Ele comprou o troço pela Internet numa madrugada, durante o paraíso da entressafra, aquele período mágico em que um dinheiro de um serviço ainda não acabou e o trabalho do próximo não começou ainda. Na terceira cerveja descobriu dez saites novos de animações pornô, na quarta baixou a obra completa de um trumpetista egípcio elogiado por um filósofo romeno, na quinta torrou 21 dólares e 99, frete incluso, no tal do puzlo.
Essa era a grafia proposta por ele no ensaio que estava
escrevendo sobre os jogos de quebra-cabeças com paisagens, etc., daqueles
grandes, tipo mil peças. O ensaio era erudito mas despretensioso, misturava
citações de Georges Perec, Robert Altman, Orson Welles. O pacote chegou pelo
correio um mês depois e ele já tinha esquecido. Uma caixa com rótulos cheios de
ficha técnica, nenhuma ilustração, e dentro um saco enorme com pecinhas soltas
de um plástico maciço, fosco, agradável às pontas dos dedos.
Quem não tem uma mesa imensa pode ter duas mesas de
ping-pong numa ex-garagem, que não são usadas há anos e por isso podem ser
arrastadas para o centro, sob a luz, forradas com um tecido escuro, para que
ali comece a ser encaixada a paisagem. Ele começou a separar por cor, depois
foi tateando, descobrindo, juntando umas vinte pecinhas para mostrar uma
estátua com a garganta mordida por um macaco, ou um sol oblíquo revelando um
rosto numa parede de barro.
Usou como referência o horizonte ao fundo. A separação entre
o verde de um e o azul do outro parecia aquelas telas luminosas de Sérgio
Lucena onde céu e mar formam um tecido de uma só luz inconsútil. Dali ele
situou as bordas, encheu-as de imagens, resolveu essa moldura retangular e veio
compondo o quadro de fora para dentro, rumo ao centro.
Ao chegar no meio, descobriu que restava um buraco – e a
última peça, que era bem maior do que esse espaço. A última não se encaixava.
Levou semanas, meses, anos? No dia em que varreu tudo ao chão com fúria ele
teve a idéia. Recolocou e forrou as mesas, pôs no centro do espaço escuro essa
última peça, sozinha, soberana. Percebeu que partindo dela como início havia
encaixe, sim, desde que as demais peças em volta fossem inseridas numa ordem
específica.
Um comentário:
Muito bom esse conto! Parabéns!
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