quarta-feira, 30 de novembro de 2011

2727) Macondo - The Game (30.11.2011)




(xilogravura: Stephen Alcorn)

Este lançamento da Carybernetics para 2035 traz um oxigênio novo para o mundo dos “computer games”, que andava meio saturado de temas como zumbis por nanotecnologia, espada-e-feitiçaria neo-islâmica e impérios submarinos.

A abertura do game nos traz em câmara subjetiva descrevendo o voo de uma folha de árvore através de uma floresta tropical, que de súbito se abre num barranco, mostrando um povoado de casas de barro e solares rústicos, enquanto a voz do autor nos diz:

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía recordaria o dia remoto em sua infância quando seu pai o levou para conhecer o gelo”. 

 A palavra final fecha o movimento da câmara sobre um cubo maciço, cercado por ciganos e coberto de serragem, onde a câmara penetra exibindo o intrincado menu.

Toda a árvore genealógica dos Buendía está ali, entrelaçada à história da Colômbia e às outras obras de Márquez (é brilhante a conexão com o universo do Outono do Patriarca).

Os amantes de violência e ação têm farto material para batalhas através das guerras quixotescas perdidas pelo Coronel Aureliano (note-se que mesmo quando o jogador consegue ganhar essas batalhas, a situação política o força a travá-las de novo, interminavelmente).

Idem quanto ao duelo entre José Arcádio e Prudencio Aguilar, que tem de ser travado em sonho, ou pesadelo, por todos os seus descendentes. Há também pequenos momentos de descontração, como o minijogo de forjar e derreter peixinhos de ouro, ou a possibilidade de produzir microtatuagens na pele de José Arcadio.

Há muita sutileza na recriação de Remédios a Bela, cuja imagem só é vista por microssegundos (alguns jogadores conseguiram capturar frames do seu rosto, mas as versões falsificadas são muito mais numerosas que as legítimas). Os numerosos Arcádios e Aurelianos são recriados a partir de um mesmo avatar, com adição de pequenos detalhes que os diferenciam. (Uma das opções do jogo é ver toda a história através da matriarca Úrsula: nesta versão, todos os Arcádios e Aurelianos são totalmente diferentes entre si.)

Para os que apreciam mais o mistério do que a aventura, a decifração dos manuscritos do cigano Melquíades pode servir como um fio condutor para o desenrolar de toda a história, embora os criadores do jogo tenham tomado algumas liberdades, incluindo nele praticamente toda a obra restante de Márquez.

Em resumo: uma prodigiosa reconstituição gráfica da floresta, dos bananais, dos pântanos caribenhos; e uma proliferação de subnarrativas que justificam o slogan dos produtores, que promete “cem anos de entretenimento” a quem quiser zerar o jogo. Cotação: 5 estrelas.









terça-feira, 29 de novembro de 2011

2726) A palavra vôte (29.11.2011)




“Vôte!” é uma dessas exclamações tipicamente nordestinas que de vez em quando os visitantes nos pedem para explicar e não temos a menor idéia sobre o lugar de onde veio ou sobre o que significa ao pé da letra. Usamos, e acabou-se.

Tecnicamente, é uma interjeição que exprime assombro, repulsa, susto, perplexidade. "Vôte! Que diabo é isso? Parece um homem vestido de mulher!" Equivale mais ou menos ao "Eu, hein!" muito popular no Rio, e ao "T'esconjuro!" muito usado nas regiões rurais...

Como um dos meus passatempos favoritos é imaginar etimologias possíveis para as palavras, penso às vezes que a origem de “vôte!” deve ser alguma expressão do tipo "Vou te esconjurar..." ou semelhante.

Já cheguei a imaginar que o termo informal “wot” em inglês seria um equivalente ao nosso “vôte”, por ser usado em contextos semelhantes, como exclamação de surpresa. Mas sua pronúncia, no entanto, é “uót” (mais ou menos a mesma da sua forma gramatical, “what”). Não tem como fazer a pronúncia “uót” virar “vôte”; é mera coincidência, certamente.

É palavrório típico do povão, daí os versos de advertência e censura de Laurindo Pereira de Sousa, o poeta popular conhecido como Bernardo Cintura:

É um bom vício amolar
para o sujeito que amola,
é feio pedir esmola
se se pode trabalhar.
É mau vício não pagar,
dizer dito: vôte, oxente,
isso é lá vício de gente,
isso é vício de vadio;
pra quem tem calor ou frio,
de vício só aguardente.
(citado por Cristino Pimentel, em Abrindo o Livro do Passado).

O poeta nivela “vôte” e “oxente”, ditos populares, a ações de mau gosto como não pagar uma dívida; mas se trai no final quando absolve a cachaça, e cá pra nós, perde um pouco de credibilidade pra falar mal do vôte alheio.

Um saboroso livro memorialista é o do pintor popular pernambucano Celestino Gomes, Da Roça a Roma. Chamo-o de pintor popular porque é um autodidata que sempre vendeu seus quadros na rua, mundo afora, e nunca acessou o “Grand Monde” das artes. Em suas memórias ele conta, narrando sua paixão impossível por uma jovem:

“Numa tentativa alucinada de amante, escrevi um bilhete. O texto: ‘Me prepondero com indiferença, amor e cortesia, ser um dos seus eleitos. Se você por acaso aceitar-me, como Julieta aceitou Romeu, escreva-me dizendo sim; jamais diga não a este saudável pretendente’. Ela recebeu o bilhete, dizendo que me daria a resposta em quinze dias. Qual foi a minha surpresa! No mesmo dia ela vem dizer, feito uma jararaca: ‘Não, não e não, de jeito nenhum, vôte condenado’.”

Dizemos “vôte” quando queremos dizer: nem pensar, de jeito nenhum, desaparece daqui, ave Maria que coisa horrorosa.







domingo, 27 de novembro de 2011

2725) Os gols perdidos (27.11.2011)




Uma das curiosidades da história de Pelé é o endeusamento que os torcedores fazem dos famosos gols perdidos por ele na Copa de 1970. Chamar de gols perdidos é injustiça, aliás. Gol perdido é aquele que é facílimo de fazer e o cara não consegue. No caso de Pelé, foi justamente o contrário. Foram gols quase impossíveis de fazer e que ele quase fez. Aí reside a arte e o mistério.

O primeiro foi no jogo de estréia do Brasil na Copa, contra a Tchecoslováquia, país que sempre foi bom de bola. Pelé dominou a bola no centro do campo e viu que o goleiro estava adiantado. Mandou um chute por cobertura que ao descer passou raspando a trave, desnorteando o goleiro, a torcida e os câmaras de TV, nenhum dos quais estava preparado para fazer aquele movimento num lance tão “sem perigo de gol”. Daí em diante, dezenas de jogadores já fizeram esse gol. Só Pelé não fez. Mas o gol é dele, não é mesmo?

Os outros dois foram na partida semifinal, quando ganhamos do Uruguai por 3x1. Um deles veio de um tiro de meta batido pelo goleiro uruguaio, Mazurckiewicz, que em vez de dar um chutão para o alto cometeu a imprudência de mandar a bola para o meio do campo a meia-altura. No meio do caminho estava Pelé, que, sem dizer água-vai, rebateu a bola para o gol com um chute fortíssimo, que o goleiro só defendeu porque era, na época, um dos melhores do mundo.

Mais tarde, Pelé foi lançado em profundidade, perseguido pelos zagueiros, e o goleiro saiu ao seu encontro. Como a bola vinha em diagonal, todo mundo pensou que Pelé ia dominá-la puxando-a para a esquerda, no que seria o movimento natural, pelo fluxo da jogada. Ele simplesmente passou por cima da bola sem tocá-la, rodeou o goleiro, alcançou a bola pelo lado oposto e chutou para o gol, A bola saiu, raspando a trave. Zico fez esse gol, anos depois; outros jogadores já devem tê-lo feito. Mas a quem pertence o gol?...

