muito a nossa Primavera dos Livros, do Rio de Janeiro. Um espaço largo, amplo, aberto, com muita circulação de pessoas, gente comprando livros, gente espiando livros com olhar comprido, casais com crianças, escritores e leitores misturados. Um friozinho agradável (sem aqueles exageros siberianos com que São Paulo nos provoca às vezes) e um sol que alegra sem incomodar. 
 
E principalmente sem aquele barulho ensurdecedor e reverberante das Bienais do Livro feitas em espaços fechados, repletos de gente se espremendo, com engarrafamentos de pedestres em cada esquina, e os batalhões ninguém-solta-a-mão de colegiais. Não me entendam mal. Sou a favor, sim, das Bienais nesse formato; sei que dão uma aquecida nas vendas, e ajudam na formação de jovens leitores. Mas para os cronologicamente prejudicados acabam sendo mais desgastantes do que um Vasco x Flamengo em São Januário. 
 
Estive no estande da Patuá/Patuscada para dar um abraço em Pricila Gunutzmann e Eduardo Lacerda, que abrigam o meu Fanfic (2019). Edu estava doente (já se recuperou, estou sabendo), mas é sempre bom ver desde longe a multidão de autores que aflui para o campo gravitacional dessa editora única e insubstituível. 




Claro que fui à Bandeirola dar um abraço na minha editora Sandra Abrano (na Praça das Bancadas). Lá estão meus contos de ficção científica (A Espinha Dorsal da Memória, Mundo Fantasmo), minha antologia de contos policiais (Crimes Impossíveis), minha coletânea de artigos literários (Não Ficções). Além, é claro, de muita coisa boa, desde Conan Doyle, Franz Kafka e César Vallejo até jovens autores brasileiros, e o livro da própria Sandra, Vestígios, um mergulho assustador nos subterrâneos remanescentes da ditadura militar, infiltrada nas atuais “empresas de segurança” e similares. Recomendo muito. 



(com Sandra Abrano e Finisia Fideli)

 
E passei a maior parte do tempo com a minha turma da “34”, editora que me publica há quase trinta anos. Mando um abraço agradecido a Rafael Mastrocinque, Bruno, Roberta, Raquel Camargo, Lígia, Ivan e os demais – acabei não guardando o nome de todo mundo mas guardei o carinho e a atenção. Fiz um bate-papo instrutivo e alegre com o cordelista Costa Senna (da Editora Global), guerreiro do verso do sertão de Quixadá. 



(com o poeta Costa Senna) 

 
Através da “34” tive a chance de visitar o Colégio Renascença, na Barra Funda, que vem há meses trabalhando meu cordel A Pedra do Meio Dia, ou Artur e Isadora. Conversei durante uma hora com uma centena de garotos e garotas de olho vivo e cabeça rápida, uma turma alegre e inteligente que recitou um cordelzinho rimado (escrito pelo aluno Yuri Galante, do 7º. Ano B). Imprimiram também um livreto de versinhos ilustrados, enchendo minha bola. Outro aluno tocou “Asa Branca” no teclado em minha homenagem! O que mais posso pedir à vida?! 







 
Ainda na Feira, reencontrei meus colegas autores paulistanos, com quem converso vez-em-quando pelos balloons eletrônicos, mas sempre é bom dar uma checada pessoal de cerveja em punho. Encontrei Ronaldo Bressane, Joca Terron & Isabel, Fabricio Corsaletti (que está com seu Um Milhão De Ruas pela “34”), o globe-trotter Carlos Fialho, Roberto Causo & Finisia Fideli, Roberto Fideli (que agora reencontrei como autor já publicado), César Silva, Cacá Lopes... 



(com JP Cuenca, Carlos Fialho e Fabrício Corsaletti)

 
Com J. P. Cuenca e Igor (da revista “Canarana”) aterrissei num fantástico boteco em Perdizes onde assistimos a estréia vitoriosa do Flamengo no Mundial de Clubes, e saímos com o coração nas nuvens e as cordas vocais corroídas. Vencer, vencer, vencer. 



("Flamengo, joga amanhã que eu vou pra lá")
 

A Feira é grande, os encontros providenciais se sucedem. Nem deu tempo de descobrir onde ficavam todas as editoras onde tenho amigos e colegas. Mas ainda deu para dois dedos de prosa com Rubem & Fernanda, da Cambalache (na Tenda das Ilhas), onde ganhei o livro do meu ex-editor na revista Língua Portuguesa, Luiz Costa Pereira Júnior: Vamos Matar Oswald, uma experiência fascinante de História Alternativa ambientada na época do Modernismo brasileiro, e que já está na fila de leitura. E, na mesma Tenda, com Carla & Íris da “Meia Azul”, que publicou minha tradução dos contos extraordinários de Alice Sheldon, a.k.a. “James Tiptree Jr.”, Mulheres Que os Homens Não Veem



 
Depois de muito perguntar, dei com os costados (na Praça das Bancadas) na Editora Papéis Selvagens, onde localizei um livro de César Aira que procurava há tempos, troquei figurinhas com o editor Rafael Gutiérrez, e ganhei o curiosíssimo Tudo É Grande Demais Para a Pobre Medida da Nossa Pele, de Bernardo Brayner, que também já se instalou na fila de leitura (a esta altura mais comprida do que a da Praça de Alimentação). 
 
As feiras literárias desse tipo são espaços de convivência e de atração, em que são os livros o mel e nós as moscas. Ficamos esvoaçando entre esses milhares de títulos, milhares de capas, milhares de portais à nossa espera, cheios das “promessas divinas da esperança”, sentimos a vertigem gozosa das mil e uma faces do Ser, e sentimos ao mesmo tempo “a angústia de uma vida demasiado curta para tantas bibliotecas” (Rayuela). 

Cada um de nós percorre um caminho diferente criado por suas escolhas e por seus acasos. Não há duas pessoas que tenham lido exatamente os mesmos livros. Deve ser para isto que pessoas e livros são tantos.
 
Você leu o quê? Você viu o quê? O que descobriu? O que encontrou? O que ganhou? O que sentiu? O que aprendeu? O que duvidou?
 
E as possibilidades, como sempre, são infinitas.




