domingo, 27 de outubro de 2024

5116) Vladimir Carvalho, 1935-2024 (27.10.2024)




Já escrevi várias vezes sobre Vladimir Carvalho aqui  no blog, e me vejo agora na iminência de repetir os episódios já contados, as comparações, os gracejos, as palavras de ordem, a gratidão pelo que me ficou de tudo aquilo. 

 

Para o registro factual, nosso último papo foi em 27 de agosto, aqui no Rio de Janeiro, quando um grupo de cineclubistas da “velha guarda da moviola” se reuniu no Estação Net, em Botafogo, para celebrar os 50 anos da “Carta de Curitiba”, um histórico documento dos cineclubes brasileiros no “quente” da ditadura. 

 

Após o conciliábulo, partimos para o bar mais próximo e ali nos instalamos; estavam Vladimir, Walter Carvalho, Marco Aurélio Marcondes, José Umbelino Brasil e Marise Berta. Com exceção de Marise, que é um broto, todos nós estávamos, 50 anos atrás, mergulhados até os gorgomilhos no sonho cineclubista, do qual nunca me afastei, e nunca me arrependi. 

 

Houve uma época em que fui cineclubista em Belo Horizonte, e dizíamos então que o sonho cineclubista é pular de filme em filme como uma trapezista pula de trapézio em trapézio. Em ambos os casos, não importa o filme que está sendo visto ou o trapézio que está sendo agarrado: o importante é não cair no chão.

 

O chão era a vida real, eram muitas coisas. Não posso falar por outras pessoas, mas eu vivi dos quinze aos quarenta anos com dois medos principais: ser preso e torturado pela ditadura, ou ser vítima de um apocalipse nuclear. As duas coisas eram reais. Talvez venha daí uma certa estrangeiridade, uma “sensação de não estar de todo”, uma resignação bem-humorada, e a nonchalance de quem acha que o mundo vai se acabar mesmo, mas é melhor fazer de conta que não.  Vai que...

 

Vai que o mundo continua, e que escapamos? Melhor ter feito alguma coisa, não é mesmo? Escrever, discutir filmes, dar aulas, projetar filmes, fazer músicas, fazer filmes, ler, agitar. Na verdade nós, que somos artistas, criamos muito pouco. O nosso poder maior é o de manter o mundo em movimento. A criação pessoal é um fenômeno colateral. Somos circuladores-de-idéias, assim como há circuladores-de-ar.




Curiosamente, minha memória de Vladimir está sempre associada visualmente àqueles prediozinhos baixos de tijolo aparente do campus da Universidade de Brasília, onde o conheci em 1970, durante um Festival de Brasília que abrigou na capital o I Encontro Nacional de Cursos de Cinema. Cheguei lá depois de uma noite de viagem, no meio de uma horda que desceu do ônibus amarfanhada e insone; Vladimir e seus alunos nos receberam como se fôssemos os Retirantes de Dunquerque.

Num dos meus textos aqui no blog, quando Vladimir completou 70 anos, referi a minha admiração em encontrá-lo na Rua do Catete, passo lépido, olhar erguido, sorriso pronto. Minha admiração era maior porque lembro bem como eram os adultos no tempo do meu pai, trancafiados em seus ternos brancos, contraídos naquela pose de defensores do inexplicável, imersos na tensão que os agrupava.

 

Vladimir nunca envelheceu, nunca aceitou o peso da gravidade. Ele parece ter passado a vida como uma bicicleta veloz varando a paisagem, sabendo ralentar quando preciso, mas sempre em movimento, naquele misto de leveza e de atenção constante ao entorno.

 



(os irmãos Vladimir e Walter Carvalho) 

 

Seus documentários cresciam num ritmo de jardinagem, sendo agüados, podados, tesourados, recebendo enxertos e estacas de apoio, ganhando forma ao longo dos anos. Diz-se que depois da Revolução Cubana, grandes cineastas soviéticos vieram a Cuba para ajudar a implantar uma indústria de cinema no país. Os cubanos lhes perguntavam: “O que devemos filmar?”. Devem ter perguntado a Dziga Vertov, porque a resposta foi: “Filmem tudo”.

 

Filmem tudo. Tudo é importante. Ou melhor: cada época escolherá o que acha importante. Isto fez com que Vladimir saísse de casa em muitas noites do Planalto, sem gostar de rock, para filmar shows da rapaziada brasiliense em bares, faculdades, quadras de tênis. Com isto, acumulou um material preciosíssimo sobre o surgimento de bandas como Legião Urbana, Plebe Rude, Capital Inicial... E surgiu Rock Brasília (2011).




Filmem tudo. Os recortes virão depois, as colagens, as interpretações, as justaposições de depoimentos e de imagens. “Filmar tudo” já é um recorte mínimo numa realidade não só inesgotável, mas inconcebível. Filmar tudo é tirar uma gota do oceano, e nessa gota tem tudo que o oceano oferta, e tudo que a gente precisa.

 

Um dos projetos mais queridos de Vladimir era a Fundação Cinememória, para abrigar os milhares de itens que ele acumulou ao longo dos anos. “É um acervo doido,” dizia, ele, feliz. “Tem livro, filme, documento, tem cartaz, projetor, moviola... Mas é coisa demais, não tem espaço que chegue, não posso ficar eu sozinho administrando, tem que ter uma entidade, uma equipe.”

 

O projeto estava sendo bem encaminhado, segundo noticia a imprensa:

https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2024/10/6972378-cinememoria-o-legado-da-vida-de-vladimir-carvalho.html

 

“Guardem tudo”, teriam dito talvez os cineastas soviéticos, menos por serem soviéticos do que por serem cineastas. Guardar é próprio do cinema, e lembro aqui os versos de outro sonhador, o poeta Antonio Cícero que se foi nesta mesma semana:

 

GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro

do que de um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:

para guardá-lo:

para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

guarde o que quer que guarda um poema:

por isso o lance do poema:

por guardar-se o que se quer guardar.

 

Guardar imagens em movimento é uma prestidigitação delicada: guardar águas de um rio que não seca, guardar as luzes de um céu sempre em rotação. Se não somos capazes de guardar a vida, como guardar então seus reflexos, tão transparentes, tão inflamáveis?

 

Ser documentarista é passar a vida guardando o alheio, guardando retalhos da vida dos outros, criando fios invisíveis onde enfiar fotogramas. No dizer de João Cabral de Melo Neto, “Fazer o que seja é inútil. / Não fazer nada é inútil. / Mas entre fazer e não fazer / mais vale o inútil do fazer.”