A obra de arte pertence a quem primeiro teve o vislumbre de sua existência e a trouxe, mesmo incompleta, ao mundo. Eram jogadas que não existiam no futebol, e a genialidade de Pelé (“data vênia” os muitos gênios do futebol que vieram antes ou depois dele) estava não somente na execução das jogadas, mas na invenção. Pelé foi um artista inventor, no sentido que Ezra Pound atribuía a alguns poetas. Esses gols que ele não marcou brotaram de improvisos geniais, feitos em fração de segundo, talvez pensados antes, como todo grande improviso, mas sem poder saber quando as circunstâncias certas ocorreriam. “A bola não quis entrar”? Paciência. Esses gols entraram para a arte e a técnica do futebol, e é para isso que existem os poetas-inventores.

sábado, 26 de novembro de 2011

2724) Os degraus do improviso (26.11.2011)




O improviso musical é uma coisa fascinante, e acho que fascina ainda mais aqueles indivíduos que têm um pouquinho de familiaridade com um instrumento mas não chegam a ser grandes músicos. Eles percebem (porque também tocam um pouco de piano, ou de guitarra, de sax, seja lá do que for) o quanto aquilo é difícil de fazer, e admiram melhor a aparente facilidade de quem o faz. 

Para quem é totalmente leigo, tudo parece ou igualmente fácil ou igualmente impossível. Apenas o semi-talentoso é capaz de entender de verdade o que o talentoso está fazendo.

No caso da música, temos, por exemplo, aquelas circunstâncias em que não se espera do músico que ele improvise, e sim que execute com perfeição. Não pode engolir uma nota sequer, não pode pular uma pausa, tem que ser tudo do jeito que está escrito na partitura ou consagrado na memória. 

Cabe ao músico juntar a essa reprodução perfeita uma dose de emoção pessoal que dê ao público uma impressão de algo novo, espontâneo, de uma coisa que está acontecendo ali pela primeira vez. 

A música erudita, de concerto, tem um pouco desse espírito. O concertista não está ali para inventar música, mas para recriar algo que já existe.

Depois, há um degrau intermediário em que o músico trabalha com partes iguais de memória e de momento. É quando, na música popular, chega o momento do solo instrumental. O cara sabe a melodia que vai tocar, tem uma idéia aproximada do que vai fazer; mas o resultado, que não precisa ser igual a nenhuma versão anterior, vai depender do momento, de sua “inspiração”. 

Inspiração é a capacidade de se concentrar no que está tocando e fazer, em frações de segundo, as escolhas melódicas mais adequadas, mais surpreendentes e mais cheias de informação nova, sem entrar em choque com a harmonia subjacente (a sequência de acordes que serve de base ao solo).

E existe o improviso total. O cara está ouvindo uma música pela primeira vez (no estúdio ou no palco) e precisa descobrir caminhos, sem muito tempo para pensar, confiando na sua bagagem musical (conhecimento de acordes e de escalas) e na sua “inspiração”. 

Ele chega ao estúdio para tocar no disco de Fulano, mostram-lhe as partes já gravadas da música e o trecho onde ele vai tocar. Ele escuta, pega o jeitão da música, empunha o instrumento, manda gravar e toca. Às vezes tem que refazer, porque não saiu legal. Outras vezes, faz um improviso perfeito como se já tivesse tocado aquilo mil vezes. 

Ou então sobe ao palco para dar canja num show alheio, com músicos com quem nunca tocou, numa canção que desconhece. E faz um improviso que fica para a História. Como? Não sei, mas já vi acontecer.





sexta-feira, 25 de novembro de 2011

2723) “O Grande Tertiano” (25.11.2011)




É um conto antigo do grande Anthony Boucher, escritor de romances policiais e de ficção científica, crítico, editor e, incidentalmente, o homem que fez a primeira tradução e publicação de Jorge Luís Borges nos EUA. 

“The Greatest Tertian” (1952) é um conto em forma de artigo acadêmico de um pesquisador de uma civilização alienígena do futuro, estudando as lendas longínquas do distante planeta Terra. 

Nesse futuro, a história da Terra se diluiu em lendas confusas e somente dois terrestres (=tertianos) ainda são lembrados. O primeiro, conhecido como Shark Oms, era um detetive de rara inteligência, que desvendava os crimes mais complicados. O segundo, chamado Shark Sper, era um dramaturgo e poeta que escreveu as maiores comédias e tragédias do teatro de seu tempo.

O lance de ousadia acadêmica do autor do artigo consiste num raciocínio indiscutível. Ele aponta o fato de que essas duas figuras lendárias viveram na mesma cidade terrestre, chamada “Londres”, em datas, segundo os registros, muito próximas. Sabem-se centenas de episódios da vida do detetive Shark Oms, mas nenhum dos seus escritos sobreviveu. Por outro lado, preservou-se toda a obra do dramaturgo Shark Sper, mas quase nada de sabe sobre sua vida. Ora (pergunta o autor), isto não sugere que os dois são um único indivíduo? 

Esse indivíduo seria “o grande tertiano”, famoso pelas suas deduções brilhantes e pelos seus versos geniais.

O conto de Boucher ironiza as nossas tentativas de interpretar os farrapos de evidências que temos a respeito de civilizações desaparecidas. Pedaços de biografias, datas contraditórias, fatos cheios de lacunas, versões conflitantes que às vezes coincidem num ponto secundário, nomes que soam de um jeito parecido e podem ser o mesmo... 

A idéia (um tanto borgiana, com um viés satírico) de considerar que Sherlock Holmes e Shakespeare foram a mesma pessoa não está muito longe dos estudos de hoje em dia tentando determinar a existência de um imaginário poeta chamado Homero que teria escrito a Ilíada e a Odisséia

Lembra também uma especulação de Carl Sagan (acho que no livro Cosmos) ao falar das tragédias de Ésquilo ou Sófocles, das quais só conhecemos um pequeno número. Diz Sagan que é como se uma civilização futura ouvisse falar em Shakespeare mas só tivesse preservado peças como Timon de Atenas, Bem está o que bem acaba, Coriolano, e tivesse vagas referências a textos perdidos com os títulos de Hamlet, Rei Lear ou Romeu e Julieta

A história é uma montagem de cacos e farrapos, feita, em partes iguais, de deduções como as de Sherlock Holmes e de uma imaginação criadora como a de Shakespeare.






quinta-feira, 24 de novembro de 2011

2722) A segunda Brasília (24.11.2011)



(elefante branco da África do Sul, foto de Gero Breloer)

A Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 se aproximam. Olhando o horizonte de eventos, ainda não consegui enxergar a bola rolando no gramado nem os atletas correndo nas pistas. O que enxergo são as partes superiores dos estádios, dos ginásios, dos viadutos, dos complexos esportivos e das vilas que serão erguidas por construtoras eufóricas. Tanto dinheiro gasto talvez tenha um bom reflexo na pirâmide social brasileira. Alguém vai passar da classe C para a B, e alguém vai passar da B para a A-. A classe A+, como sempre vai continuar sendo um clube fechado com número fixo de sócios. E o fato de toda essa movimentação atingir menos de 1% da população não tem muita importância, porque ao restante caberá o consolo de sempre, a “geração de empregos”.

Na África do Sul, a maioria dos estádios construídos para a Copa de 2010 está entregue às baratas, porque o futebol local não tem força econômica suficiente para torná-los rentáveis. Estão fechados para jogos, abrindo apenas para que turistas de todos os países entrem e tirem fotos para mostrar na volta para casa: “foi aqui que nossa Seleção ganhou de Fulano ou Sicrano”. Não sei como anda a média de público no Campeonato Brasileiro, mas me lembro que no primeiro semestre o campeonato regional com maior média de público era o pernambucano, com 7 mil pagantes. Na maioria dos Estados (com exceção de Rio e São Paulo) existe apenas um grande clássico unindo duas grandes torcidas: Gre-Nal, Ba-Vi, Cruzeiro x Atlético, etc. Esses jogos serão capazes de tornar rentáveis os elefantes brancos?

O que se desenha no horizonte é uma nova Brasília de concreto, cimento, aço, cifrões invisíveis e tenebrosas transações. Brasília (independentemente das coisas positivas que sua criação acarretou) provocou rombos gigantescos e fortunas instantâneas. Quando eu era pequeno ouvia histórias de como Brasília tinha sido construída. Fulano de Tal se comprometia a entregar pelo preço X um total de 50 caminhões de areia. O caminhão entrava no canteiro de obras, sua entrada era registrada (“Primeiro caminhão!”), ele ia até o final, saía, dava a volta, entrava de novo (“Segundo caminhão!”) e passava o dia assim.