 
 
 
 



sexta-feira, 13 de junho de 2025

5184) Contracapa de Bing (13.6.2025)





(Friedensreich Hundertwasser, "Florescem em jardins amados")
 

 
&  ninguém está mais no escuro do que o cara que manipula o holofote
 
&  pensei que aquilo ia ser como um copo de água-de-coco, mas foi um picolé de água-do-mar
 
&  às vezes parece que a gente está fugindo a pé e perseguido por um tanque de guerra
 
&  certas frases têm uma melodia macabra em qualquer idioma
 
&  no amor não se pode procrastinar decisões, é um xadrez com peças de gelo
 
&  publicar por editora pequena é tocar guitarra sem amplificador
 
&  em breve vai chegar a moda das duplas caipiras com irmãos siameses
 
&  no dia que aparecer uma zebra com as cores das listras invertidas ninguém vai perceber
 
&  uma cidade é uma torre que cresce na largura
 
&  ator de verdade carrega o palco na sola dos pés
 
&  tem gente que vende a alma e fala mal de quem vendeu o corpo
 
&  se todos os loucos de um hospício tivessem a mesma alucinação, não sei não
 
&  vai chegar o tempo em que bandeira de país vai vir com um código de barras
 
&  não sei o que é mais numeroso, espécies de besouros ou modelos de roupas
 
&  fora da jaula todo bicho é fera
 
&  é melhor ser arroz de festa do que cafezinho de velório
 
&  um milagre que se repete se desvaloriza
 
&  a nova mutação no mundo moderno é o Sentauro, tronco de homem e quatro pernas de cadeira
 
&  a Geometria não deve ser reducionista, mas é impossível dispor de uma régua para cada formato de curva
 
&  sou professor de fracasso na Escola do Sucesso
 
&  ninguém tem o direito de dizer tudo que pensa, e um escritor não tem a obrigação de pensar tudo que diz
 
&  coitado do Sol, que não consegue enxergar as sombras que projeta
 
&  a frase manuscrita é o registro sismográfico do que acontece aqui dentro
 
&  é isso que nos aguarda: uma biblioteca só de Bíblias
 
&  não precisamos encontrar todas as respostas, é preciso deixar alguma distração para as gerações futuras
 
&  eu era feliz e não sábio
 


domingo, 8 de junho de 2025

5183) A poesia não tem leis (8.6.2925)



(ilustração: Wassily Kandinsky)

 
Já fiz muitas oficinas de poesia pelo Brasil afora, sem contar as oficinas online, que cresceram de importância nos anos mais recentes. 
 
O Brasil está cheio de poetas, ou de pessoas querendo se exprimir através de poemas, o que não é necessariamente a mesma coisa. Acho isso uma boa notícia. Todo mundo deveria poder escrever poemas, assim como todo mundo deveria saber escrever cartas. 
 
É uma forma de expressão pessoal, onde você pode ter uma extensão incrível de liberdade, para dizer o que quer, do jeito que quiser, falar do que sente e do que não sente, do que viu, do que imaginou. 




O filósofo Hegel dizia que o domínio da poesia é o reino infinito do espírito. Minha divergência com Hegel (olha só o atrevimento) é que para ele poesia não se faz com palavras, e sim com idéias. Eu acho o contrário, mas como sou conciliador, gloso isto desta maneira: “Tudo que faz parte do espírito humano e pode ser expresso em palavras pode ser expresso em forma de poesia”. 
 
Nas minhas oficinas a coisa mais difícil de ensinar sempre foi o uso da forma fixa, da poesia em estrofes fixas, com uso obrigatório da métrica e da rima. Todo mundo quer fazer poesia, mas existe uma aversão às regras, à disciplina que a métrica e a rima exigem. Eu entendo. É como a aversão à matemática, a algo que tem regras rígidas e não pode ser escamoteado pelo aluno. 
 
Você não pode dizer: “Eu acho que 2 mais 5 é igual a 40, é minha opinião”. Você não pode dizer: “Eu vou fazer um soneto com 31 linhas de tamanhos diferentes, é minha maneira de fazer soneto”. 
 
Pode?  Ou não pode?  Existem leis poéticas?  Quem as escreveu?  Se a gente desobedecer, que viatura virá bater à nossa porta às 5 da manhã? 




Nas últimas semanas tenho lido as traduções da poesia de Lord Byron feitas por André Vallias (Byron: poemas, cartas, diários, &c, Ed. Perspectiva, 2025) - e tenho caraminholado um pouco a respeito das tais formas fixas, muitas das quais o Lord praticava duzentos anos atrás, e continuam a ser praticadas hoje em dia, inclusive em nosso idioma. 
 
O verso inglês se organiza em torno de conceitos métricos clássicos, que vêm da poesia grega e da poesia latina. Não vou me estender a respeito porque confesso que nunca estudei essa poética. Minha escola – mais rudimentar, talvez – é a escola de contagem silábica, da literatura de cordel e dos cantadores de viola, que é mais próxima, em alguns aspectos, do verso praticado pelos parnasianos e simbolistas brasileiros. 
 
Tanto é assim que temos um poeta como “Cancão” (João Batista de Siqueira), que foi uma espécie de sonetista parnasiano em São José do Egito, lá no Vale do Pajeú, em pleno epicentro da cantoria de viola. 



 
Voltando a Lord Byron, me deparei com um longo comentário de Edgar Allan Poe sobre a métrica do Lord em seu ensaio clássico “The Rationale of Verse”, traduzido entre nós como “Análise Racional do Verso”. 
 
Os teorizadores da métrica criaram uma imensa terminologia para designar os “pés” poéticos: iambo, troqueu, espondeu, dáctilo, etc. Neste trecho, Poe está comentando um verso “dactílico” de Byron, verso que usa o “dáctilo”, uma unidade métrica que consiste em uma sílaba forte seguida por duas fracas. A palavra DÁ-ti-lo, por exemplo; ou a palavra SÍ-la-ba
 
Diz Poe, comentando um verso de Byron que exibe uma leve desobediência à lei: 
 
Isto convinha lindamente bem; mas as Gramáticos não admitiam tal pé, como de uma sílaba; e além do mais o ritmo era dactílico. Desesperançados, os livros são rebuscados, porém, e por fim os investigadores são recompensados com uma plena solução do enigma, na profunda “Observação”, citada no começo deste artigo: “Quando está faltando uma sílaba, diz-se que o verso é catalético; quando a medida é exata, o verso é acatalético; quando há uma sílaba redundante, forma hipérmetro”. Isto basta. Sentencia-se que a linha anômala é catalética na cabeça e forma hipérmetro na cauda – e assim por diante, logo se descobrindo que quase todas as linhas restantes se acham em similar categoria, e que o que flui tão maciamente para o ouvido, embora tão asperamente para o olho, é, afinal de contas, uma simples misturada de cataleticismo, acataleticismo e hipermetrismo, para não dizer pior. 
(Edgar Allan Poe, Poesia e Prosa, Ed. Globo, 1960, trad. Oscar Mendes e Milton Amado, pág. 535)
 
A questão aqui não é o verso de Byron em si, é o fato de que os gramáticos e os teóricos, como quaisquer outros cientistas, são vulneráveis à Psicose Classificatória. É precisa classificar tudo, dividir em grupos, depois dividir esses grupos em setores, e cada setor em departamentos, e cada departamento em sub-departamentos e assim por diante. E botar um nome diferente em cada coisa descoberta. 
 
Não nego a importância desse processo – apenas acho que não é decorando essas taxonomias que se aprende a escrever poesia. 
 
