(Cornell Woolrich e sua mãe Claire)
Na tarde chuvosa e cor-de-chumbo deste domingo recente,
passei algumas horas folheando livros e anotações, preparando aula para um
curso. Aproveitei para reler algumas páginas sobre Cornell Woolrich (1903-1968),
um dos meus autores preferidos naquele subgênero que chamamos de “romance
policial noir”.
Os livros de Woolrich já foram filmados por Alfred
Hitchcock (Janela Indiscreta),
François Truffaut (A Noiva Estava de
Preto), Robert Siodmak (A Dama
Fantasma), Rainer Werner Fassbinder (Martha)
e muitos outros. Geralmente são histórias sobre pessoas comuns que acabam se
envolvendo, sem querer, em crimes ou em situações de perigo. Histórias de medo
e angústia, e de mistérios que nunca são suficientemente esclarecidos.
(Edward Hopper, "Nighthawks", 1942)
Por exemplo Deadline
at Dawn (1944, sob o pseudônimo “William Irish”) um de seus romances mais
típicos. Na Nova York indiferente e brutal, um rapaz conhece uma moça que
trabalha num salão de dança. Ao longo de poucas horas, os dois descobrem que
são da mesma cidadezinha do interior; que odeiam a metrópole; e tudo que
queriam na vida era voltar para lá. Gostam um do outro. Confiam um no outro.
Decidem voltar para lá, juntos.
Então... acontece um crime e o rapaz é acusado. Os dois fogem,
pela madrugada deserta, improvisando-se como detetives para descobrir quem
cometeu aquele crime e limpar a barra do rapaz. Porque (bem à maneira de
Woolrich) eles pactuam um “vamos-combinar” segundo o qual eles só conseguirão
fugir se pegarem o primeiro ônibus ao amanhecer. Se não, estão perdidos.
É uma história de corrida-contra-o-relógio. O livro
inteiro transcorre ao longo de uma madrugada interminável; eles esbarram em
acasos, beneficiam-se de coincidências, confundem-se sem necessidade, mas, bem
ou mal, fazem o leitor torcer por eles, porque são ingênuos e sinceros, e merecem
escapar daquele inferno.
Os livros de Woolrich eram histórias de suspense sem o
cerebralismo dos filmes de Hitchcock. Ele escrevia com a intuição, e seus
enredos são às vezes desconjuntados, improváveis, implausíveis, sentimentais, mas
sempre hipnóticos.
E me lembrei também que Woolrich viveu quase a vida toda
com a mãe, Claire, morando em hotéis. Era, segundo seu biógrafo Francis M.
Nevins, um gay não-assumido; esta versão tem sido contestada. Teve um breve
casamento, que não deu certo, com a filha de um produtor cinematográfico. A mãe
lhe fez companhia; viveram juntos até que ela morreu, quando ele estava com
mais de 50 anos. Daí em diante, sua vida virou uma espiral descendente de
alcoolismo e doença. Morreu sozinho, alcoólico, com uma perna amputada, e tinha
quase um milhão de dólares no banco.
Uma tentativa de resgatar sua vida (muito pouco documentada)
está neste artigo:
https://crimereads.com/do-people-really-know-what-they-think-they-know-about-cornell-woolrich/
(Robert E. Howard)
Mais radical que ele foi Robert Howard, o criador de
“Conan, o Bárbaro” e de uma obra imensa nos campos do terror, da ficção
científica e da aventura. Howard também morava com a mãe, numa cidadezinha no
interior do Texas. Escrevia com inspiração e fúria, tendo começado a publicar
profissionalmente ainda muito novo. A mãe dele, Hester, era uma mulher culta,
que lhe transmitiu o amor aos livros e o incentivou a escrever. Ela foi
tuberculosa durante a maior parte de sua vida adulta; quando entrou em coma
definitivo, em junho de 1936, Robert se matou com um tiro de revólver. Tinha
trinta anos de idade.
Isto me trouxe à lembrança o caso parecido, mas mais
longevo, de Jorge Luis Borges. Borges
também morou com a mãe, D. Leonor Acevedo, que cuidou dele após a cegueira. Foi
a mãe (que faleceu aos 99) quem o acompanhou em numerosas viagens
internacionais. Culta, poliglota, voluntariosa, pela vida inteira ela tomou
conta do filho cego, com orgulho e desafio.
Borges teve um casamento breve e frustrado, entre 1967 e
1970, com Elsa Astete, uma socialite buenairense que foi sua namorada de
juventude. Era uma relação nada-a-ver, condenada ao fracasso. Os amigos
organizaram uma conspiração para separá-los e Borges voltou a morar com D.
Leonor até a morte dela, quando ele já ia completar 75 anos. Conta-se que no
seu velório uma amiga murmurou: “Coitada, faleceu sem ter completado os 100
anos.” E Borges respondeu: “Vejo que a senhora é adepta do sistema métrico
decimal”.
(Borges e D. Leonor Acevedo)
Borges, cego, precisava da companhia de alguém, e a
timidez quase doentia sacrificou sua vida sentimental. A presença protetora da
mãe o envolveu num casulo de autoridade e segurança,. Isto lhe permitiu viajar
pelo mundo e aproveitar a fama tardia, que só lhe chegou após os 60 anos.
A lembrança de Borges me conduziu à lembrança de H. P.
Lovecraft (1890-1937), outro escritor casmurro e crepuscular. Seu pai foi internado
numa clínica psiquiátrica quando ele tinha três anos, e morreu quando ele
estava com oito. O pequeno Howard foi criado na companhia da mãe e de duas
tias, com muita dificuldades financeiras, que ele tentou suprir a partir da
adolescência, fazendo vários trabalhos ligados à escrita e redação. (Embora
afirmasse que detestava escrever à máquina.)
