domingo, 30 de maio de 2010

2096) As escolhas de Sofia (26.11.2009)



Eu estava no interior do HD Universal, que é um complexo de galáxias onde está gravada a Memória do Universo. Não recordo como fui transferido para lá; mas, mais importante do que o “como” é o “por quê”. Num espaço esférico cheio de luz e sem sombras, vi-me cercado por uma dúzia de vultos altos, de aspecto vagamente humano, que se comunicavam comigo através de corpúsculos telepáticos (sim, amigos, o pensamento não consiste em ondas, e sim em partículas). Sintonizado com sua mente coletiva, fui informado da razão de minha presença ali. Disseram-me que a Humanidade terrestre havia atingido um ponto de saturação informacional. Já tinha coisa demais; era preciso deletar uma parte de nossa cultura, a fim de que ela tivesse espaço para continuar se desenvolvendo.

Me informaram que era um trabalho feito periodicamente, assim como limpamos nosso disco rígido e esvaziamos nossa lixeira. Minha presença ali era para representar a raça humana no momento de tomar decisão – numa área, garantiram-me, sobre a qual eu estava perfeitamente capacitado para opinar. “Um desses movimentos culturais será deletado e sumirá para sempre da memória humana”, explicaram-me os vultos em uníssono. “Cabe a ti decidir qual deles: a Bossa Nova ou a Jovem Guarda?”. Meditei durante alguns milênios (menos por indecisão do que pelo deleite de saborear milênios) e proferi meu veredito: “Entre o barquinho e o calhambeque, fico com o calhambeque”. Retornei ao mundo, ao Brasil, ao Rio, e ninguém jamais tinha ouvido falar em Vinícius, Tom Jobim, João Gilberto, Menescal & Bôscoli... Até Fernanda Takai, coitada, tinha sumido (o Pato Fu tinha agora em seu lugar uma vocalista loura e saradona). Em compensação, o Aeroporto do Galeão se chamava agora Aeroporto Ronnie Cord.

Cometi um crime, leitores? Talvez, no que tange à cultura brasileira. Mas fui sincero comigo mesmo. Vivi o alvorecer, o zênite e o crepúsculo dos dois movimentos, e por alguma razão (que não me cabe diagnosticar) meu cérebro sempre me inclinou para a Bossa Nova e meu coração para a Jovem Guarda. Acho João Gilberto um gênio, mas quem me emociona é Erasmo. Entre o Zimbo Trio e Renato e Seus Blue Caps, divulgo o primeiro entre meus amigos gringos, mas é o segundo que escuto em casa. Tudo isto porque nunca saberemos o que vai marcar afetivamente nossa infância e adolescência.

Questionado sobre os tchecos que têm saudade do comunismo, Lech Valesa (O Globo, 10.11.2009) observou: “Há pessoas que têm nostalgia do passado, da época do primeiro amor, que por coincidência total foi na era do comunismo. Essas pessoas podem ter nostalgia dessa época, mas isso não significa que tenham saudade do comunismo. Além disso, as pessoas que eram crianças e adolescentes nessa época não sabem avaliar direito como era, o que havia de errado no sistema”. Nossas lealdades afetivas se formam à revelia de nossas idéias, e muitas vezes não conseguimos distinguir entre umas e outras.

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