Explicar que certos versos são cataléticos e outros são acataléticos é como dizer que um tem consoantes fricativas e outro tem consoantes bilabiais. Provavelmente é verdade, e isso talvez resolva o problema de quem classifica, mas adianta muito pouco a quem escreve. 


 

Quando penso nessas classificações dos versos, lembro das classificações dos passos de dança. Cada dança tem certos “passos” estabelecidos pela tradição. O tango, por exemplo. Existe toda uma coreografia de movimentos combinados entre o homem e a mulher, movimentos que podem ser aprendidos por qualquer pessoa, numa escola de dança qualquer. 
 
Penso nas nossas danças-de-salão brasileiras, a gafieira, etc.  Existem passos já estabelecidos: o “cavaleiro” paga a dama, roda pra um lado, roda pro outro, dá uma volta, pega na cintura, faz uma acrobacia... Como dizia meu pai, quando é bem feito fica muito bonito. 
 
Todo mundo é obrigado a dançar assim? De jeito nenhum. Eu não sou um dançarino muito bom, sou da escola dois-pra-lá-dois-pra-cá, mas não importa – danço para me divertir, não para dar espetáculo; mas eu não posso fazer minha dancinha feijão-com-arroz e dizer que estou dançando tango, ou gafieira. Não estou. 
 
Às vezes alguém vem me mostrar algo que escreveu: “Olha aqui esse meu cordel.” Eu leio e respondo: “É um bom poema, bem escrito, mas não é um cordel. O cordel tem regras.” 
 
Ou então: “Isto aqui é um ótimo poema, mas não é um soneto. Um soneto tem regras”. 
 
Quando certos tipos de poemas aparecem com regras, não são as regras do Código Penal. são as regras de uma dança, ou de um jogo. Uma atividade que tem um lado lúdico. E é da essência do jogo a existência de regras um tanto arbitrárias, mas que são aceitas com alegria pelos participantes. 
 
Quando as formas poéticas propõem regras, é para o prazer consensual de quem as pratica, e quem não sente prazer nessa atividade deve ter escolhido o meio de expressão errado. 
 
 
 
 
 
 




terça-feira, 3 de junho de 2025

5182) A Conspiração e o Absurdo (4.6.2025)



 
Uma das minhas frases preferidas é a de Philip K. Dick quando disse que a mente humana precisa de significado tanto quanto o corpo humano precisa de água. Sem isso, definham, ressecam, morrem. 
 
Um dos elementos desse “significado” é o que chamamos de relação causa-efeito: “Isto acontece por causa daquilo, e vai por sua vez ser causa daquilo-outro”. Ou então: vemos meia dúzia de objetos ou elementos soltos, isolados, e precisamos produzir um conceito capaz de uni-los todos, alguma coisa que todos eles têm em comum. E assim por diante. 
 
As famosas “teorias da conspiração”, tão em moda nas redes sociais, não são uma coisa nova na história do mundo. São um segmento de uma tendência maior, a de observar fenômenos inexplicáveis (ou ainda não explicados satisfatoriamente) e conceber uma teoria onde todos eles se encaixem. 
 
Curiosamente, é exatamente isto que um paranóico faz: inventar explicações fantasiosas para fatos banais. Mesmo fantasiosas são impecavelmente lógicas e bem argumentadas. Um paranóico tira da cartola uma teoria impecável demonstrando que está sendo perseguido pela KGB e pela Sociedade Internacional dos Observadores de Pássaros, cujo objetivo conjunto é impedir que ele assuma o trono da Turquia, do qual é o legítimo herdeiro. 
 
As sociedades – ou pelo menos faixas enormes das populações – procedem do mesmo jeito. Percebem fatos isolados e tentam explicá-los através de uma “teoria unificada”. Reduzir o desconhecido ao conhecido. Por mais sem pé nem cabeça que esse “conhecido” possa ser. 
 
E é aí que entram muitas dessas Teorias da Conspiração. As explicações são bizarras? Sim, mas são articuladas com aparente lógica. Vale tudo – menos o Absurdo do não haver explicação. 
 
Andei lendo em revistas já meio antigas umas resenhas do livro The Man From Mars: Ray Palmer’s Amazing Pulp Journey (Penguin, 2013), de Fred Nadis. 



 
Raymond A. Palmer, cujo nome só é lembrado hoje por leitores de ficção científica, é um dos responsáveis pela mentalidade teórico-conspiratória que hoje fervilha nas redes sociais. Foi ele um dos deflagradores principais, de dois cultos que marcaram a segunda metade do século 20: a lenda dos discos voadores e a lenda da Lemúria. 
 
Ray Palmer (1910-1977) foi uma daquelas figuras excêntricas que floresceram na estufa caótica da pulp fiction norte-americana. Foi um garoto doente, confinado à cama e à leitura voraz de revistas populares. Um acidente de carro ainda na infância danificou sua coluna vertebral e afetou sua saúde pelo resto da vida. Palmer, adulto, nunca cresceu acima de 1 metro e 20. Isto não o impediu de ser extrovertido, falastrão, ousado, contestador. 



(Ray Palmer)

 
Era o típíco fã de FC da sua época, publicando histórias e cartas nas revistas, até que foi contratado para editar a revista-fundadora do gênero, Amazing Stories, que andava mal das pernas sob a direção meio sisuda de T. O’Connor Sloane. A circulação da revista tinha caído de 100 mil em 1926 para 40 mil em 1938. 
 
Diz Richard A. Lupoff (Locus 629, junho 2013, p. 23): 
 
Sob a orientação de Palmer e com o apoio da editora Ziff-Davis, Amazing Stories experimentou uma completa renovação, tornando-se uma revista mais colorida e pitoresca. Palmer deixou para trás o tom mais formal e professoral da revista e adotou uma postura mais coloquial e descontraída. Os leitores aceitaram de imediato. Ele substituiu as histórias mais lentas e carregadas de ciência, que eram as preferidas do ex-editor Sloane, por histórias mais excitantes, baseadas em ação e aventura. (trad. BT) 
 
O objetivo de Palmer era, por um lado, atingir um público de adolescentes para quem a principal revista concorrente, Astounding Science Fiction, era demasiado séria. Mesmo assim, coube a Palmer publicar o conto de estréia de Isaac Asimov (“Marooned off Vesta”, março de 1939). 
 
E nessa euforia editorial cai nas mãos de Palmer um conto excêntrico de um desconhecido, Richard Shaver, sobre uma civilização subterrânea que influencia a mente humana através de raios projetados à distância. Palmer viu o potencial da história e a publicou no número de março de 1945, sob o título “I Remember Lemuria”. 



 
A revista saltou para 200 mil exemplares por mês; Palmer percebeu o filão inesgotável que havia ali, e passou a publicar um material cada vez mais  voltado para o cultismo e o ocultismo, afastando-se da ficção científica. 
 