Essa lenda urbana lembra a bolsa inesgotável das histórias de cordel; e bate com a das republiquetas latino-americanas que no desfile do Dia da Pátria, diante de embaixadores estrangeiros, faziam a mesma meia-dúzia de batalhões darem a volta ao quarteirão e desfilarem de novo. Algo me diz que depois desses mega-eventos esportivos o valente Eduardo Galeano vai ter que acrescentar um apêndice de 50 páginas ao seu clássico As Veias Abertas da América Latina.

2721) A morte da menina (23.11.2011)



No século 19, grande parte da literatura popular era publicada em folhetins, aqueles rodapés dos jornais diários, em forma de narrativa seriada. Todo dia, ou toda semana, conforme o caso, saía mais um capítulo da história. O leitor recebia o jornal em casa, se fosse assinante; ou ia até a banca para comprá-lo. Exatamente como hoje. E nesse contato diário com o jornal ele ia, entre outras coisas, acompanhando aventuras policiais, de capa-e-espada, melodramas sentimentais ou dramas familiares.

O folhetim era mais típico da França, mas foi Charles Dickens o grande folhetinista inglês, e um dos maiores de todos os tempos. A maioria dos seus romances foram publicados primeiro assim, como folhetins serializados, que os leitores corriam a comprar assim que o jornal saía às ruas. Um desses romances foi A Velha Loja de Curiosidades (1840-41), do qual se conta a seguinte história.

A protagonista é Nell, uma órfã de bom coração que vive perseguida pelas piores adversidades, como é de praxe no gênero. Todo mundo se comovia com a bondade da menina, os sacrifícios que era obrigada a fazer, e a doença que ia minando sua resistência, fazendo todo mundo ficar temeroso pela sua vida. Os jornais com a história de Nell vinham de navio da Inglaterra para os EUA. Cada navio trazia um pacote de jornais com novos capítulos da aventura. E a ansiedade dos leitores era tanta que, reza a lenda, quando um desses navios chegou ao porto de Nova York os marinheiros no convés viram lá embaixo, no cais, uma multidão de gente se espremendo, se empurrando, e gritando para eles no navio: “A menina morreu?...”

A ansiedade em saber o que acontece num folhetim (e a telenovela cumpre hoje a mesma função) impedia os leitores de ficarem em casa, esperando que o jornal fosse enfiado por baixo da porta. Não, eles trocavam de roupa, pegavam um tílburi ou um cabriolé (sei lá o que servia de táxi naquele tempo) e iam até o cais do porto no dia e hora previstos para a chegada do navio. E o grito coletivo da multidão mostrava que todos supunham, provavelmente com razão, que a tripulação do navio já tinha lido os episódios mais recentes e sabia o desfecho da história.

Hoje, lemos nas revistas os resumos de todos os capítulos de novelas que irão ao ar durante a semana. O suspense novelesco cumpre duas etapas. Primeira, sabermos “se a menina morreu”. Segunda, saborearmos, munidos desse conhecimento, cada momento de drama, cada diálogo sentimental, cada arroubo dos atores. Temos primeiro a notícia da cena (a fruição do enredo) e depois a cena em si (a fruição do estilo). Não são emoções contraditórias; são complementares.

2720) O mar e o sertão (22.11.2011)




Glauber Rocha popularizou a frase “O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. A linguagem profética é um subgênero da poesia. Uma linguagem em tom elevado, usando imagens vívidas num contexto paradoxal que pode ser interpretado de mil maneiras diferentes. 

Há uma forte interpenetração entre profecia e poesia. Aí estão livros como Mensagem de Fernando Pessoa, as visões versejadas do sapateiro Bandarra, as Centúrias de Nostradamus. 

As profecias das bruxas de Macbeth, da pitonisa de Delfos, ou dos sermões de Antonio Conselheiro compartilham essa linguagem. Estamos sempre a um passo de entendê-la por completo, e ela sempre nos escapa por um pouquinho. E cada fato que acontece diante dos nossos olhos parece confirmar, de um modo diferente, essas visões. 

Minha profecia predileta ainda é a do Padre Cícero: “Vai chegar o tempo em que a roda grande vai passar por dentro da roda pequena”. A frase de Deus e o Diabo na Terra do Sol também traz embutida em si essa promessa de que o mundo sofrerá mudanças radicais – promessa, aliás, que é a mercadoria mais vendida pelos profetas de todos os tempos. 

Essa troca de posições entre o mar e o sertão parece também se harmonizar com o que a ciência nos diz sobre a forma antiga dos continentes. Havia o tal de Gonduana em que a América do Sul se encaixava no “sovaco” da África como duas peças de quebra-cabeças. Dizem meus amigos cearenses que as palavras atuais “Ceará” e “Saara” vêm de uma mesma palavra remota, que preservava a lembrança de quando essas duas regiões eram uma só, antes da separação dos continentes. 

Glauber nos fez imaginar um sertão sendo invadido pelos tsunamis torrenciais produzidos pelo efeito estufa e pelo degelo dos polos, enquanto por uma descompensação geológica qualquer o leito do oceano ficaria exposto ao sol, o plancto ressecando em rochas indestrutíveis. 

Mas talvez o sentido da profecia não esteja em “virar a moeda” de quem está quieto, no caso o Oceano Atlântico. Ela se refere somente ao sertão. Visitem o Cariri cearense, a feira de Juazeiro, vejam aquelas pedras fósseis com esqueletos de peixe, achadas nas regiões caririzeiras mais áridas. O sertão pode virar mar porque naquele mesmo local existia um mar que virou sertão. 

O que esteve submerso um dia, e hoje não passa de um raso requeimado pelo sol, pode ser submerso de novo. O oceano talvez se detenha diante do Arquipélago da Borborema, rodeando-o. Os peixes encravados nas pedras do Juazeiro abrirão os olhos, abrirão as guelras e voltarão a nadar nas suas águas antiquíssimas. O sertão é uma mera fase entre dois momentos do mesmo mar oceano. Quem sobreviver, verá.






domingo, 20 de novembro de 2011

2719) O torcedor símbolo (20.11.2011)



(Jaime de Carvalho)

O futebol tem um Panteão de craques, de artilheiros matadores, de goleiros imbatíveis, de grandes capitães. Os cartolas só entram para a História de raspão, resvalando, como notas ao pé de página em que depois de um capítulo inteiro de comentários sobre um título de campeão, alguém diz de passagem: “Aliás, isso foi na gestão de Fulano de Tal, e o supervisor de futebol era Sicrano”. Existe uma certa injustiça nisto, porque sempre houve e haverá grandes diretores. Homens de visão que sabem ousar na hora certa e que trabalham pelo clube, não pelos seus cofres pessoais.

E existe o torcedor-símbolo, que sem fazer muito marketing pessoal fica associado à memória coletiva do clube que amou. Alguns sozinhos, outros organizando pequenas charangas, precursoras das atuais torcidas organizadas, que em muitos casos distorceram e estragaram o espírito do “ser torcedor”.

Pra mim os torcedores-símbolo dos estádios eram (entre muitos outros) o raposeiro Papa Sebo, que levava uma bela e enorme (para os padrões da época) bandeira do Campinense em todos os clássicos; e o do Treze era Zé Pezinho, um lavador de carros que tinha um pé torto e uma infinita capacidade de esbravejar palavrões. Entre os dois se travava, a dezenas de metros de distância, um verdadeiro duelo de titãs por entre gritos e foguetório. (Sem esquecer, claro, Zé Preá, aquele que batia com a almofada no chão da arquibancada do PV e provocava um grito coletivo de resposta.)

O Flamengo teve (na minha infância) a charanga de Jaime de Carvalho, um cara de cabelo e bigode grisalhos cuja bandinha de percussões e sopros foi imortalizada no samba que diz “Flamengo, joga amanhã que vou vou pra lá... (...) Pode chover, pode o sol me queimar, eu quero ver a charanga do Jaime tocar...”. Algumas pessoas dizem “Jorge”, mas é por contaminação do São Jorge citado na estrofe anterior. Era Jaime mesmo.