(H. P. Lovecraft aos 25
anos)
Sua mãe foi também internada numa clínica quando ele
estava com 29 anos, e morreu poucos anos depois. Lovecraft continuou a morar
com as tias, mas teve um breve casamento com Sonia Greene, alguns anos mais
velha que ele. O casamento foi atormentado por problemas financeiros e de
saúde. Sonia conseguiu empregos que a obrigavam a viajar o tempo inteiro; os
dois foram gradualmente se afastando, e dois anos depois se separaram. O
escritor viveu na companhia da tias até falecer em 1937.
E não vejo motivo para me esquecer do caso de Raymond
Chandler, cuja pai abandonou o lar quando ele era bem pequeno. Isto teve uma
consequência positiva. A mãe dele, Florence, era de origem irlandesa, e levou o
menino para viver com sua família, que àquela altura estava fixada em Londres.
Chandler estudou em bons colégios, e quando voltou para os EUA, já adulto, trouxe
Florence para sua companhia.
Viveram juntos mesmo quando ele começou um caso amoroso
com a que viria a ser sua esposa para o resto da vida: Cissy, uma mulher muito
bonita, culta, e bastante mais velha do que ele. E a mãe era ferozmente contra
o casamento dos dois, pois Cissy era uma mulher divorciada.
(Raymond and Cissy Chandler, em 1952)
Diz o biógrafo Tom Hiney:
A mãe de Chandler morreu finalmente em janeiro de 1924. A data de
nascimento de Florence é desconhecida, mas tinha certamente menos de sessenta
anos ao falecer. Seu filho tinha trinta e cinco, e estava começando a construir
uma pequena fortuna para si. Ele e Cissy casaram duas semanas depois, em
fevereiro de 1924. Há quem sugira que
Chandler nunca soube a verdadeira idade de sua esposa, e embora seja improvável
que um homem que se tornaria autor de histórias de detetive deixasse de
perceber discrepâncias nos documentos da própria mulher, Cissy certamente não
aparentava cinquenta e seis anos em 1924. Não tendo tido filhos biológicos, ela
mantinha uma silhueta de modelo, e, de acordo com os colegas de trabalho de
Chandler na empresa Dabney’s, tinha a presença sexual de uma mulher de trinta
anos.
(Raymond Chandler: A Biography, cap. 2,
trad. BT)
Não irei me estender aqui glosando teorias como o complexo
de Édipo ou a síndrome de Peter Pan; deixo a tarefa para os mais fluentes em Psicologia.
O que me interessa é entender de que modo a manutenção desse cordão umbilical
simbólico, longe de prejudicar esses indivíduos, provavelmente os ajudou
(imagino eu) a encontrar vazão para uma criatividade intelectual intensa,
aliada a uma incerteza e instabilidade emocional para enfrentar a vida adulta.
Cada um ao seu modo, é claro. Borges, por exemplo, era o
menos prático dos homens; mas quisera eu ter a sagacidade profissional e o tino
implacável de negociador de Raymond Chandler. Ele tinha lá suas fragilidades, mas era capaz
de botar no bolso os produtores de Hollywood e ganhar os salários mais altos de
sua época, salários com os quais nenhum roteirista daquele tempo tinha sonhado.
E ao mesmo tempo, quando lhe perguntavam se ele “era
realizado como escritor”, Chandler, que vendia milhões de livros, dizia: “Gosto
dos meus romances, mas lamento nunca ter escrito nada que pudesse mostrar com
orgulho à minha mulher.”
Escrever é uma tarefa aparentemente cômoda – basta ficar
em casa digitando textos no teclado. Essa simplicidade logística, no entanto,
bota todo o peso na extremidade oposta: o esforço para domesticar o tsunami mental do momento da escrita,
composto de raciocínios, lembranças, emoções, sugestões verbais, memórias
visuais, pedaços de frases, referências, associações de idéias... Como já disse
alguém, “basta sentar na escrivaninha e abrir uma veia”.
Há quem seja capaz, homem ou mulher, de cuidar sozinho de
uma casa e construir uma obra literária; mas cada casa é um caso. Virginia
Woolf dizia uma mulher precisava, para escrever, de um quarto só para si, e quinhentas
libras anuais de renda. Agatha Christie escrevia à mão, em cadernos pautados,
na mesa em que almoçava.
Escritores de ficção são como qualquer outro trabalhador
intelectual. Precisam de períodos extensos de recolhimento e
concentração. Frederik Pohl dizia preferir a madrugada porque não há
interrupções nem distrações, “e é possível manter pensamentos longos e
consecutivos”.
Às vezes vivem sozinhos, às vezes com esposas (ou
maridos) que servem de barreira para que não sejam interrompidos. Ou que
trancam o talentoso num quarto e o obrigam a trabalhar, como a D. Mercedes casada
com Gabriel Garcia Márquez.
Quando é a mãe do romancista que procede assim, temos a
tendência de deduzir daí uma infância artificialmente prolongada, uma atitude pouco
masculina de quem refuga a guerra da vida adulta. Pode ter algo disto, sim. Mas
cada família é feliz ou infeliz ao seu modo, e para quem olha à distância,
depois que as pessoas de carne-e-osso viraram pó, o que conta é o resultado
literário deixado por essa convivência – mesmo oblíqua, mesmo enviesada, mesmo
pouco de acordo com O Modelo.
Milton Nascimento e Caetano Veloso diziam que “qualquer
maneira de amor vale a pena”; o poeta Mallarmé dizia que “tudo existe para
resultar em livro”, e podemos pedir-lhes emprestados os conceitos para
perguntar: Uma maneira de amor que resulta em tantos livros, será que não valeu
a pena?
Um comentário:
Brilhante. Belo texto!
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