Nesta mesma época, ele embarcou na onda de ufologia que teve início em junho de 1947, quando o aviador Kenneth Arnold avistou uma formação de nove objetos voadores, quando sobrevoava a região do Mount Rainier. Os dois tornaram-se amigos, e a revista Fate, que Palmer fundou em 1948, deu um enorme impulso à onda dos “discos voadores” que tomou conta da América. Outras revistas e livros se seguiram, sempre explorando o filão da mistura entre FC e ocultismo. 



 
O shaverismo e os discos voadores são sintomas típicos da Guerra Fria: “estamos sendo ameaçados por inimigos malignos que nos influenciam à distância e que mandam naves misteriosas para nos espionar e nos sequestrar”. O elemento novo que aparece nesse fenômeno é essa relativa promiscuidade entre a literatura de ficção e as invenções deliberadas da imprensa sensacionalista. 
 
Ficção Científica e Ufologia são duas áreas próximas, mas existe uma certa frcção entre as duas, uma certa tensão. Cada uma, curiosamente, sente-se ofendida quando é confundida ou comparada com a outra. 
 
Para o pessoal da ficção científica, a FC é uma literatura como qualquer outra. Uma literatura baseada na imaginação, mas onde existe um acordo tácito, entre autor e leitor, de que nada daquilo é verdade factual. E para muita gente da FC, os ufologistas são pessoas ingênuas: leem narrativas bizarras, mirabolantes, e acreditam que são verdadeiras. 
 
Para o pessoal da Ufologia, a FC é uma atividade irrelevante justamente por ser assumidamente imaginária; são histórias que não aconteceram e por isso de nada interessam, enquanto que a Ufologia investiga fatos reais, coisas que têm importância. 
 
Raymond Palmer teve um papel importante nesse processo de misturar as águas da ficção e do jornalismo; da história de ficção e da pseudo reportagem. Com isto, ele turbinou ainda mais essa tendência humana a perceber coisas bizarras e extraordinárias que não estão ali. Dizem que a beleza está no olho de quem observa (“beauty is in the eye of the beholder”), mas não é só a beleza, é qualquer coisa que mexa, perturbe, inquiete, fascine, atraia a atenção e desperte associações de idéias que o próprio observador não sabe direito de onde vêm. 



 
Em O Mundo Assombrado pelos Demônios (1995), Carl Sagan dizia, a respeito da febre de avistamentos de discos voadores: 
 
A maioria das pessoas informava honestamente o que via, mas o que elas viam eram fenômenos naturais, ainda que pouco familiares. Algumas visões de UFO eram na verdade aviões pouco convencionais, aviões convencionais com padrões de iluminação inusitados, balões de alta altitude, insetos luminescentes, planetas vistos em condições atmosféricas incomuns, miragens e aparições ópticas, nuvens lenticulares, fogos de santelmo, parélios, meteoros incluindo bolas de fogo verdes, satélites, ogivas e lançadores de foguetes reenctrando espetacularmente na atmosfera. 
(Companhia das Letras, p. 92, trad. Rosaura Eichenberg) 
 
Quando uma pessoa avista imagens extraordinárias e tenta dar-lhes uma explicação, há duas atitudes científicas possíveis. A primeira é tentar averiguar o que de fato foi visto, independentemente da interpretação do observador. A segunda é ignorar provisoriamente o que foi (ou pode ter sido) avistado e perguntar por que motivo o observador lhe deu aquela explicação, e não outra. 
 
C. G. Jung foi um dos cientistas sérios que se dedicou a entender o que a mente das pessoas e não os seus olhos) estava vendo. Ele dava sempre um descontos nos relatos recolhidos, e fazia esta divertida ressalva: 
 
O que é pior: a maioria destes relatos vem da América, a terra dos superlativos e da ficção científica. (...) Vistos sob essa luz, os avistamentos de Ovnis podem parecer a um observador cético uma história que é contada por todo o mundo, mas difere de um boato comum pelo fato de que é expressa em forma de visões, ou talvez deva sua existência a elas, e agora é mantida viva por elas. Eu chamaria a essa variação, comparativamente rara, um boato visionário. Algo bastante próximo das visões coletivas como, digamos, dos cruzados durante o cerco de Jerusalém, das tropas de Mons na Primeira Guerra Mundial, ou dos fiéis devotos do Papa em Fátima, Portugal. (...) O boato está ligado à psicologia do grande pânico que se alastrou nos Estados Unidos pouco antes da Segunda Guerra Mundial, quando uma transmissão de rádio baseada no romance de H. G. Wells, sobre marcianos invadindo Nova York, causou uma fuga generalizada e numerosos acidentes de carro. Esta transmissão, evidentemente, tocou a emoção latente em conexão com a iminência da guerra. 
(Flying Saucers: a Modern Myth of Things Seen in the Skies, Princeton University Press, 1991, trad. BT)
 
O ser humano aceita e suporta a idéia de qualquer catástrofe ou qualquer conspiração maligna, porque uma catástrofe ou uma conspiração fazem sentido. O que ele não aceita nem suporta é a falta de uma explicação qualquer – é o Absurdo. 
 
 




quarta-feira, 28 de maio de 2025

5181) Al Pacino, o ator e o improviso (28.5.2025)



 
Um programa que eu não perdia no antigo Canal Multishow (ou seria no antigo GNT?) era Inside the Actor’s Studio, aquele talk show comandado por James Lipton. Um papo sobre cinema e teatro, com atores, atrizes, diretores, etc., num palco, diante de uma platéia cheia de estudantes de teatro. 
 
Os melhores conselhos do teatro são os que a gente pode aplicar na literatura, assim como os melhores da pintura são os que a gente pode aplicar no cinema, e assim por diante. Isto não é uma verdade científica, é claro. É apenas uma frase-de-efeito para sugerir que a mão da gente pode até estar tocando numa árvore, mas é obrigação do olho enxergar a floresta. 
 
Al Pacino, entrevistado por Lipton (o programa hoje está no YouTube, com legendas em inglês que o algoritmo improvisa na hora), lembra seus primeiros trabalhos juvenis sob a direção de Lee Strasberg, um dos criadores do Actor's Studio.

É interessante lembrar que Strasberg aparece no Poderoso Chefão 2, encanecido, comedido, exato.



(Lee Strasberg e Al Pacino, O Poderoso Chefão 2)

 
E ele recorda alguns conselhos que recebeu do mestre.
 
PACINO – Ele me ensinou também uma coisa que nem sempre eu me lembro de por em prática... e que eu considero algo valioso, e que eu esqueço, às vezes... e eu gostaria que ele estivesse por perto para me lembrar. Ele dizia: “Às vezes, não vá o mais longe que pode.” 
 
LIPTON – Fique firme em você mesmo. 
 
PACINO (concordando) – Fique firme em você mesmo. Exatamente. 
 
