Uma sociedade de consumo como a nossa produz mais (muito mais) do que
necessita, e desperdiça grande parte do que produz.
Se a Cultura age assim, a Contracultura teria que lançar um
contraponto. Viver do desperdício alheio seria, então, uma estratégia legítima,
do ponto de vista econômico e do ponto de vista moral.
E não apenas do desperdício, mas das incontáveis brechas que um sistema
como esse abre dentro de si mesmo.
Numa crônica publicada na revista Locus
(# 582, julho de 2009), Cory Doctorow lembra:
Eu tinha 15 anos quando me caiu nas mãos uma
cópia ensebada de Steal This Book, a obra clássica de Abbie Hofmann, um
manual ensinando a cair fora do sistema, sobreviver a custo zero, e aplicar
pequenos golpes. O livro estava repleto de dicas fascinantes: como produzir o
som que liberava a linha para ligações interurbanas nos telefones públicos,
como organizar a loja de uma cooperativa, como reciclar pneus fabricando
sandálias, como produzir um jantar saqueando as latas de lixo de um
restaurante. Fiquei fascinado, e naquele verão reli o livro uma dúzia de vezes.
(trad. BT)
Doctorow nasceu no ano em que o livro foi publicado, 1971, o que atesta
a permanência da mentalidade contracultural que o produziu. Canibalizar os
excessos do sistema é uma opção quase inevitável para quem não apenas se recusa
a trabalhar para ele, mas precisa também dar-lhe algum prejuízo, ainda que num
gesto meramente simbólico e pessoal.
Há outro aspecto mais preocupante. No meio século desde o livro de
Abbie Huffmann, acho que o consumismo passou por uma mudança – para pior. Houve uma fase em que a compra descontrolada
de coisas era tratada como um problema comportamental, principalmente nos EUA. Hoje,
é um apocalipse coletivo.
Os norte-americanos não sabem o que fazer com tanto dinheiro, ou
melhor, sabem: comprar coisas desnecessárias e depois jogá-las fora. Produziram
para si mesmos uma civilização em que o prazer de Ter tornou-se maior que o de
Fruir, e ambos são menores que o de Comprar. É o mundo da shopping-terapia,
onde tantas neuroses são empurradas para baixo do tapete, e toda semana
compra-se um tapete novo.
Lembro de uma época em que uma mulher com mais de dez pares de sapatos
era apelidada de “Imelda Marcos” – nome da mulher do ditador das Filipinas,
possuidora de mais de 1.000 pares de sapatos. Ter muitas bolsas, muitos
vestidos, muitos ternos, muitas gravatas, tudo isso era o pecado do consumismo.
E não apenas os burguesões acomodados cediam a isso, porque no mundo
artístico o que nunca faltou foram casas com mais de 3 mil DVDs, mais de 4 mil
discos, mais de 5 mil livros, e assim por diante. Perdi a conta das cenas de
filme ou livro em que uma esposa jovem pergunta, em desespero: “Querido, você
precisa mesmo de uma décima-quinta guitarra?...”
Cada um gasta seu dinheiro como bem entende, diz a sabedoria popular
enxugando as mãos junto à bacia de Pilatos. A questão é que hoje, cinquenta
anos depois, o que era neurose individual e talvez inofensiva tornou-se uma
psicose coletiva de dimensões catastróficas.
É impossível não achar isto quando se vê um filme como o documentário
de Nic Stacey, A Conspiração Consumista (Netflix).
O filme mostra em etapas sucessivas o gigantismo da máquina de consumo
desenfreado que hoje em dia arrasta o mundo pelos pés. Ninguém escapa: Amazon,
Unilever, Apple, Adidas são apenas algumas das empresas cujos ex-executivos são
entrevistados no filme e abrem o jogo, sempre no tom de “eu não consegui
continuar colaborando com aquilo”.
Na verdade, o consumismo não é uma conspiração, assim como não há
conspiração alguma quando todas as pessoas de um barco correm para o mesmo lado
e o fazem virar. É apenas “a natureza da fera”, é o escorpião que morre afogado
mas precisa ferrar o sapo que o transporta.
Cada empresa procura apenas maximizar seus lucros, e todas pagam
excelentes salários a pessoas inteligentes para que lhes tragam as soluções
mais radicais.
O filme resume em cinco partes essas soluções:
1.
Vender mais
2.
Mentir mais
3.
Desperdiçar mais
4.
Ocultar mais
5.
Controlar mais
“Compre, compre, compre”, repetem mecanicamente, invisivelmente, as
mensagens espalhadas pelo mundo inteiro, lembrando os códigos subliminares do
filme They Live de John Carpenter.
E os resultados são ótimos, nos gráficos apresentados aos acionistas, e
nos depósitos de dividendos. Mas o mundo está sendo cada vez mais soterrado por
esse excesso de produção. São pessoas gastando um dinheiro que (às vezes) não
têm para comprar coisas de que não precisam – precisam do ato de comprá-las, e
depois as coisas serão jogadas fora, descartadas, queimadas, enterradas, não
importa. Importa que a compra aconteceu.
