quinta-feira, 22 de maio de 2025

5180) A catástrofe nos salvará? (22.5.2025)




 
“Somente a catástrofe nos salvará” – é uma frase-meme que circula há anos pelas redes sociais. Não lhe conheço a origem. Se pesquisar um pouco talvez descubra que precede a Revolução Francesa. Indo mais longe, talvez a descubra no incêndio de Lisboa ou na queda de Constantinopla. Enfim: diz a sabedoria popular que a crise de uns é a oportunidade de outros. (Ou será a sabedoria corporativa? A pesquisar.) 
 
Estudando literatura policial nestas últimas semanas, me voltou a memória a história de Flitcraft, uma pequena parábola existencialista que Dashiell Hammett infiltrou num romance policial, O Falcão Maltês, de 1929. A história é contada (à guisa de exemplo) pelo detetive Sam Spade, a sua cliente Brigid O’Shaughnessy. 
 
Flitcraft é um sujeito pacato que desaparece de repente. Contabilista, bem casado, dois filhos, situação financeira confortável. Foi trabalhar de manhã e nunca mais voltou. A polícia passa o pente fino no Estado inteiro, e nada. Alguns anos depois, Sam Spade é contratado pela esposa-quase-viúva para averiguar uma pista. Alguém acha que avistou Flitcraft em outra cidade, e o detetive vai conferir. 
 
É o próprio, vivinho da silva. Pressionado, ele confessa a Sam Spade que estava com a vida encaminhada, tranquila, feliz, mas um dia, ao sair do trabalho para almoçar, uma viga de aço despencou de um décimo andar e espatifou o calçamento, um metro à frente dele. Flitcraft entendeu que não morreu por um triz, e o seu mundo – firme, confiante, protegido por forças invisíveis – desabou. 
 
Sua reação foi fugir como se tivesse morrido naquele instante. A família tinha posses, estava amparada. Mas a vida, como um todo, tinha perdido o sentido. Ele ficou zanzando pelo país, acabou se fixando noutra cidade, arranjou outro emprego, voltou a casar. Mas não era mais a mesma pessoa. A queda da viga, que não o esmagou por distância de um passo, teve um efeito revelador do Absurdo da existência humana. Diz o detetive: “Foi como se alguém tivesse levantado a tampa da vida, e revelado seu mecanismo”. 
 
A catástrofe (ou quase-catástrofe) salvou Flitcraft?  Depende do ponto de vista. Um sujeito de persuasão religiosa veria na queda da viga um mero aviso e a confirmação de que “somebody up there likes me”. Mandaria rezar uma missa em ação de graças, e passaria a viver mais feliz do que antes. A questão é que Flitcraft já era (posso especular assim) um indivíduo vulnerável ao Absurdo. Alguém que já desconfiava ser a vida (como dizia Carlos Drummond) “um vácuo atormentado, um sistema de erros”, e precisava apenas de um gatilho ou de uma fagulha para mandar aquilo tudo pelos ares. 



 
Flitcraft é um herói absurdo, como o Meursault de Albert Camus (O Estrangeiro, 1942), que causa a própria catástrofe ao abater um rapaz a tiros na praia, sem motivo algum além de precipitar o próprio enforcamento. Ou como o narrador de A Queda (1956), do mesmo Camus, que é um perfeito cidadão de bem, pilastra moral da sociedade, até a noite em que vê uma mulher pular no rio durante a madrugada, e não faz nada para salvá-la – e a partir daí começa a perceber que não passa de um covarde e um calhorda. E fica feliz com essa auto-descoberta. 
 
A catástrofe talvez não salve mas sirva de espelho para que um indivíduo finalmente saiba quem é. Como dizem os soldados, é só na hora do bombardeio que alguém descobre se é corajoso ou não. 
 
A felicidade, ou a aparência dela, pode ser apenas um verniz ilusório para nos convencer de que o mundo faz sentido. Não faz. Ou talvez faça, mas num plano a que não temos acesso. No filme The Matrix (1999), o herói tem a opção de continuar iludido, vivendo numa metrópole capitalista, moderna e normal, ou tomar a pílula que lhe revela a Realidade tal como é. O verdadeiros mecanismos por baixo da tampa, como dizia Sam Spade. 