O que significa esse “não vá o mais longe que pode”? Pode ser uma porção de coisas, mas no momento o que me vem à cabeça é algo como: “Não passe do ponto”. Ser criativo é ótimo, mas tem um ponto, e não passe do ponto. Ser emocionalmente intenso é ótimo, mas não passe do ponto. Ser cerebral? Beleza, mas não passe do ponto.  
 
Trago isso para a literatura porque um escritor está sujeito a duas catástrofes, a do bloqueio criativo e a da incontinência criativa, se bem me exprimo. É quando a criação verbal encontra o tom certo, o diapasão certo, o fluxo certo, mas aí o escritor se entusiasma consigo mesmo e não consegue conter o fluxo. Pelo contrário: ele se desdobra na tentativa de manter o fluxo por duas páginas, doze, vinte.  
 
E nem sempre é o que o texto está pedindo. Não há regra para isto, todo texto é diferente, e não há duas noites-de-trabalho iguais. Não tem como passar uma receita precisa. É preciso sentir onde é o ponto de dizer “chega, tá bom, vamos para o próximo”. 




Você fazer essas coisas é como fechar uma caixa de fósforos: você vai empurrando a caixinha de dentro, a que guarda os palitos, até encaixá-la na caixinha de fora... E aí pára. É esse o ponto. Se continuar empurrando, a caixa dos palitos sai pelo outro lado. 
 
Não passe do ponto. O que às vezes é pedir muito para um ator ou atriz, que trabalha com o corpo – o rosto, as mãos, os olhos, a voz, esse repertório de partes traiçoeiras que passamos a vida tentando manter sob controle, tentando evitar que nos traiam. 
 
Vale para os escritores, sim, e mesmo os melhores dentre eles passam do ponto, às vezes. Eu afirmo (polemicamente) que o ponto alto da obra de James Joyce é o Ulisses, e com Finnegans Wake ele passou do ponto. Afirmo que o ponto alto da obra de Guimarães Rosa é Grande Sertão: Veredas, e que com Tutaméia ele passou do ponto. Neste último caso, chamo ao banco das testemunhas um roseano insuspeito, o mestre Ariano Suassuna, para quem Tutaméia parecia “amaneirado”. 
 
Isso quer dizer que são livros ruins? De jeito nenhum. Tutaméia entra em qualquer lista dos melhores livros de contos da literatura brasileira. Mas é um livro onde o autor (compreensivelmente atarantado por problemas de demarcação de fronteiras, de saúde e tudo o mais) destilou tanto a si próprio que passou do ponto. 
 
O conselho de Lee Strasberg tem a ver com uma certa duplicidade de visão que o grande ator e a grande atriz conseguem manter: a capacidade de, no “quente” da cena, serem cem por cento O Personagem, e ainda terem espaço para uns 50% de si mesmos, aquele controle distanciado que não lhes permite “passar do ponto”. 



(Al Pacino em Dick Tracy)
 

Aquele sexto ou sétimo sentido que faz o ator de teatro, mesmo numa briga de faca, saber sempre em que direção está a platéia, e o ator de cinema, mesmo numa cena de sexo, saber exatamente onde estão as duas ou três câmeras presentes, e que provável enquadramento cada uma está usando. 
 
É difícil? Olhe, deve ser, por isso não quero ser ator. Mas, para mim, muito mais difícil é dirigir automóvel e conversar ao mesmo tempo, e as ruas estão cheias de gente fazendo isso. 
 
É um olho no gato e outro no peixe, como diz o ditado, e se não é assim digamos: é um olho na estrada e outro no retrovisor. Somente com esse grau de entrega e de distanciamento (cada um puxando numa direção oposta) é possível despejar um vesúvio de emoção e ao mesmo tempo impedir que a montanha se desmanche toda. 
 
Isto tem tudo a ver, também, com o improviso do ator, esse momento delicado onde ele, por mais que “saiba suas linhas” (conheça de cor suas falas), se joga no ar como um trapezista que pula sem saber se tem trapézio livre no lado oposto. 
 
Sobre O Poderoso Chefão, Lipton pergunta a Al Pacino: 
 
LIPTON – Francis [F. Coppola] é famoso pelo amor que tem ao improviso. Ele encorajava isso, nos filmes da série Godfather
 
PACINO – Sim, mas às vezes você precisa ter muita informação para improvisar. E eu não recomendaria começar pelo improviso. Eu aconselharia: faça depois de você estar conhecendo melhor o material. 
 
Parece a minha conversa, meio século atrás, com um dos repentistas do programa “Retalhos do Sertão” na Rádio Borborema. Eu perguntei (hoje não lembro se foi a Santino Luís ou a José Gonçalves): “Qual é a primeira coisa que um repentista precisa ter?”. Eu pensava que a resposta seria algo tipo “rapidez de raciocínio”, etc. Ele respondeu: “Boa memória”. E questionei: “Mas a boa memória não serve para criar de improviso, serve para repetir”, e ele disse: “Não, a memória serve para você ter onde buscar”. 
 
Para você ter onde buscar, você tem que se impregnar de todo tipo de material relativo ao personagem e à história. Pacino diz que quando foi fazer o personagem de Satã em O Advogado do Diabo (Taylor Hackford, 1997) passou a devorar tudo a respeito. Inclusive ler o Paraíso Perdido de John Milton (1667). Isso serviu ao filme? Diretamente, não, mas indiretamente, quem sabe? 
 
PACINO – É isso que eu digo: osmose. Você penetra numa certa coisa e começa a acumular todo o material daquilo para dentro de você. Eu sempre recomendo aos atores: absorvam a maior quantidade possível de material, porque assim você vai ficando cada vez mais distante das palavras, e mergulhando no comportamento e em tudo o mais, e isso penetra em você, e é absorvido pelo seu inconsciente... E se tudo corre bem, isso encontra um canal de saída, e pode resultar em todo tipo de momentos interessantes. 

 




Lipton evoca o filme Sea of Love, onde Pacino contracena com Ellen Barkin, e pergunta se os dois ensaiaram por conta própria para as cenas em conjunto. 
 
PACINO – Sim, nós chegamos mesmo a improvisar em algumas cenas. Essa é uma coisa boa que os filmes têm, e pode significar muito para alguém. Se você improvisa numa cena, e grava isso em fita, e aquilo é transcrito... E se você tem conhecimento dos personagens que vocês estão interpretando, e você improvisa, honestamente, numa situação particular... põe os dois personagens naquela situação e simplesmente improvisa. 
 
É bom ter em mente, ouvindo essa menção a “gravar em fita”, que Sea of Love é de 1989, quando os filmes ainda eram rodados no caríssimo celulóide. Para que servia a fita magnética? Para gastá-la com improvisos que muitas vezes demoram horas inteiras e não levam a lugar nenhum, vão direto para o lixo, mas outras vezes descobrem, no calor da improvisação, caminhos (de texto, inclusive) que não teriam ocorrido nem ao dramaturgo nem ao diretor. 
 
