O filme Eduardo
Coutinho, 7 de outubro está em exibição no streaming do SESC Digital, plataforma gratuita que sempre tem
muitos clássicos do século passado ao lado de produções recentes.
Este registro de 2015 tem direção de Carlos Nader,
fotografia de Jacques Cheuiche, montagem de Jordana Berg. Nele, alguns jovens
realizadores e técnicos se reuniram para entrevistar “o maior entrevistador do
cinema brasileiro”, epíteto que logo nos primeiros momentos ele descarta com um
dar-de-ombros e um olhar de “mas isso de novo?”.
Coutinho pede licença para fumar, e também para dizer palavrões.
Diz ele que gosta de falar o caralho a quatro. E começa a se perguntar de onde
terá vindo essa expressão, que é aparentada com “o diabo a quatro” (título
brasileiro de uma comédia dos Irmãos Marx).
Certamente (agora sou eu pensando) não vem da folha de
papel A-4, que é mais moderna. Talvez venha do jogo do bicho, que tem um
esquema quaternário de 25 bichos multiplicados por 4 e correspondendo a 100
números. O Avestruz é o 1. Penso eu que se o considerarmos “a quatro” ele preenche
os números 01, 02, 03 e 04. A Águia (2),
por sua vez preenche o 05, 06, 07 e 08. E isso vai até o último, a Vaca, que é
25, e considerada “a quatro” preencheria as dezenas 97, 98, 99 e 00 (cem).
O caralho (ou qualquer coisa) “a quatro” seria então a
dezena correspondente; algo multiplicado, potencializado. Estarei viajando?
Pode ser.
Coutinho era um emérito falador de palavrão. O palavrão –
não como ofensa, mas como desabafo respiratório. A certa altura do filme ele
diz que se recebesse a melhor notícia e a pior notícia as únicas coisas que
seria capaz de dizer seriam “Puta que pariu” e “Ai meu Deus”.
Coutinho e Nader conversam sobre um dos princípios do
cinema dele, expresso na fórmula (que Coutinho sugere já fazer parte do jargão
dos documentaristas) de que o que se busca não é “a filmagem da verdade, e sim
a verdade da filmagem”. Diretor, câmera e equipe não estão ali para registrar,
invisivelmente, objetivamente, neutramente, a vida daquelas pessoas. Estão
gerando um fato (o encontro entre equipe + entrevistados) e registrando a
fagulha que daí resulta. A equipe também é personagem.
Coutinho dá exemplos de filmes seus como Edifício Master (2002) e O Fim e o Princípio (2005), produtos de
escolhas quase aleatórias. “Filmar assim
é como cavar petróleo”, diz Coutinho; “quando
a gente começa a cavar aqui não está cavando em outro lugar.” A escolha do Edifício Master e da cidade de
São João do Rio do Peixe para esses dois filmes foi a escolha de um pacote
fechado. Um salto no escuro, mas um escuro escolhido. Escolhe-se onde se vai saltar. O resto vem como
consequência de ter caído justamente ali.
Ele compara essas escolhas com uma “pena de morte” e “uma
prisão”, advertindo que quando o documentarista escolhe essa prisão (“Vou filmar
em São João do Rio do Peixe”) isso lhe dá uma liberdade absoluta. “O [momento] presente da filmagem é a única
coisa que me interessa”, afirma ele, dizendo que prefere isso do que
receber “dez milhões de dólares e nenhuma
prisão”.
E é um encontro sujeito a tudo, principalmente ao
fracasso. “Ou acontece em meia hora, ou
não acontece, não adianta ficar três horas”.
A “prisão” do documentarista é, em linguagem literária, a
“contrainte”, termo francês para
qualquer restrição arbitrariamente escolhida e auto-imposta. É quando o
escritor diz algo como: “Vou escrever um
poema onde cada linha tem que ter uma letra a mais que a linha anterior... vou
escrever um romance onde todos os personagens têm o mesmo nome e o leitor que
se vire... vou escrever uma peça de teatro onde todas as palavras serão
proparoxítonas...”
Preso e emparedado no plano horizontal de tais escolhas,
só resta ao artista olhar para o alto e ver que o céu é o limite.
“Tudo é um mistério! Nenhuma
questão está resolvida, está dada! E eu
acho isso maravilhoso. Tudo está pra ser descoberto.”
Entrevistar pessoas, para Coutinho, é ligar a câmera,
deixá-la parada e registrar com aquilo uma pessoa real que fala, “um corpo que fala”, diz ele, sem a
preocupação de fazer “planos de cobertura”, variação entre “frente e perfil”, o
beabá dos entrevistadores e dos diretores de fotografia.
Ele exemplifica com trechos de Santo Forte (1999) e diz ter se arrependido de semanas após a
filmagem ter colocado “inserts”, imagens soltas que servem de ilustração mas
não pertencem ao ambiente e ao momento da entrevista.
Entrando no clima randômico que Coutinho parece tanto
apreciar, o diretor Nader lhe pede: “Fala um número”, e ele responde com
admirável presteza: “1.420”, provocando risadas de todos. Era um sorteio: ele
se corrige para “7”, e o sorteado é um trecho de Edifício Master, a entrevista da jovem Alessandra.
O filme mostra em paralelo trecho de O Fim e o Princípio em que um homem idoso, à janela, lamenta o fim da
linguagem verdadeira, que se diluiu em lugar comum, e batendo na janela diz que
quando Jesus criou o mundo janela era janela. “A palavra agora não é mais a coisa,” lamenta Coutinho, lembrando o
conceito de “linguagem adâmica” de Walter Benjamin, a linguagem pré-divisão de
tudo.