O Botafogo (na minha infância) tinha Tarzan, um sujeito parrudo, tipo um Ivan Gomes carioca, eternamente com a camisa alvinegra, bradando e sofrendo na arquibancada. O Vasco tinha Dona Dulce Rosalina, uma mulher morena, magrinha, que naquele tempo causava uma certa perplexidade, acho, porque liderava um grupo de torcedores naquele vibrante (e geralmente inútil...) “cazá cazá cazá!”. E tinha Ramalho, um negro magro tipo Chuck Berry, de boné na cabeça, que soprava um talo de mamona e fazia sozinho um barulho ensurdecedor. (É o que dizem. Eu era menino, nunca tinha ido ao Maracanã, sabia dessas coisas pela Manchete Esportiva ou pela Revista do Esporte).

E o Fluminense? O Fluminense tinha Nelson Rodrigues. Pra vocês verem – até nisso o Fluminense é uma elite.

sábado, 19 de novembro de 2011

2718) Cão do segundo livro (19.11.2011)




É uma dessas expressões bem nordestinas, equivalente a “cachorro da mulesta”, para qualificar um sujeito que está arrasando, que está botando pra quebrar. Um sujeito competentíssimo no que faz, sem rival, sem comparação. 

“Rapaz, esse Ayrton Senna é o cão do segundo livro... A caixa de marcha quebrou, e ele levou o carro até o fim só no muque!” 

"Meu amigo... aquele ponta-esquerda é o cão do segundo livro, recebeu dez bolas e cruzou todas dez na cabeça dos atacantes".

Fala-se no “cão chupando manga”, “cão chupando pena”, fala-se até no “raio da silibrina”, mas a discussão mais interessante é sobre a origem do “cão do segundo livro”. 

Minha primeira impressão foi de que o Cão seria o Diabo, e que o segundo livro seria o Novo Testamento. O tal termo de comparação seria portanto aquele Diabo melífluo e insidioso que leva Jesus lá em cima da montanha e diz: “Tudo isto será teu, se prostrado me adorares”, ao que Jesus responde, em aramaico: “Vôte, capirôto!”.

No Blog “Gandavos – Os contadores de histórias”, de Carlos Lopes (http://tinyurl.com/d9hnxld), discute-se a origem do termo. Um texto de Augusto Sampaio Angelim naquele blog, reproduzindo uma imagem da carta “O Diabo”, do Tarô, diz: 

“Usava-se a expressão ‘o cão do segundo livro’ em dois sentidos. Um de conotação negativa, quando se queria dizer que o indivíduo era ruim, feio ou horrível. Outro, positivamente, para identificar alguém como o melhor da turma, o melhor jogador, o mais astuto, o “tampa”, etc...” 

E o autor afirma que o poeta Soares Feitosa, no seu “Jornal de Poesia”, teria provado que a origem do termo era uma fábula moralista (em que o Diabo mergulha um rapaz no vício do álcool), que aparece no Segundo Livro de Leitura, de Felisberto de Carvalho, famoso livro didático que as gerações mais antigas estudaram na infância.

Essa informação coincide parcialmente com um artigo do pintor José Cláudio (Diário de Pernambuco, 23-2-1999), onde este também atribui a origem aos livros de Felisberto. Ele cita essa mesma imagem do Diabo do Tarô, mas com certo desdém, e afirma: “Cão, pra mim, é o do terceiro livro!”. 

O Terceiro Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho contém a imagem de um cão ameaçador. Esse artigo no DP reproduz ambas as ilustrações, do diabo e do cachorro, e de fato a imagem do cachorro é muito mais impressionante.

É curiosa esta hesitação entre os dois sentidos da palavra “cão” e o fato de dois livros do mesmo autor conterem ilustrações que podem ter dado origem ao termo. A menos (como sempre) que uma nova explicação apareça, engenhosa e plausibilíssima como costumam ser as explicações inventadas.






sexta-feira, 18 de novembro de 2011

2717) Armadilhas de hotel (18.11.2011)




Eu sou diferente da maioria das pessoas: adoro dormir em hotel. Muita gente se queixa da “impessoalidade” dos hotéis, mas é justamente disso que eu gosto. Gosto de ambientes impessoais, onde ninguém sabe quem eu sou, e posso ser tratado com a cortesia e a distância que se dedica a qualquer cliente, freguês, usuário. Hotel é a coisa mais democrática que existe. Ninguém está me tratando bem porque eu sou eu, está me tratando bem porque tem o compromisso de tratar bem qualquer hóspede. (Estou falando dos bons hotéis, é claro. Que são muitos.)

Mas hotel é um lugar perigoso danado. Uma vez, eu estava fora do Brasil, sozinho, e saí para tomar umas cervejas. Ao retornar para o hotel de madrugada resolvi tomar um banho. Era uma daquelas banheiras de chão recurvo, e quando isso se juntou com o sabonete e a espuma do xampu, não precisou nem o efeito da cerveja para me fazer escorregar e cair com toda força. Sofri uma fratura no crânio e meu corpo só foi encontrado na manhã seguinte, quando a arrumadeira passou no corredor e viu a água saindo por baixo da porta do quarto. (Brincadeira: só fiz machucar o ombro, mas imaginem a perda que a Literatura Brasileira por um triz não sofreu!)

Outra armadilha de hotel, onde muita gente já se deu mal, é a tal da água aquecida. Parece que existe um “boiler” central no porão, que ferve a água e a distribui pelos encanamentos na direção dos quartos. (Lembram-se do “boiler” de que Jack Torrance tinha que cuidar, em “O Iluminado” de Stephen King?) A gente liga a água fria, e depois vai temperando com a água quente. Já vi notícias de jornal sobre gente que se atrapalhou (senhoras idosas, a maioria delas), ligou somente a torneira de água quente e postou-se embaixo. Amigos, aquilo desce fervendo. Altamente desaconselhável.

Pior é quando a gente esquece de trancar a porta por dentro ou colocar o “Não Perturbe”. De manhã cedo a arrumadeira mete a mão na maçaneta e emburaca quarto adentro, empunhando balde e esfregão. Vai ver que foi isso que ocorreu com Dominique Strauss-Kahn, aquele garanhão de terceira idade do FMI, que abrecou uma camareira em Nova York. Até agora não sei se foi ela que caiu na armadilha dele ou ele que caiu na armadilha dela – pense numa dupla de raposas!

Hotel de serial killer (o Bates Motel de Psicose). Hotel de onde não se consegue sair (“Hotel California”). Hotel povoado de fantasmas residuais (o “Hotel Avenida” de Drummond). Hotel transtemporal onde os universos paralelos se entrelaçam (Ano Passado em Marienbad). Todo hotel é uma área de superposição de destinos humanos, um máximo de linhas-de-tempo individuais por metro quadrado.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

2716) Getúlio, Jânio, Tancredo (17.11.2011)





A política é um gigantesco mecanismo coletivo que repousa, com um peso às vezes injusto, em cima de indivíduos. 

É possível prever em linhas gerais o desenrolar e o desfecho de campanhas eleitorais, campanhas de oposição, movimentos de massa pacíficos (“Primavera Árabe”, etc.) ou armados. Nunca se pode saber, porém, como os indivíduos vão reagir àquilo, por mais que os conheçamos. 

Um indivíduo é um “x”, uma incógnita, uma variável escorregadia que já nos deu (e nos dará) muitos dribles.

Ano: 1954. Getúlio Vargas é o homem mais idolatrado e mais perseguido do país. Ninguém já teve tanto poder popular quanto ele, por tanto tempo. (Não comparem com D. Pedro II; era outro Brasil.) Perseguido pela oposição e pela imprensa, acusado de corrupção, de ordenar assassinatos, de mergulhar num “mar de lama”. 

Imaginava-se que Getúlio fosse capaz de prender, arrebentar, dar outro golpe de Estado, renunciar, vingar-se, pendurar as chuteiras... Fez o que ninguém imaginava: deu um tiro no peito e mudou a História.

Ano: 1961. Jânio Quadros era um político estabanado e veemente, com um discurso moralizante que agradou muito à classe média conservadora e cristã. No poder, fez avanços surpreendentes e teve uma porção de atitudes de Odorico Paraguaçu. Ninguém sabia o que ele faria no dia seguinte; ele próprio parecia não entender o que tinha feito na véspera. 