 
O escritor Haruki Murakami ficou chocado, como o mundo inteiro, com os atentados ocorridos em 1995 no metrô de Tóquio, quando os fanáticos da seita apocalíptica Aum Shinrikyo envenenaram milhares de pessoas com gás “sarin”, provocando dezenas de mortes. O choque provocado por essa catástrofe fez Murakami entrevistar dezenas de vítimas e alguns dos terroristas, o que resultou no livro Underground, onde ele diz: 
 
Eu creio que todo japonês tem uma visão do mundo apocaliptica, um sentimento de medo invisível, inconsciente.  A sociedade é a base da vida das pessoas e elas não sabem o que vai acontecer com essa sociedade. Portanto, a idéia de “O Fim” é um dos eixos em torno dos quais a Aum Shinrikyo girava.
 
Não há como não ver nisso um reflexo do trauma da bomba atômica, a consciência de que em certo momento da história caiu sobre um país orgulhoso e organizado a pior catástrofe possível – uma arma de espantosa brutalidade, inventada e disparada por um inimigo impiedoso. Godzilla e outros monstros surgiram no cinema da Guerra Fria como reflexos desse pesadelo, o medo de uma força-bruta que vem para destruir às cegas. No atentado do metrô, essa paranóia ganhou uma nova face. 
 
A verdade, porém, é que essas catástrofes são sempre parciais, e mesmo que exterminem milhões elas acabam poupando milhões de outros, e para esses há sempre uma chance de sacudir a poeira e dar a volta por cima. A catástrofe não os salva, mas talvez os deixe vacinados.
 
Não é outra a filosofia por trás de muitos romances apocalípticos de FC, as famosas histórias de fim do mundo, em que o planeta é varrido por um cataclismo natural ou por uma guerra atômica, mas se reergue das próprias cinzas e acha uma forma de recomeçar, em outros termos. 
 
E, como no caso do acomodado Flitcraft, do ingênuo e cauteloso-pouco-a-pouco (no dizer de Mário de Andrade) Flitcraft, a desgraça vem para dar uma sacudida, uma renovada, um chega-pra-lá. Um abre-o-olho tão necessário a quem pensa que o mundo agora está pronto e podemos viver em paz por todos os séculos dos séculos-amém. 




No clássico The Day of the Triffids (1953), John Wyndham conta como uma chuva de meteoros fez com que 90% da humanidade ficasse cega da noite para o dia. E não somente cega, mas à mercê das “trífides”, plantas venenosas, carnívoras e que são capazes de caminhar. Parece calamidade demais para uma humanidade só, mas a certa altura o protagonista e narrador Bill Masen afirma: 
 
(...) O que algumas vezes me parecera uma existência vazia estava se tornando agora uma vantagem. Meus pais estavam mortos, minha única tentativa de casamento tinha fracassado poucos anos antes, e não havia nenhuma pessoa que dependesse especialmente de mim. E, curiosamente, descobri que o meu sentimento principal – e eu sabia que deveria estar sentindo o contrário – era de alívio... 
 
Não era só o conhaque, porque esse sentimento persistiu. Acho que deve ter surgido da sensação de estar me defrontando com uma situação nova e inédita para mim. Todos os velhos problemas, todos os contratempos triviais, tanto pessoais quanto coletivos, tinham sido decepados com um só golpe. Só Deus sabia que outros golpes poderiam sobrevir – e tudo indicava que seriam muitos – mas seriam novos. Eu estava me erguendo no meio de tudo aquilo como alguém dono de si mesmo, e não um parafuso numa engrenagem. Talvez o mundo que eu estava prestes a enfrentar estivesse cheio de horrores e de perigos, mas eu poderia contar comigo mesmo para encará-los – não estaria sendo empurrado de um lado para outro por forças e interesses que eu não compreendia e que não me interessavam. 
(The Day of the Triffids, cap. 3, trad. BT)
 
Fala-se por aí que é mais fácil destruir o mundo do que acabar com o Capitalismo. São dois apocalipses. Talvez seja preciso aceitar o primeiro para poder ter direito ao segundo.