No filme, Mara Einstein comenta: “Se você tiver que levantar da cama,
pegar o carro, ir à loja, escolher o produto, pagar no caixa, trazer o
pacote... isso é muito trabalhoso. Mas agora você pode Comprar Com Um Clique e o pacote é trazido até a porta de sua casa.”
As estatísticas que eles compartilham são curiosas.
2,5 milhões de
sapatos produzidos por hora
68.733 celulares
produzidos por hora
190.000 peças de
vestuário por minuto
12 toneladas de plástico
por segundo
13 milhões de
celulares jogados fora todos os dias
Não sei se são verdadeiras, mas são verossímeis, o que já
é um alerta. Sabemos que o mundo é capaz disto.
A “obsolescência programada” encurta a vida útil dos
produtos para que eles possam ser comprados mais vezes. E a empresa não pode
correr o risco de que os que vão para o descarte (os que ninguém comprou) vão parar
nas mãos de mendigos ou de desocupados. É preciso danificá-los, torná-los
inúteis, uma coisa que ninguém queira, ninguém aproveite. Há funcionários
encarregados apenas de inutilizar as peças que vão para o descarte, rasgando
roupas, malas, casacos; quebrando telas de aparelhos; riscando mídias eletrônicas,
etc. É preciso inutilizar antes de descartar.
(Carros da Audi abandonados no
deserto de Mojave)
Anna Sacks (@thetrashwalker) é uma entrevistada que se dedica a tentar
recuperar alguma parte desse material, catando produtos descartados e jogados
no lixo. Sua atividade faz um link interessante com outro filme, Os Catadores e Eu (2000) de Agnès Varda.
Nesse documentário, a diretora francesa investiga e entrevista, em princípio,
os glaneurs, pessoas que catam frutas,
legumes, etc., não recolhidos nas colheitas. A partir daí, vai fazendo conexões
com outras ocupações paralelas, até chegar a um grupo de jovens estudantes meio
sem-teto que saqueiam o lixo de um supermercado atrás de comida.
Um velho ditado popular fala que só existem ricos onde há pobres, e
vice-versa. Não é só o futuro que está mal distribuído, como queriam os
escritores cyberpunk; o presente
também.
Cui bono – é
uma pergunta clássica que sempre incomoda um pouco. “A quem isto beneficia?”. Um
sistema de desperdício proposital é tão suicida (em termos coletivos) que deve
ser útil para alguém, na mesma proporção. Em nosso caderno há nomes famosos:
Jeff Bezos (que aparece nesse documentário da Netflix), Elon Musk, Bill Gates e
outros. Mas estes são apenas os que cabem no círculo estreito dos holofotes. E
os milhares que ficam na sombra?
O conto “The Totally Rich” do inglês John Brunner (em Worlds of Tomorrow, 1963; publicado em
livro em Out of My Mind, New York,
Ballantine, 1967) conta a história de uma mulher riquíssima que tenta manter-se
eternamente jovem, e ao mesmo tempo quer ressuscitar o namorado que já morreu.
Um eco do clássico Ela, a Feiticeira
(“She”, 1887) de H. Rider Haggard.
John Brunner faz uma reflexão, neste conto, sobre a vida dos
superbilionários. (É a parte profética do conto, porque os “totalmente ricos”
de hoje possuem fortunas que 50 anos atrás eram inconcebíveis mesmo para
autores de FC.)
Diz ele:
“Eles são os totalmente ricos. Você nunca
ouviu falar neles porque eles são as únicas pessoas no mundo ricas o bastante
para poder comprar o que desejam: uma vida totalmente privada. (...) Quantos
deles existem, eu não sei. Tentei calcular o total somando o PIB de todos os países da Terra e dividindo pela
quantia necessária para comprar o governo de uma potência industrial. Não
preciso dizer que você não pode ter privacidade total se não for capaz de
comprar pelo menos dois governos. Acho que deve haver uma centena dessas
pessoas. Já conheci uma delas, e provavelmente outra. (...)
“Eles não estão no mapa. Entende isso?
Literalmente, qualquer lugar onde eles escolham viver torna-se um espaço em
branco nos atlas. Não estão nas listagens do Censo, nem no Quem é Quem,
nem no Pares do Reino Britânico de Burke. Não aparecem nos registros de
imposto de renda, e o correio não tem seu endereço. Pense em todos os lugares
onde o seu nome aparece: registros escolares amarelecidos, arquivos de
hospitais, notas fiscais de lojas, documentos assinados. Em nenhum desses
lugares o nome deles está visível.
“Eles não são governantes absolutistas. Na
verdade, não governam coisa alguma a não ser o que lhes diz respeito
diretamente. Mas eles se assemelham àquele Califa de Bagdá que encomendou a um
escultor “a fonte mais bela do mundo”. Quando ficou pronta (e era bela de
verdade) ele perguntou ao escultor se havia algum artista capaz de superá-la em
beleza. O escultor afirmou que não. O Califa disse: Paguem a ele o que foi
combinado, e arranquem os seus olhos”