O Brasil apertou o cinto de segurança e preparou-se para quatro anos de turbulência. Com menos de oito meses de governo, Jânio fez o impensável: renunciou. Por quê? Não se sabe. Temos 735 teorias, o que equivale a não ter nenhuma.

Ano: 1985. Eleito presidente pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves foi um improvável ponto de convergência entre direita, centro, esquerda, conservadores, liberais, o escambau – todos concordaram em que naquele momento ele era a melhor pessoa para assumir o leme do barco. 

Uma euforia juvenil fervilhava nas ruas. Depois da derrota do “Diretas Já”, a eleição de Tancredo era uma saborosa vingança. Na véspera da posse, a TV anunciou que o futuro presidente não seria empossado: sofreria uma cirurgia de emergência no hospital de Base de Brasília. 

Quem esperava por essa? Ninguém. Nem mesmo José Sarney, que tomou posse no lugar do presidente eleito.

Isto é a política, isto é a História, isto é a vida. Podemos calcular a trajetória dos grandes movimentos sociais. Mas vemos os indivíduos com a incerteza do físico que tenta calcular a velocidade e a posição de uma partícula subatômica. 

Na História, o indivíduo não é importante por ser grandioso, genial ou heróico, e sim porque é nele que giram as dobradiças do Imprevisível.









2715) Uma doença nova (16.11.2011)



O mundo anda muito louco, só está faltando sair num jornal da Austrália que Philip Buckley, um fazendeiro lá do “outback”, adquiriu uma estranha doença mental. Ele pronuncia duas vezes seguidas cada frase completa que diz, e parece não ter consciência disto. Por mais que os médicos comentem e façam perguntas a respeito ele parece não entender o que estão lhe perguntando e muda de assunto, dizendo algo como “ Pois é, pois é, ando muito cansado, ando muito cansado, aquele chá me dá sono, aquele chá me dá sono, boa noite, boa noite”.

Ou então o vigilante noturno de uma estação de trem na Sérvia, Piotr Danilovic. Ele sofre de um desequilíbrio aleatório no eixo visual. Durante uma conversa normal ele de repente começa a girar o torso como se o interlocutor estivesse caminhando à sua volta e ele quisesse ficar sempre de frente; e ao mesmo tempo seu corpo da cintura para baixo fica imóvel, o que faz o corpo parecer um parafuso. A maioria das pessoas dá a volta para poder falar com ele de frente, o que o faz girar de novo. Às vezes chega a ficar assim por meia hora, e conversando normalmente, fumando um cigarro, descontraidamente, como se nada excepcional estivesse acontecendo.

Suponhamos, também, a existência de Rosa d’Amico, uma dona de casa numa vila da Itália atingida por uma inundação. A enxurrada arrastou todos os móveis e pertences que havia na sua casa, entrando pela porta da frente e saindo pela dos fundos. Depois que a água baixou, contudo, ela voltou para casa e continuou movimentando-se normalmente, como se cozinhasse, arrumasse, dormisse, etc., mesmo com a casa sem móveis e toda enlameada. Move as mãos como se estivesse manipulando os objetos costumeiros. Os vizinhos a retiram, e ela dá um jeito de voltar, protestando.

Aqui no Brasil não poderia deixar de ser o caso de um adolescente de boa família, de Copacabana, que tem o hábito de entrar por uma porta qualquer se vir que está aberta. Entra nos apartamentos do seu prédio, em lojas, em residências. Se entra numa residência senta na sala, puxa uma revista da mochila e fica lendo. Quando as pessoas o enxotam, ele pede desculpa, sai, e entra na próxima porta aberta que encontra. Assim como os outros, não fala a respeito com os médicos; no máximo diz que não pretendia incomodar ninguém, estava apenas querendo sentar um pouco, ou fugir da chuva, etc. Quando os pais lhe perguntam de onde veio essa mania esquisita, ele responde apenas: “Eu não me acho mais esquisito do que a maioria das pessoas. Eu sou normal. Todo mundo é normal. Todo mundo é esquisito. Estou aqui na casa de vocês há quinze anos e vocês ainda não chamaram a polícia”.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

2714) A verdade de Deivid (15.11.2011)




O Flamengo tem um atacante chamado Deivid que é um mistério maior do que a Esfinge. Em primeiro lugar, não é um mau jogador; já o vi jogando muito bem pelo Santos e outros clubes. Tem técnica, é esforçado. Mas quando desembarcou no Flamengo protagonizou a maior série de gols-feitos-perdidos-pelo-mesmo-jogador já vista em nosso futebol. Tornou-se candidato permanente àquela graçola do “Globo Esporte”, o “Inacreditável Futebol Clube”. (Está se redimindo, aliás – já é o 2o. artilheiro do Brasileirão.)

Mas não é dos gols de Deivid que quero falar, e sim de suas entrevistas. Dias atrás, o Flamengo teve que disputar uma partida no Chile precisando vencer de 5x0 para se classificar. Perguntaram a Deivid se ele viajaria de boa vontade, e ele disse: “Claro, pelo menos para ir no free-shopping”. A imprensa pegou esse mote e não falou noutra coisa durante dias (se isso era “atitude de profissional”, etc.). Não passou muito tempo, perguntaram a Deivid numa coletiva quem iria ser o campeão brasileiro, e ele disse: “Acho que é o Corinthians”. Pronto! Outro quelelêi. Agora leio no jornal que ele puxou a cadeira para dar mais uma coletiva e foi logo dizendo aos jornalistas: “Querem que eu fale a verdade ou que dê uma resposta-padrão?”.

Convenhamos, uma interpelação desse tipo não é comum num jogador de futebol, e só pela coragem e sinceridade de fazê-la perdôo a Deivid os últimos vinte gols feitos que ele perdeu, inclusive aquele contra o Santos. Existe uma sutileza insuspeitada nessa pergunta. Porque as respostas padrão existem para não responder nada (“Estamos bem preparados, é levantar a cabeça, vamos em busca do nosso objetivo, etc.”); e as respostas sinceras, mais capazes de surpreender e de causar assunto, são as que os jornalistas mais gostam. O engraçado, porém, é que o jogador em geral é elogiado quando dá respostas-padrão e criticado quando diz o que pensa.

Na política do futebol, tanto quanto na política da literatura ou na política da administração pública, nem sempre se deve dizer o que se pensa. É um jogo, e não devemos revelar ao adversário que cartas temos na mão, ou que movimentos pretendemos fazer daqui a pouco. Qualquer ABC de diplomacia desaconselharia Deivid a dar aquelas duas respostas. A diplomacia é a hipocrisia do Bem, aquela que prefere uma grande mentira a um pequeno constrangimento. Deivid falou na entrevista aquilo que os jogadores conversam entre si, quando não há jornalistas por perto. Os jornalistas deveriam agradecer-lhe por esse “flash”, essa revelação do que é o mundo quando não precisamos contar mentiras politicamente corretas para ninguém.

domingo, 13 de novembro de 2011

2713) Riscando livros (13.11.2011)




(Tom Philips, A Humument, pág. 312)

Diz-se que riscar um livro é uma mistura de falta de educação e desprezo. Não acho. Um livro é um mero suporte de um texto. 

Algumas pessoas o têm como uma distração descartável: o sujeito lê, põe o livro de volta na estante e, daí a alguns anos, manda vender no sebo. 

Para outros, porém, o livro é um objeto de trabalho. Ele não pega o livro para uma leitura casual e sem compromisso, e sim para um enfrentamento intelectual. Pega no livro (inclusive um romance, uma obra literária qualquer) para estudar. Nesses casos, meu conselho é que meta a caneta pra cima, se achar que com isso estuda melhor. 

A caneta serve, como diz Fausto Fawcett, como um contador Geiger que vai assinalando a radioatividade literária dos melhores trechos.

Há pessoas que têm memória visual, e recordam melhor um livro quando visualizam trechos sublinhados, parágrafos destacados com colchetes, anotações feitas nas margens. Minha memória é assim; quando penso naqueles livros que consulto com frequência, é a imagem da página que me vem à memória, com todos os riscos e todas as notas que fiz com meu próprio punho. Se lembro de uma frase que me é muito familiar, sei até se está a página da esquerda ou na da direita; lembro se fica no alto ou na parte baixa da página.