O improviso, no ensaio de teatro ou de cinema, é regido por esta mandamento: “Anote, e incorpore”. Mil bobagens serão ditas e serão feitas, mas sempre que alguma coisa realmente boa aparecer, anote na memória (ou no papel) e incorpore à cena. 
 
Não é muito diferente a reflexão do nonagenário Zé de Cazuza, o homem-gravador das cantorias do Vale do Pajeú. Zé de Cazuza diz, sensatamente: 
 
“Todo mundo improvisa. O poeta, o que escreve no papel, muitas vezes está também inventando na hora, está criando em questão de segundos, no calor do improviso. Qual é a diferença dele para o cantador de viola? É que ele pode voltar atrás e corrigir o que não gostou. E o cantador não pode.” 


 


(Al Pacino, "Shylock", em O Mercador de Veneza
 
 
 
 



quinta-feira, 22 de maio de 2025

5180) A catástrofe nos salvará? (22.5.2025)




 
“Somente a catástrofe nos salvará” – é uma frase-meme que circula há anos pelas redes sociais. Não lhe conheço a origem. Se pesquisar um pouco talvez descubra que precede a Revolução Francesa. Indo mais longe, talvez a descubra no incêndio de Lisboa ou na queda de Constantinopla. Enfim: diz a sabedoria popular que a crise de uns é a oportunidade de outros. (Ou será a sabedoria corporativa? A pesquisar.) 
 
Estudando literatura policial nestas últimas semanas, me voltou a memória a história de Flitcraft, uma pequena parábola existencialista que Dashiell Hammett infiltrou num romance policial, O Falcão Maltês, de 1929. A história é contada (à guisa de exemplo) pelo detetive Sam Spade, a sua cliente Brigid O’Shaughnessy. 
 
Flitcraft é um sujeito pacato que desaparece de repente. Contabilista, bem casado, dois filhos, situação financeira confortável. Foi trabalhar de manhã e nunca mais voltou. A polícia passa o pente fino no Estado inteiro, e nada. Alguns anos depois, Sam Spade é contratado pela esposa-quase-viúva para averiguar uma pista. Alguém acha que avistou Flitcraft em outra cidade, e o detetive vai conferir. 
 
É o próprio, vivinho da silva. Pressionado, ele confessa a Sam Spade que estava com a vida encaminhada, tranquila, feliz, mas um dia, ao sair do trabalho para almoçar, uma viga de aço despencou de um décimo andar e espatifou o calçamento, um metro à frente dele. Flitcraft entendeu que não morreu por um triz, e o seu mundo – firme, confiante, protegido por forças invisíveis – desabou. 
 
Sua reação foi fugir como se tivesse morrido naquele instante. A família tinha posses, estava amparada. Mas a vida, como um todo, tinha perdido o sentido. Ele ficou zanzando pelo país, acabou se fixando noutra cidade, arranjou outro emprego, voltou a casar. Mas não era mais a mesma pessoa. A queda da viga, que não o esmagou por distância de um passo, teve um efeito revelador do Absurdo da existência humana. Diz o detetive: “Foi como se alguém tivesse levantado a tampa da vida, e revelado seu mecanismo”. 
 
A catástrofe (ou quase-catástrofe) salvou Flitcraft?  Depende do ponto de vista. Um sujeito de persuasão religiosa veria na queda da viga um mero aviso e a confirmação de que “somebody up there likes me”. Mandaria rezar uma missa em ação de graças, e passaria a viver mais feliz do que antes. A questão é que Flitcraft já era (posso especular assim) um indivíduo vulnerável ao Absurdo. Alguém que já desconfiava ser a vida (como dizia Carlos Drummond) “um vácuo atormentado, um sistema de erros”, e precisava apenas de um gatilho ou de uma fagulha para mandar aquilo tudo pelos ares. 



 
Flitcraft é um herói absurdo, como o Meursault de Albert Camus (O Estrangeiro, 1942), que causa a própria catástrofe ao abater um rapaz a tiros na praia, sem motivo algum além de precipitar o próprio enforcamento. Ou como o narrador de A Queda (1956), do mesmo Camus, que é um perfeito cidadão de bem, pilastra moral da sociedade, até a noite em que vê uma mulher pular no rio durante a madrugada, e não faz nada para salvá-la – e a partir daí começa a perceber que não passa de um covarde e um calhorda. E fica feliz com essa auto-descoberta. 
 
A catástrofe talvez não salve mas sirva de espelho para que um indivíduo finalmente saiba quem é. Como dizem os soldados, é só na hora do bombardeio que alguém descobre se é corajoso ou não. 
 
A felicidade, ou a aparência dela, pode ser apenas um verniz ilusório para nos convencer de que o mundo faz sentido. Não faz. Ou talvez faça, mas num plano a que não temos acesso. No filme The Matrix (1999), o herói tem a opção de continuar iludido, vivendo numa metrópole capitalista, moderna e normal, ou tomar a pílula que lhe revela a Realidade tal como é. O verdadeiros mecanismos por baixo da tampa, como dizia Sam Spade. 



 
O escritor Haruki Murakami ficou chocado, como o mundo inteiro, com os atentados ocorridos em 1995 no metrô de Tóquio, quando os fanáticos da seita apocalíptica Aum Shinrikyo envenenaram milhares de pessoas com gás “sarin”, provocando dezenas de mortes. O choque provocado por essa catástrofe fez Murakami entrevistar dezenas de vítimas e alguns dos terroristas, o que resultou no livro Underground, onde ele diz: 
 
Eu creio que todo japonês tem uma visão do mundo apocaliptica, um sentimento de medo invisível, inconsciente.  A sociedade é a base da vida das pessoas e elas não sabem o que vai acontecer com essa sociedade. Portanto, a idéia de “O Fim” é um dos eixos em torno dos quais a Aum Shinrikyo girava.
 
Não há como não ver nisso um reflexo do trauma da bomba atômica, a consciência de que em certo momento da história caiu sobre um país orgulhoso e organizado a pior catástrofe possível – uma arma de espantosa brutalidade, inventada e disparada por um inimigo impiedoso. Godzilla e outros monstros surgiram no cinema da Guerra Fria como reflexos desse pesadelo, o medo de uma força-bruta que vem para destruir às cegas. No atentado do metrô, essa paranóia ganhou uma nova face. 
 
A verdade, porém, é que essas catástrofes são sempre parciais, e mesmo que exterminem milhões elas acabam poupando milhões de outros, e para esses há sempre uma chance de sacudir a poeira e dar a volta por cima. A catástrofe não os salva, mas talvez os deixe vacinados.
 
Não é outra a filosofia por trás de muitos romances apocalípticos de FC, as famosas histórias de fim do mundo, em que o planeta é varrido por um cataclismo natural ou por uma guerra atômica, mas se reergue das próprias cinzas e acha uma forma de recomeçar, em outros termos. 
 