E vem um trecho do Edifício
Master com três jovens, aspirantes a banda de rock, em que dois cantam e um
deles limita-se a aparecer, silencioso, impassível. O vocalista explica: “a nossa intenção com ele é que ele seja uma
mensagem visual, ele interpreta
corporalmente o que a gente quer passar com a música... Então... se ele falar
perde o sentido”.
Cutinho volta a lembrar Walter Benjamin: “Todo passado contado é mais intenso que o
passado vivido. Isso é uma verdade absoluta. Não há paixão, não há coisa que
você tenha vivido que seja tão forte na vida real do que foi, do que vinte anos
depois, contada. Não tem, não tem. É impossível.”
“Eu tenho uma fascinação por tudo que é inacabado, por tudo que é
impuro, por tudo que é imperfeito, que é precário... Por tudo que é resíduo,
por tudo que é lixo, por tudo que é detrito... Eu sou apaixonado por esse tipo
de coisa.“
Uma cena de Babilônia
2000 (2000): a mulher (negra, cabelo branco, bem curtinho, óculos) rememora
que já trabalhou em boates famosas, conheceu Juscelino Kubitschek, e no final
da entrevista confessa que a mãe engomava o terno do pai para que ele fosse
namorar na Zona. “É o Caso do Vestido
de Drummond,” comenta Coutinho. “Ela
manda as filhas entrarem quando o marido volta bêbado: ‘vosso pai evém chegando’”.
“Meus filmes veem o mundo do lado feliz, todo ao contrário do que eu
sou. Por isso meus filmes são importantes pra mim.“
Coutinho conjetura que suas entrevistas funcionam devido
a um elemento que ele não consegue definir com outra palavra senão “erótico”: a
sensação de presença e proximidade de dois corpos, a “co-presença”, como ele diz. Cita (e mostra) uma imagem de O Fim e o Princípio, em que
entrevistando D. Mariquinha, de 82 anos, a câmera em certo momento pega na
margem direita um pedaço dos seus óculos. “O
filme nos mostra juntos na mesma imagem”. É a proximidade entre os corpos,
criando uma vibração erótica no sentido mais amplo da palavra.
Um critério que ele alega ser importante é o de “justa
distância”. “Eu não falo com alguém a dez
metros de distância, mesmo que a imagem fique bonita”. “A pessoa fala uma
coisa, mas porque eu estou lá. E porque eu estou lá se produz uma coisa, pelo
fato de haver um interlocutor, e uma câmera. Pro bem e pro mal.”.“A necessidade
de ser ouvido é uma das mais profundas, se não a mais profunda necessidade
humana. Ser ouvido é ser legitimado, em sua mediocridade...”
O hábito de ler romances policiais me leva a comparar o
estilo de entrevista de Eduardo Coutinho com o método investigativo de alguns
detetives famosos, cujo melhor modelo é Hercule Poirot. O bom detetive sabe que
todo mundo mente. Todo mundo esconde alguma coisa. Não é somente o assassino
que está contando uma versão falsa dos acontecimentos. Cada um daqueles
suspeitos está fornecendo uma versão distorcida da verdade: por medo; por
insegurança; por mero esquecimento ou nervosismo; por interpretar erradamente
algo que entreviu ou entreouviu; para esconder algo que não tem nada a ver com
o crime; para acobertar outra pessoa...
Hercule Poirot dedica seu tempo a longas conversas cheias
de “cerca-lourenço”, de rodeios e despistes aparentemente sem objetivo, mas que
têm o poder de extrair de cada suspeito uma porção de informações que o leitor
vai registrando superficialmente. “Por
quê que ele perguntou isso? Que importância tem essa informação?”
Poirot consegue essa proximidade com o suspeito, em
muitos casos, por ser uma figura aprentemente inofensiva: um homem de certa
idade, meio janota, meio cabotino, mas muito educado e cortês... Ele se
aproxima, faz um monte de perguntas irrelevantes, e o suspeito vai se soltando.
E assim os fios da teia vão sendo tecidos.
Coutinho não queria pegar criminosos. Queria flagrar cada
pessoa no limiar de seus segredos, de suas confidências a que ninguém jamais
deu ouvidos. De repente, bate à porta da pessoa aquele homem ríspido, de barbas
brancas, acompanhado de câmeras e luzes. Um homem disposto a ouvir aquele velho
contar como foi ao Inferno e voltou; ouvir a mocinha dizer que deixou de falar
com o pai até que ele morreu de enfarte; ouvir aquela senhora humilde recordar
como em outra vida viveu na Alemanha de Beethoven; ouvir como aquela outra disparou
três vezes contra o ex-amante e o revólver falhou três vezes...
“Tem uma coisa que... a pessoa que eu vou falar, que ela sabe... Não
importa se é verdadeira. Tanto o que ela conta da vida, ou tanto o que ela
pensa. Mas tem uma coisa que eu tenho que
estar ‘vazio’ pra que ela possa me dizer: eu sou assassino... Ela pode me
dizer. Tem que dar a impressão de que ela pode falar isso, entende?
2 comentários:
Excelente texto. Acho que o "detetive" Coutinho tem a (des)vantagem de não saber qual crime a pessoa cometeu mas saber que ela é culpada. Aí suas entrevistas não são interrogatórios, pois ele não quer provar nada. Já os seus suspeitos, movidos pelo desejo de se provar inocentes, acabam se confessando culpados. Um gênio .
Lisandro, é tipo isso... Ele não sabe o que está procurando, mas os entrevistados sabem o que estão escondendo. E aí acabam entregando. :-)
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