Se você não lembra as coisas assim, não precisa riscar o livro, mas, se riscá-lo desse modo o ajuda a marcar melhor as coisas na memória, meu conselho é que o faça. 

Quando releio um livro, releio primeiro as partes sublinhadas, porque sei que ali estão os trechos que nas leituras anteriores achei mais importantes. Não que eu concorde, necessariamente, com o que está dito; mas porque aquilo concentra melhor as idéias do autor, sejam elas o que forem. 

Alguns leitores desenvolvem códigos próprios. Diz-se que Guimarães Rosa criou o código “m%” (“meu, cem por cento”) para indicar trechos com os quais se identificava especialmente.

Costumo fazer conexões entre trechos do livro, quando vejo a mesma idéia repetida em pontos diferentes. Se vejo na pág. 150 algo que tem tudo a ver com um trecho importante da pág. 82, coloco: “ver pág. 82” ao lado, e voltando à primeira coloco “ver pág. 150”, incluindo aí quantas referências houver. Daqui a 20 anos, quando precisar consultar o livro, não preciso ficar procurando aqueles trechos durante uma tarde inteira. 

Também aconselho criar um índice remissivo no final, registrando os assuntos importantes e as páginas em que aparecem. Muitos livros trazem esses índices, mas nem todos registram os assuntos que interessam à gente. Rabisco um livro para poupar tempo a um leitor de daqui a dez anos, que por coincidência serei eu mesmo.






sábado, 12 de novembro de 2011

2712) Pior do que o mal (12.11.2011)




Na cozinha de um restaurante, um sujeito não conserta direito a mangueira de um bujão de gás, que dias depois explode, matando algumas pessoas. 

Na estrada, um motorista se distrai tentando trocar o CD que estava ouvindo, bate de frente com outro carro, e morrem duas famílias. 

Num campo de batalha, uma ordem pelo rádio é mal compreendida e um batalhão se desloca para leste ao invés de oeste, sendo dizimado pela artilharia inimiga. 

Dois homens fazem uma piada de mau gosto na porta de um bar; um transeunte pensa que estão rindo dele e inicia uma briga que, muitos tiros depois, deixa alguns mortos.

Goethe afirmou certa vez que os mal-entendidos e as negligências causam mais danos ao mundo do que a maldade humana. A gente tem uma tendência a ver o Mal como um jorro íntegro e maciço de ruindade, algo que existe apenas para ofender, matar, destruir, corromper, vilificar. 

O Mal é uma força que tem a intenção, o orgulho e a vaidade de ser má. Faz a maldade com a dedicação circunspecta de quem cumpre uma missão inadiável, com a euforia de quem está fazendo o que mais gosta, com a brutalidade de quem só tem uma ação que justifique sua existência e precisa cumpri-la integralmente o mais depressa possível.

Este será o Mal grandioso, o Mal montanha, o Mal cordilheira. Mas pelo que se vê existe uma forma mais minúscula e mais insidiosa, uma espécie de varejo do Mal, em que nada é grandioso, nem mesmo as intenções, mas dá passagem ao Mal de qualquer forma (o Mal compreendido aqui como a fonte da infelicidade e da destruição humana). 

Há um poema de Brecht que diz: “Escapei dos tigres, alimentei os percevejos”. Esse Mal-percevejo habita nosso cotidiano. Mesmo quando escapamos aos tanques de guerra, aos genocídios étnicos, aos serial killers, existe uma maldadezinha mixuruca e tacanha destinada a empobrecer nossa vida, roê-la pelas beiradas, como uma cárie capaz de deteriorar tudo em pequena escala.

Pior, muitas vezes, do que o Mal grandioso, é o Mal insetóide, minúsculo, fervilhante, que se exprime pelo mal-entendido, pela má vontade, pela coisa mal feita; pelo erro de cálculo, pela imprevidência, pelo descuido, pelo esquecimento relapso, pela desatenção, pela omissão, pelo vacilo, pela bobeira. 

Razão tinham os primitivos que acreditavam na existência de um Demônio Chefe mas também na existência de mil demoniozinhos menores, que quebram a telha, deixam o gás aberto, furam o pneu, desencapam o fio, travam o fecho, e produzem com certo esforço na mente humana aquele “branco” de dois ou três segundos de duração que é tudo de que o Mal precisa para fazer explodir sua catástrofe repentina.





sexta-feira, 11 de novembro de 2011

2711) As 7 maravilhas (11.11.2011)



(Ayers Rock)

Encerra-se hoje uma eleição, promovida pela Fundação New7Wonders (de promoção do turismo), para indicar as 7 Maravilhas da Natureza, por todo o mundo. Milhões de internautas estarão votando em 28 lugares candidatos a essa honra. Para chegar a eles, foram feitas 440 inscrições de 220 países, que depois foram filtrados até chegar a 77, entre os quais finalmente foram selecionados os 28. Como meu conhecimento geográfico é muito escasso, não conheço nem sequer de fotografia a maior parte dos candidatos. Mas votaria com prazer em sete lugares que, para mim, têm algo de especial.

Os dois primeiros são, é claro, os dois candidatos brasileiros: as Cataratas do Iguaçu e a Floresta Amazônica. Nunca fui ao Iguaçu, mas já sobrevoei um longo trecho da floresta amazônica no Pará, num daqueles Fokker para 6 pessoas. Aquela floresta é um acesso de megalomania da Natureza. Faz a gente se sentir, ao mesmo tempo, minúsculo em comparação com aquilo, e imenso por participar daquilo.

Eu votaria no Mar Morto, que é um dos lugares mais extraterrestres da Terra, um lago de sal, uma água onde não se afunda, abaixo do nível do mar. Parece inventado por um escritor de FC com depressão. Votaria no Grande Canyon, que ainda tenho esperança de conhecer um dia, e que deve ter proporcionado aos que o descobriram uma verdadeira “experiência numinosa” como dizia Jung.

Outro lugar que para mim merece ser eleito é o Vesúvio, talvez o vulcão mais famoso do mundo, herói de filmes e romances. Causou algumas das hecatombes mais notórias e foi responsável pela preservação intacta da cidade de Pompéia, cuja visão nos faz regredir no tempo e captar vidas humanas eternizadas em cinza. Votaria no Monte Kilimanjaro na África, que é famoso por ter virado personagem de livro de Hemingway. Com o aquecimento global as suas famosas neves estão derretendo; comparar as fotos de vinte anos atrás com as de hoje nos faz perceber o quando o mundo parece perto de acabar.

E finalmente eu votaria num dos monumentos naturais mais misteriosos do mundo: Uluru, ou Ayers Rock, aquela gigantesca plataforma rochosa no meio do deserto australiano, adorada pelos aborígenes como a morada dos deuses. Parece o lombo de um lagarto de pedra semi-soterrado, com 350 metros de comprimento, 8 quilômetros de circunferência.

Seriam estes os meus sete candidatos; e o mais curioso é perceber como conhecemos pouco o planeta. Se eu conhecesse todos, talvez escolhesse sete lugares completamente diferentes. O que é uma boa coisa. Pensamos tanto nas maravilhas que encontraremos em outros planetas, e o planeta mais estranho e mais belo é justamente este onde já estamos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

2710) Micro-história presente (10.11.2011)



A ciência da História passou por uma grande mudança no último meio século. Grosso modo, a História antigamente era centrada nos grandes fatos (guerras, descobrimentos, revoluções, etc.) e nos grandes personagens (reis, imperadores, generais, presidentes, etc.). 

A gente folheava a História Geral de Borges Hermida e tinha a impressão de que no mundo só tinham acontecido coisas importantes. 

Aí surgiu a micro-história, que foi uma tentativa de falar do povo comum, ao invés dos reis e princesas. Como viviam os mercadores, os camponeses, os pedreiros, os artesãos? A História começou a vasculhar de novo os documentos acumulados nos museus e a deduzir daqueles relatos como era a vida cotidiana de gente sem importância, ou seja, nós, que não somos nem ditadores nem líderes de exércitos. 

