“Somente a catástrofe nos salvará” – é uma frase-meme que
circula há anos pelas redes sociais. Não lhe conheço a origem. Se pesquisar um
pouco talvez descubra que precede a Revolução Francesa. Indo mais longe, talvez
a descubra no incêndio de Lisboa ou na queda de Constantinopla. Enfim: diz a
sabedoria popular que a crise de uns é a oportunidade de outros. (Ou será a
sabedoria corporativa? A pesquisar.)
Estudando literatura policial nestas últimas semanas, me
voltou a memória a história de Flitcraft, uma pequena parábola existencialista
que Dashiell Hammett infiltrou num romance policial, O Falcão Maltês, de 1929. A história é contada (à guisa de exemplo)
pelo detetive Sam Spade, a sua cliente Brigid O’Shaughnessy.
Flitcraft é um sujeito pacato que desaparece de repente.
Contabilista, bem casado, dois filhos, situação financeira confortável. Foi
trabalhar de manhã e nunca mais voltou. A polícia passa o pente fino no Estado
inteiro, e nada. Alguns anos depois, Sam Spade é contratado pela
esposa-quase-viúva para averiguar uma pista. Alguém acha que avistou Flitcraft
em outra cidade, e o detetive vai conferir.
É o próprio, vivinho da silva. Pressionado, ele confessa
a Sam Spade que estava com a vida encaminhada, tranquila, feliz, mas um dia, ao
sair do trabalho para almoçar, uma viga de aço despencou de um décimo andar e
espatifou o calçamento, um metro à frente dele. Flitcraft entendeu que não
morreu por um triz, e o seu mundo – firme, confiante, protegido por forças
invisíveis – desabou.
Sua reação foi fugir como se tivesse morrido naquele
instante. A família tinha posses, estava amparada. Mas a vida, como um todo,
tinha perdido o sentido. Ele ficou zanzando pelo país, acabou se fixando noutra
cidade, arranjou outro emprego, voltou a casar. Mas não era mais a mesma
pessoa. A queda da viga, que não o esmagou por distância de um passo, teve um
efeito revelador do Absurdo da existência humana. Diz o detetive: “Foi como se alguém tivesse levantado a
tampa da vida, e revelado seu mecanismo”.
A catástrofe (ou quase-catástrofe) salvou Flitcraft? Depende do ponto de vista. Um sujeito de
persuasão religiosa veria na queda da viga um mero aviso e a confirmação de que
“somebody up there likes me”. Mandaria
rezar uma missa em ação de graças, e passaria a viver mais feliz do que antes. A
questão é que Flitcraft já era (posso especular assim) um indivíduo vulnerável
ao Absurdo. Alguém que já desconfiava ser a vida (como dizia Carlos Drummond) “um vácuo atormentado, um sistema de erros”,
e precisava apenas de um gatilho ou de uma fagulha para mandar aquilo tudo
pelos ares.
Flitcraft é um herói absurdo, como o Meursault de Albert
Camus (O Estrangeiro, 1942), que
causa a própria catástrofe ao abater um rapaz a tiros na praia, sem motivo
algum além de precipitar o próprio enforcamento. Ou como o narrador de A Queda (1956), do mesmo Camus, que é um
perfeito cidadão de bem, pilastra moral da sociedade, até a noite em que vê uma
mulher pular no rio durante a madrugada, e não faz nada para salvá-la – e a
partir daí começa a perceber que não passa de um covarde e um calhorda. E fica
feliz com essa auto-descoberta.
A catástrofe talvez não salve mas sirva de espelho para
que um indivíduo finalmente saiba quem é. Como dizem os soldados, é só na hora
do bombardeio que alguém descobre se é corajoso ou não.
A felicidade, ou a aparência dela, pode ser apenas um
verniz ilusório para nos convencer de que o mundo faz sentido. Não faz. Ou
talvez faça, mas num plano a que não temos acesso. No filme The Matrix (1999), o herói tem a opção
de continuar iludido, vivendo numa metrópole capitalista, moderna e normal, ou
tomar a pílula que lhe revela a Realidade tal como é. O verdadeiros mecanismos
por baixo da tampa, como dizia Sam Spade.
O escritor Haruki Murakami ficou chocado, como o mundo
inteiro, com os atentados ocorridos em 1995 no metrô de Tóquio, quando os
fanáticos da seita apocalíptica Aum Shinrikyo envenenaram milhares de pessoas
com gás “sarin”, provocando dezenas de mortes. O choque provocado por essa
catástrofe fez Murakami entrevistar dezenas de vítimas e alguns dos
terroristas, o que resultou no livro Underground,
onde ele diz:
Eu creio que todo japonês tem uma visão do mundo apocaliptica, um
sentimento de medo invisível, inconsciente.