E, como no caso do acomodado Flitcraft, do ingênuo e cauteloso-pouco-a-pouco (no dizer de Mário de Andrade) Flitcraft, a desgraça vem para dar uma sacudida, uma renovada, um chega-pra-lá. Um abre-o-olho tão necessário a quem pensa que o mundo agora está pronto e podemos viver em paz por todos os séculos dos séculos-amém. 




No clássico The Day of the Triffids (1953), John Wyndham conta como uma chuva de meteoros fez com que 90% da humanidade ficasse cega da noite para o dia. E não somente cega, mas à mercê das “trífides”, plantas venenosas, carnívoras e que são capazes de caminhar. Parece calamidade demais para uma humanidade só, mas a certa altura o protagonista e narrador Bill Masen afirma: 
 
(...) O que algumas vezes me parecera uma existência vazia estava se tornando agora uma vantagem. Meus pais estavam mortos, minha única tentativa de casamento tinha fracassado poucos anos antes, e não havia nenhuma pessoa que dependesse especialmente de mim. E, curiosamente, descobri que o meu sentimento principal – e eu sabia que deveria estar sentindo o contrário – era de alívio... 
 
Não era só o conhaque, porque esse sentimento persistiu. Acho que deve ter surgido da sensação de estar me defrontando com uma situação nova e inédita para mim. Todos os velhos problemas, todos os contratempos triviais, tanto pessoais quanto coletivos, tinham sido decepados com um só golpe. Só Deus sabia que outros golpes poderiam sobrevir – e tudo indicava que seriam muitos – mas seriam novos. Eu estava me erguendo no meio de tudo aquilo como alguém dono de si mesmo, e não um parafuso numa engrenagem. Talvez o mundo que eu estava prestes a enfrentar estivesse cheio de horrores e de perigos, mas eu poderia contar comigo mesmo para encará-los – não estaria sendo empurrado de um lado para outro por forças e interesses que eu não compreendia e que não me interessavam. 
(The Day of the Triffids, cap. 3, trad. BT)
 
Fala-se por aí que é mais fácil destruir o mundo do que acabar com o Capitalismo. São dois apocalipses. Talvez seja preciso aceitar o primeiro para poder ter direito ao segundo. 
 
 




quinta-feira, 15 de maio de 2025

5179) A mãe do escritor (15.5.2025)




(Cornell Woolrich e sua mãe Claire)

 
Na tarde chuvosa e cor-de-chumbo deste domingo recente, passei algumas horas folheando livros e anotações, preparando aula para um curso. Aproveitei para reler algumas páginas sobre Cornell Woolrich (1903-1968), um dos meus autores preferidos naquele subgênero que chamamos de “romance policial noir”. 
 
Os livros de Woolrich já foram filmados por Alfred Hitchcock (Janela Indiscreta), François Truffaut (A Noiva Estava de Preto), Robert Siodmak (A Dama Fantasma), Rainer Werner Fassbinder (Martha) e muitos outros. Geralmente são histórias sobre pessoas comuns que acabam se envolvendo, sem querer, em crimes ou em situações de perigo. Histórias de medo e angústia, e de mistérios que nunca são suficientemente esclarecidos. 



(Edward Hopper, "Nighthawks", 1942) 


Por exemplo Deadline at Dawn (1944, sob o pseudônimo “William Irish”) um de seus romances mais típicos. Na Nova York indiferente e brutal, um rapaz conhece uma moça que trabalha num salão de dança. Ao longo de poucas horas, os dois descobrem que são da mesma cidadezinha do interior; que odeiam a metrópole; e tudo que queriam na vida era voltar para lá. Gostam um do outro. Confiam um no outro. Decidem voltar para lá, juntos. 
 
Então... acontece um crime e o rapaz é acusado. Os dois fogem, pela madrugada deserta, improvisando-se como detetives para descobrir quem cometeu aquele crime e limpar a barra do rapaz. Porque (bem à maneira de Woolrich) eles pactuam um “vamos-combinar” segundo o qual eles só conseguirão fugir se pegarem o primeiro ônibus ao amanhecer. Se não, estão perdidos. 



É uma história de corrida-contra-o-relógio. O livro inteiro transcorre ao longo de uma madrugada interminável; eles esbarram em acasos, beneficiam-se de coincidências, confundem-se sem necessidade, mas, bem ou mal, fazem o leitor torcer por eles, porque são ingênuos e sinceros, e merecem escapar daquele inferno. 
 
Os livros de Woolrich eram histórias de suspense sem o cerebralismo dos filmes de Hitchcock. Ele escrevia com a intuição, e seus enredos são às vezes desconjuntados, improváveis, implausíveis, sentimentais, mas sempre hipnóticos. 
 
E me lembrei também que Woolrich viveu quase a vida toda com a mãe, Claire, morando em hotéis. Era, segundo seu biógrafo Francis M. Nevins, um gay não-assumido; esta versão tem sido contestada. Teve um breve casamento, que não deu certo, com a filha de um produtor cinematográfico. A mãe lhe fez companhia; viveram juntos até que ela morreu, quando ele estava com mais de 50 anos. Daí em diante, sua vida virou uma espiral descendente de alcoolismo e doença. Morreu sozinho, alcoólico, com uma perna amputada, e tinha quase um milhão de dólares no banco. 
 
Uma tentativa de resgatar sua vida (muito pouco documentada) está neste artigo: 
 
https://crimereads.com/do-people-really-know-what-they-think-they-know-about-cornell-woolrich/
 
(Robert E. Howard)

 
Mais radical que ele foi Robert Howard, o criador de “Conan, o Bárbaro” e de uma obra imensa nos campos do terror, da ficção científica e da aventura. Howard também morava com a mãe, numa cidadezinha no interior do Texas. Escrevia com inspiração e fúria, tendo começado a publicar profissionalmente ainda muito novo. A mãe dele, Hester, era uma mulher culta, que lhe transmitiu o amor aos livros e o incentivou a escrever. Ela foi tuberculosa durante a maior parte de sua vida adulta; quando entrou em coma definitivo, em junho de 1936, Robert se matou com um tiro de revólver. Tinha trinta anos de idade. 
 
Isto me trouxe à lembrança o caso parecido, mas mais longevo, de Jorge Luis Borges.  Borges também morou com a mãe, D. Leonor Acevedo, que cuidou dele após a cegueira. Foi a mãe (que faleceu aos 99) quem o acompanhou em numerosas viagens internacionais. Culta, poliglota, voluntariosa, pela vida inteira ela tomou conta do filho cego, com orgulho e desafio. 
 