É como se de repente todos os historiadores tivessem lido aquele poema de Bertolt Brecht, “Perguntas de um Operário que Aprendeu a Ler”: “Depois de cada batalha um banquete, mas quem servia as mesas?”. A História tornou-se a micro-história, contando, como a poesia de Drummond, a vida “do sineiro, da viúva e do microscopista”. 

Amigos, os micro-historiadores que forem um dia contar o que era o Brasil do começo do século 21 não vão ter problema nenhum. Estamos vivendo o apogeu do detalhezinho, a hegemonia da banalidade, o endeusamento compulsório das tutaméias de cada um. Cada anônimo sabe de cor a pasta de dentes de cada famoso, e fica sonhando com a chance de alguém perguntar qual a pasta que ele próprio usa. 

Mal posso esperar o dia em que uma apresentadora de TV perguntará ao vivo a que horas eu acordo, a marca do meu tênis, minha cor preferida, que livro eu levaria para uma ilha deserta. Andy Warhol previu 15 minutos de fama para cada um, mas não viu que esses 15 serão esticados até virarem um estado de microvisibilidade permanente. 

O famoso é famoso até engraxando os sapatos ou tomando banho de chuveiro. O escritor não se sente realizado quando discute as idéias do seu livro, e sim quando alguém lhe pergunta se ele dorme de calção ou de pijama. Ele não se sente importante pelas coisas grandiosas que fez – porque qualquer idiota que faça uma coisa grandiosa é importante. Não, ele é importante porque come pão com goiabada, e sabe que basta revelar isso no Facebook para que uma horda de admiradores proclame o pão com goiabada como “o top do top”. 

Pobres micro-historiadores do futuro. Vão ter que copiar e decorar cada quark de informação que estamos preservando para eles. Overdose de infrassignificado. Que façam bom uso de cada estátua desenterrada deste Panteão das pulgas, deste Monte Rushmore dos ácaros.





quarta-feira, 9 de novembro de 2011

2709) A Tortura em Ostimburg (9.11.2011)



Por três vezes em minha vida visitei Ostimburg, aquele principado balcânico cujos vorazes desfiladeiros adornam cartões postais. Há quase um século aquela nação conhece uma paz ignorada pelas democracias do Ocidente, graças ao íntegro regime instaurado por Rabidovic I, que soube guiar seu povo com os cuidados de um pastor e a firmeza de um lobo. Na minha primeira visita a Ostimburg, aos 19 anos, foi-nos (a um grupo seleto de estudantes ocidentais) permitido conhecer os recentemente instalados Jardins do Perdão. Que não eram jardins, tecnicamente falando, mas aquilo que em outras circunstâncias teríamos denominado de calabouços subterrâneos, onde os inimigos do povo recebiam sua paga. Vimos, cela após cela, os complicados aparatos eletro-mecânicos; os foles-sanguessuga; as clarabóias-lupa; os poços-ampulheta, onde uma finíssima areia dava aos réus o tempo exato para uma autocrítica final. Nenhum condenado (disse-nos o guia) passava ali mais de três dias sem que a Natureza tomasse a iniciativa misericordiosa de perdoá-lo para sempre.

Voltei a Ostimburg aos 43 anos, como adido cultural de nosso país, e, nos intervalos da minha missão, matava as saudades de alguns ambientes que tinham me impressionado. (Os cafés são tão bons quanto os turcos, os bordéis superiores aos tailandeses.) Visitei os Jardins do Perdão, e vi que haviam evoluído. Agora, a intenção era impedir o desenlace. Como os dissidentes nunca passavam de algumas centenas, era possível preservar-lhes indefinidamente a vida, fazendo com que as máquinas omitissem com mestria todos os pontos vitais. Transfusões, comas induzidos, UTIs adaptadas, tudo conspirava para que aqueles réus estivessem recebendo há décadas os benefícios da arte da aprender na própria carne.

Agora, aqui estou pela terceira vez, aos 76, como convidado do jovem Rabidovic II, redigindo minhas memórias de diplomata. E os Jardins tornaram-se algo semelhante a um retiro ou spa. Não mais que trinta traidores da pátria sobrevivem, cada qual em sua cela. Celas amplas, dotadas de uma multiplicidade de aparelhos da mais avançada tecnologia. Prescindem de guardas e de carcereiros. Décadas de sofrimento contínuo os prepararam. Todo dia acordam, tomam um desjejum frugal, e eles mesmos se manietam e se plugam às engenhocas; eles mesmos manipulam os botões de controle; eles mesmos acionam os dínamos, as autoclaves, as vagarosas prensas, os tornos e parafusos, os velcros esfoladores, as espumas corrosivas. Há anos, nenhum guarda desce àquele subsolo que cheira a sangue e creolina, e onde os pecadores administram e refinam, dia após dia, seu pedido permanente de perdão.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

2708) "O Palhaço" (8.11.2011)



O circo, que tem idade para ser avô do Brasil, é tratado no Brasil como se fosse filho dele, como se tivesse nascido entre nós com a finalidade de nos definir e nos explicar. Curiosamente não são muitos os filmes de circo entre nós. Meus preferidos são O Profeta da Fome de Maurice Capovilla e Bye Bye Brasil de Cacá Diegues. Este filme de estréia de Selton Mello como diretor é simpático e terno do começo ao fim, e se tem algum defeito é uma certa indecisão narrativa que o recheia de tempos mortos, de expectativas que não resultam em nada, de cenas que poderiam ser comprimidas em alguns segundos mas levam um minuto na tela. Pode ser proposital, para ficar em sintonia com a melancolia do protagonista, um palhaço jururu que não sorri com nada; mas o filme, que é cheio de cores, vivacidade, tipos caricaturais e situações risíveis, parece estar o tempo inteiro estancando e precisando ligar de novo a ignição.

Selton e Paulo José são pai e filho, dois palhaços num circo mambembe, mas o rapaz tem uma angústia meio existencialista com tudo que vê; sonha com algo que não sabe bem o que é (e personifica isto na imagem permanente de um ventilador, que pelo menos serve para alguma coisa). É um road-movie, como convém a um filme de circo, fazendo um corte pelo interior daquele Brasilzão remoto onde o circo parece ter nascido, onde tudo é igualmente mambembe e vive muito-bem-obrigado, onde as figuras excêntricas do elenco parecem se refletir nos excêntricos da platéia.

Selton é um dos melhores atores de sua geração; aqui ele se cerca de colegas poucos conhecidos e alguns veteranos em participações especiais (além de Paulo José, aparecem Moacyr Franco, Tonico Pereira e Jorge Loredo, o histórico “Zé Bonitinho”). O filme tem encanto visual e humor, e só deixa de tê-los quando perde o passo narrativo. É algo muito frequente nos filmes de estreantes cuidadosos. Eles se preocupam demais com cada plano; depois, quando os planos são enfileirados um atrás do outro, percebemos que cada qual está ótimo mas sua sucessão não é fluida, porque o “timing” de cada um puxa o ritmo do filme para uma cadência diferente. Não é algo que se possa corrigir na montagem porque não dá mais para mexer nos tempos do diálogo e da ação.

Não importa; é um dos bons filmes brasileiros recentes, cheio de detalhes e de sacadas inteligentes, e mostrando uma compreensão e uma identificação instintivas com o espírito circense. Um espírito que toca de perto e fascina os atores, muito mais que diretores, roteiristas ou fotógrafos. Deve ser porque cada ator de teatro e de cinema tem algo de mágico, de domador de feras, de equilibrista e de palhaço.

domingo, 6 de novembro de 2011

2707) O ponto e o asterisco (6.11.2011)



Sugiro ao leitor que espere anoitecer (caso esteja lendo isto durante o dia) e saia ao ar livre. Se for uma noite limpa e sem nuvens, verá o céu estrelado. Este céu que há milhares de anos serve de inspiração aos artistas e de desafio aos cientistas... aquela lenga-lenga toda. Todos nós já vimos e admiramos um céu estrelado. Todos sabemos que quando estamos admirando as estrelas com uma moça bonita do lado, basta uma conversa bem encaixada para que as coisas se encaminhem a nosso favor. As estrelas são mágicas.

