quarta-feira, 28 de outubro de 2015

3957) Mosaico Andaluz (29.10.2015)



Ele comprou o troço pela Internet numa madrugada, durante o paraíso da entressafra, aquele período mágico em que um dinheiro de um serviço ainda não acabou e o trabalho do próximo não começou ainda. Na terceira cerveja descobriu dez saites novos de animações pornô, na quarta baixou a obra completa de um trumpetista egípcio elogiado por um filósofo romeno, na quinta torrou 21 dólares e 99, frete incluso, no tal do puzlo.

Essa era a grafia proposta por ele no ensaio que estava escrevendo sobre os jogos de quebra-cabeças com paisagens, etc., daqueles grandes, tipo mil peças. O ensaio era erudito mas despretensioso, misturava citações de Georges Perec, Robert Altman, Orson Welles. O pacote chegou pelo correio um mês depois e ele já tinha esquecido. Uma caixa com rótulos cheios de ficha técnica, nenhuma ilustração, e dentro um saco enorme com pecinhas soltas de um plástico maciço, fosco, agradável às pontas dos dedos.

Quem não tem uma mesa imensa pode ter duas mesas de ping-pong numa ex-garagem, que não são usadas há anos e por isso podem ser arrastadas para o centro, sob a luz, forradas com um tecido escuro, para que ali comece a ser encaixada a paisagem. Ele começou a separar por cor, depois foi tateando, descobrindo, juntando umas vinte pecinhas para mostrar uma estátua com a garganta mordida por um macaco, ou um sol oblíquo revelando um rosto numa parede de barro.

Usou como referência o horizonte ao fundo. A separação entre o verde de um e o azul do outro parecia aquelas telas luminosas de Sérgio Lucena onde céu e mar formam um tecido de uma só luz inconsútil. Dali ele situou as bordas, encheu-as de imagens, resolveu essa moldura retangular e veio compondo o quadro de fora para dentro, rumo ao centro.

Ao chegar no meio, descobriu que restava um buraco – e a última peça, que era bem maior do que esse espaço. A última não se encaixava. Levou semanas, meses, anos? No dia em que varreu tudo ao chão com fúria ele teve a idéia. Recolocou e forrou as mesas, pôs no centro do espaço escuro essa última peça, sozinha, soberana. Percebeu que partindo dela como início havia encaixe, sim, desde que as demais peças em volta fossem inseridas numa ordem específica.

E daí o quebra-cabeças foi se rearmando. De dentro para fora. As imagens pareciam as mesmas e outras. Sáurios, arranha-céus, samovares, frutas, mecanismos infatigáveis, estelas dormindo na jângal. E quando colocou a última peça, ele entendeu que um quebra-cabeças que começa a partir do próprio centro não tem a menor necessidade de ter a forma final de um retângulo, ou mesmo qualquer forma que seja.



Um comentário:

Paulo Rafael disse...

Muito bom esse conto! Parabéns!