A sociedade é a base da vida das pessoas e elas não sabem o que vai
acontecer com essa sociedade. Portanto, a idéia de “O Fim” é um dos eixos em
torno dos quais a Aum Shinrikyo girava.
Não há como não ver nisso um reflexo do trauma da bomba
atômica, a consciência de que em certo momento da história caiu sobre um país
orgulhoso e organizado a pior catástrofe possível – uma arma de espantosa
brutalidade, inventada e disparada por um inimigo impiedoso. Godzilla e outros
monstros surgiram no cinema da Guerra Fria como reflexos desse pesadelo, o medo
de uma força-bruta que vem para destruir às cegas. No atentado do metrô, essa
paranóia ganhou uma nova face.
A verdade, porém, é que essas catástrofes são sempre
parciais, e mesmo que exterminem milhões elas acabam poupando milhões de
outros, e para esses há sempre uma chance de sacudir a poeira e dar a volta por
cima. A catástrofe não os salva, mas talvez os deixe vacinados.
Não é outra a filosofia por trás de muitos romances
apocalípticos de FC, as famosas histórias de fim do mundo, em que o planeta é
varrido por um cataclismo natural ou por uma guerra atômica, mas se reergue das
próprias cinzas e acha uma forma de recomeçar, em outros termos.
E, como no caso do acomodado Flitcraft, do ingênuo e
cauteloso-pouco-a-pouco (no dizer de Mário de Andrade) Flitcraft, a desgraça
vem para dar uma sacudida, uma renovada, um chega-pra-lá. Um abre-o-olho tão
necessário a quem pensa que o mundo agora está pronto e podemos viver em paz
por todos os séculos dos séculos-amém.
No clássico The Day
of the Triffids (1953), John Wyndham conta como uma chuva de meteoros fez
com que 90% da humanidade ficasse cega da noite para o dia. E não somente cega,
mas à mercê das “trífides”, plantas venenosas, carnívoras e que são capazes de
caminhar. Parece calamidade demais para uma humanidade só, mas a certa altura o
protagonista e narrador Bill Masen afirma:
(...) O que algumas vezes me parecera uma
existência vazia estava se tornando agora uma vantagem. Meus pais estavam
mortos, minha única tentativa de casamento tinha fracassado poucos anos antes,
e não havia nenhuma pessoa que dependesse especialmente de mim. E,
curiosamente, descobri que o meu sentimento principal – e eu sabia que deveria
estar sentindo o contrário – era de alívio...
Não era só o conhaque, porque esse
sentimento persistiu. Acho que deve ter surgido da sensação de estar me
defrontando com uma situação nova e inédita para mim. Todos os velhos
problemas, todos os contratempos triviais, tanto pessoais quanto coletivos,
tinham sido decepados com um só golpe. Só Deus sabia que outros golpes poderiam
sobrevir – e tudo indicava que seriam muitos – mas seriam novos. Eu estava me
erguendo no meio de tudo aquilo como alguém dono de si mesmo, e não um parafuso
numa engrenagem. Talvez o mundo que eu estava prestes a enfrentar estivesse
cheio de horrores e de perigos, mas eu poderia contar comigo mesmo para
encará-los – não estaria sendo empurrado de um lado para outro por forças e
interesses que eu não compreendia e que não me interessavam.
(The Day
of the Triffids, cap. 3, trad. BT)
Fala-se por aí que é mais fácil destruir o mundo do que
acabar com o Capitalismo. São dois apocalipses. Talvez seja preciso aceitar o
primeiro para poder ter direito ao segundo.
2 comentários:
Adorei essa análise. Há realmente uma estranha vocação existencialista na aceitação quase estoica do policial noir. Todo crime pode ser desvendado, mas é sempre absurdo pois motivado por uma paixão que explica mas nunca justifica as ações que incensa. O período mais representativo das suas principais obras, os 1920/30/40 entre guerras mundiais, grande depressão, talvez contivesse mesmo essa sensação de aceitação do fim do mundo acelerado pelo culto apocalíptico dos capitalistas. Será que teremos o surgimento de algo similar na literatura de mistério nos dias de hoje? Estamos tão na beira do abismo quanto há 100 anos, mas talvez nos falte a atenção necessária para refletir sobre a nossa existência no meio dessa inflação informacional que nunca se cala.
A época do noir, Lisandro, sucedeu aos "roaring twenties", os anos 1920, era do jazz, muita gastança, muita farra. É tipicamente pós-1929 (quebra da Bolsa). O tempo de hoje está mais para a década de 20 passada; talvez o nosso período "noir" esteja mais para a frente.
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