Borges teve um casamento breve e frustrado, entre 1967 e 1970, com Elsa Astete, uma socialite buenairense que foi sua namorada de juventude. Era uma relação nada-a-ver, condenada ao fracasso. Os amigos organizaram uma conspiração para separá-los e Borges voltou a morar com D. Leonor até a morte dela, quando ele já ia completar 75 anos. Conta-se que no seu velório uma amiga murmurou: “Coitada, faleceu sem ter completado os 100 anos.” E Borges respondeu: “Vejo que a senhora é adepta do sistema métrico decimal”. 
 


(Borges e D. Leonor Acevedo)

 
Borges, cego, precisava da companhia de alguém, e a timidez quase doentia sacrificou sua vida sentimental. A presença protetora da mãe o envolveu num casulo de autoridade e segurança,. Isto lhe permitiu viajar pelo mundo e aproveitar a fama tardia, que só lhe chegou após os 60 anos.
 
A lembrança de Borges me conduziu à lembrança de H. P. Lovecraft (1890-1937), outro escritor casmurro e crepuscular. Seu pai foi internado numa clínica psiquiátrica quando ele tinha três anos, e morreu quando ele estava com oito. O pequeno Howard foi criado na companhia da mãe e de duas tias, com muita dificuldades financeiras, que ele tentou suprir a partir da adolescência, fazendo vários trabalhos ligados à escrita e redação. (Embora afirmasse que detestava escrever à máquina.)   



(H. P. Lovecraft aos 25 anos)

 
Sua mãe foi também internada numa clínica quando ele estava com 29 anos, e morreu poucos anos depois. Lovecraft continuou a morar com as tias, mas teve um breve casamento com Sonia Greene, alguns anos mais velha que ele. O casamento foi atormentado por problemas financeiros e de saúde. Sonia conseguiu empregos que a obrigavam a viajar o tempo inteiro; os dois foram gradualmente se afastando, e dois anos depois se separaram. O escritor viveu na companhia da tias até falecer em 1937. 
 
E não vejo motivo para me esquecer do caso de Raymond Chandler, cuja pai abandonou o lar quando ele era bem pequeno. Isto teve uma consequência positiva. A mãe dele, Florence, era de origem irlandesa, e levou o menino para viver com sua família, que àquela altura estava fixada em Londres. Chandler estudou em bons colégios, e quando voltou para os EUA, já adulto, trouxe Florence para sua companhia. 
 
Viveram juntos mesmo quando ele começou um caso amoroso com a que viria a ser sua esposa para o resto da vida: Cissy, uma mulher muito bonita, culta, e bastante mais velha do que ele. E a mãe era ferozmente contra o casamento dos dois, pois Cissy era uma mulher divorciada. 


(Raymond and Cissy Chandler, em 1952)

 
Diz o biógrafo Tom Hiney:
 
A mãe de Chandler morreu finalmente em janeiro de 1924. A data de nascimento de Florence é desconhecida, mas tinha certamente menos de sessenta anos ao falecer. Seu filho tinha trinta e cinco, e estava começando a construir uma pequena fortuna para si. Ele e Cissy casaram duas semanas depois, em fevereiro de 1924.  Há quem sugira que Chandler nunca soube a verdadeira idade de sua esposa, e embora seja improvável que um homem que se tornaria autor de histórias de detetive deixasse de perceber discrepâncias nos documentos da própria mulher, Cissy certamente não aparentava cinquenta e seis anos em 1924. Não tendo tido filhos biológicos, ela mantinha uma silhueta de modelo, e, de acordo com os colegas de trabalho de Chandler na empresa Dabney’s, tinha a presença sexual de uma mulher de trinta anos. 
(Raymond Chandler: A Biography, cap. 2, trad. BT)
 
Não irei me estender aqui glosando teorias como o complexo de Édipo ou a síndrome de Peter Pan; deixo a tarefa para os mais fluentes em Psicologia. O que me interessa é entender de que modo a manutenção desse cordão umbilical simbólico, longe de prejudicar esses indivíduos, provavelmente os ajudou (imagino eu) a encontrar vazão para uma criatividade intelectual intensa, aliada a uma incerteza e instabilidade emocional para enfrentar a vida adulta. 
 
Cada um ao seu modo, é claro. Borges, por exemplo, era o menos prático dos homens; mas quisera eu ter a sagacidade profissional e o tino implacável de negociador de Raymond Chandler.  Ele tinha lá suas fragilidades, mas era capaz de botar no bolso os produtores de Hollywood e ganhar os salários mais altos de sua época, salários com os quais nenhum roteirista daquele tempo tinha sonhado. 
 
E ao mesmo tempo, quando lhe perguntavam se ele “era realizado como escritor”, Chandler, que vendia milhões de livros, dizia: “Gosto dos meus romances, mas lamento nunca ter escrito nada que pudesse mostrar com orgulho à minha mulher.” 
 
Escrever é uma tarefa aparentemente cômoda – basta ficar em casa digitando textos no teclado. Essa simplicidade logística, no entanto, bota todo o peso na extremidade oposta: o esforço para domesticar o tsunami mental do momento da escrita, composto de raciocínios, lembranças, emoções, sugestões verbais, memórias visuais, pedaços de frases, referências, associações de idéias... Como já disse alguém, “basta sentar na escrivaninha e abrir uma veia”. 
 
Há quem seja capaz, homem ou mulher, de cuidar sozinho de uma casa e construir uma obra literária; mas cada casa é um caso. Virginia Woolf dizia uma mulher precisava, para escrever, de um quarto só para si, e quinhentas libras anuais de renda. Agatha Christie escrevia à mão, em cadernos pautados, na mesa em que almoçava. 
 
Escritores de ficção são como qualquer outro trabalhador intelectual.  Precisam de períodos extensos de recolhimento e concentração. Frederik Pohl dizia preferir a madrugada porque não há interrupções nem distrações, “e é possível manter pensamentos longos e consecutivos”.  
 
Às vezes vivem sozinhos, às vezes com esposas (ou maridos) que servem de barreira para que não sejam interrompidos. Ou que trancam o talentoso num quarto e o obrigam a trabalhar, como a D. Mercedes casada com Gabriel Garcia Márquez. 
 
Quando é a mãe do romancista que procede assim, temos a tendência de deduzir daí uma infância artificialmente prolongada, uma atitude pouco masculina de quem refuga a guerra da vida adulta. Pode ter algo disto, sim. Mas cada família é feliz ou infeliz ao seu modo, e para quem olha à distância, depois que as pessoas de carne-e-osso viraram pó, o que conta é o resultado literário deixado por essa convivência – mesmo oblíqua, mesmo enviesada, mesmo pouco de acordo com O Modelo. 
 
Milton Nascimento e Caetano Veloso diziam que “qualquer maneira de amor vale a pena”; o poeta Mallarmé dizia que “tudo existe para resultar em livro”, e podemos pedir-lhes emprestados os conceitos para perguntar: Uma maneira de amor que resulta em tantos livros, será que não valeu a pena?