O que pergunto ao leitor é o seguinte: quando você vê uma estrela, que formato tem ela? Um ponto ou um asterisco? Lembre que a imagem tradicional da estrela, rabiscada a lápis ou gravada num monumento da antiguidade, é de uma espécie de asterisco, algo assim: “*”, uma porção de raios divergentes que se espalham em todas as direções a partir do centro. É assim que as estrelas vêm sendo reproduzidas graficamente desde que o mundo é mundo. Dessa imagem inicial surgiu a estrela do xerife, a estrela de cinco pontas (ou pentaclo) dos magos, a estrela de Davi (de seis pontas), etc.

Para mim isto sempre pareceu natural, porque até os dezenove anos eu olhava para o céu noturno e o via coberto de asteriscos faiscantes. O problema é que quando comecei a usar óculos essa imagem mudou. As estrelas viraram prosaicos pontinhos, de uma nitidez perturbadora, e sem um raio sequer! Vistas com as lentes que corrigiam minha miopia, ficaram mais nítidas, mas graficamente mais pobres. (De vez em quando, quando o céu está bonito, tiro os óculos para ficar míope de novo e curtir melhor aquela beleza).

Duas teorias. Primeira: os antigos eram míopes, e viam as estrelas não em forma de pontos, mas de asteriscos, e as reproduziam assim nas cavernas, nos monumentos, nas “estelas” de pedra esculpida. Uma boa questão oftalmológica: como eram as condições de visão dos homens da antiguidade? Segunda teoria: mesmo quando eles enxergavam as estrelas como pontinhos nítidos, porque tinham visão normal, aceitavam e reproduziam o formato de asterisco proposto pelos míopes. Por que? Porque a imagem do asterisco é graficamente mais rica (tem mais informação visual) do que a imagem de um ponto. Se você desenha um asterisco numa folha de papel e pergunta o que é, muita gente vai dizer que é uma estrela. Se desenha um ponto, poucas pessoas dirão o mesmo. Embora seja uma imagem mais fiel ao modo como um olho normal vê uma estrela, o ponto é uma imagem mais vaga, mais parecida com qualquer coisa, menos específica. Os míopes, somente os míopes, veem a estrela artística; os outros veem a estrela científica e nada mais.

2706) Trabalhar de graça (5.11.2011)




(FunkyPix2)

Existe em alguns artistas um pudor de cobrar pelo próprio trabalho. De certa forma eles se acham privilegiados por serem convidados a fazer algo que lhes dá prazer. Cobrar por aquilo é introduzir no processo um elemento de comércio, frieza, cálculo. Como se alguém dissesse: “Teu prazer é insuficiente, é sem substância, talvez seja falso. Precisas lastreá-lo com dinheiro para que ele não se desmanche no ar”. Ele se julga pago pela mera alegria de ser lido, de ser escutado, de produzir no rosto alheio aquela expressão de deslumbramento e respeito.

Há quem se envergonhe de cobrar porque o “trabalho” em questão não é trabalho nenhum, esforço nenhum. No seu modo de ver as coisas, o pagamento de um trabalho não é a aquisição do produto final, é um ressarcimento pelo esforço e pelo sofrimento de quem produz. E ele se acha “um aproveitador” se tiver de cobrar para tocar mais uma vez as músicas que já tocou milhares de vezes, ou colocar por escrito idéias que de certo modo já estão prontas e arrumadas em sua mente. Não há esforço algum envolvido, nada que justifique uma remuneração por um “trabalho”.

Outros não cobram por uma questão de altivez aristocrática. Até acham que mereceriam receber; até precisam da grana. Mas cobrar os empobrece aos seus próprios olhos: “Sou alguém que precisa de dinheiro”. Trabalhar de graça, por outro lado, os transforma em generosos doadores de si mesmos, em alguém que tem tanto que não se furta a distribuir. São como aquelas tribos que, não satisfeitas de oferecerem banquetes, sentem-na na obrigação de destruir comida, para provarem que não são uns mortos-de-fome.

Há os que não cobram por mera desinformação. Cresceram num meio onde a idéia do trabalho artístico gratuito foi vigorosamente implantada. A arte é sagrada, é pura, não se suja com dinheiro. Viraram artistas por uma vocação sincera, mas sempre à sombra de outra ocupação. Quando ouvem alguém dizer que cobra para dar uma palestra, ficam constrangidos e sem parâmetros. É como o sujeito estar azarando uma garota numa festa e ela dizer: “Quer ir pra cama comigo? É tanto.”

Alguns não cobram por esperteza e tática de sobrevivência, porque dando-se de graça tornam-se credores, e já sabem exatamente como cobrarão a contrapartida num momento futuro. Seu comércio não é o do dinheiro, é o da cortesia, mas é de uma contabilidade implacável. Uma dívida não saldada fará o devedor desprevenido pagar em dobro o que não imaginava estar devendo. Generosidade e gratidão são transformadas nas regras de um câmbio que lida com sentimentos em vez de cifras, mas cuja execução contábil é igualmente precisa e sem perdão.





2705) Os três Cristos (4.11.2011)



Segundo um artigo de Jenny Diski (http://bit.ly/qmGqcA), uma experiência psicológica muito interessante foi a que o Dr. Milton Rokeach realizou em 1959 com três pacientes psicóticos do Ypsilanti State Hospital (EUA). O tema da pesquisa eram os sistemas de crenças das pessoas: “como as pessoas desenvolvem e mantêm (ou modificam) suas crenças de acordo com suas necessidades e com as exigências do mundo social em que vivem”.

Rokeach afirma que existem versões conflitantes sobre o mundo e que as pessoas recorrem a algum tipo de autoridade (religiosa, científica, política, etc.) para se posicionar. Uma das crenças básicas do ser humano é a própria identidade (eu sou eu); e essa identidade é única e personalizada (eu não posso ser você; você não pode ser eu). Ele fez uma experiência em sua própria casa, trocando os nomes de suas duas filhas pequenas; no começo era uma brincadeira, mas quando ele continuou insistindo, com ar sério, as duas foram ficando nervosas e começaram a chorar.

Rokeach reuniu três internos do hospital que afirmavam ser Jesus Cristo. A experiência resultou no livro Os Três Cristos de Ypsilanti (1964). Eles eram Clyde (70 anos), Joseph (58) e Leon (40). Os dois primeiros estavam internados há décadas, o outro há cinco anos. O médico pôs os três para conviverem juntos e executarem juntos pequenas tarefas, sob vigilância constante. (Diz Jenny Diski que era algo parecido ao “Big Brother”, com a diferença de que no BB a alucinação das pessoas é de que são famosas ou interessantes.)

Os três “Cristos” desenvolveram uma convivência social em que cada um mantinha sua posição mas procurava não antagonizar os outros dois. Leon dizia: “Eu sei quem eu sou”, e Joseph respondia: “Eu não quero tirar isto de você. Pode ficar. Eu não o quero”. Joseph explicava ao médico que os outros dois eram doidos, já que estavam todos num hospital psiquiátrico. Clyde assumia um tom imperial, e era de opinião que os outros dois eram seres inferiores, e além do mais estavam mortos. Dizia ao médico: “Eu sou ele. Está vendo? Entenda, agora!”. E Leon afirmou a certa altura: “Vocês estão usando um paciente contra o outro, tentando fazer lavagem cerebral e também manipular a situação através de vudu eletrônico”.

Me veio a idéia de pegar três indivíduos sadios, que não se conhecessem entre si: um cristão, um judeu e um muçulmano. E repetir a experiência, perguntando-lhes: “Qual de vocês acredita no verdadeiro Deus?”. Teríamos então dois conjuntos de crenças conflitantes. E talvez descobríssemos semelhanças inesperadas entre eles, porque estariam fazendo afirmações igualmente impossíveis de provar.

2704) O 1º. Poema escrito (3.11.2011)




Qual terá sido o primeiro poema a ser composto por escrito? 

É um problema interessante. Talvez não da história da literatura, porque provavelmente era algum poema bem ruinzinho pelos critérios estéticos do século 21. Mas é uma questão interessante (e, certamente, insolúvel) da história do pensamento humano. 

Pensem bem. Antes da invenção da escrita, as culturas se comunicavam unicamente em voz alta, e todas as informações eram guardadas na memória coletiva. 

A quantidade de informação e a complexidade das coisas a serem decoradas (hinos religiosos, a história dos reis e dos grandes feitos, as transações comerciais, as leis, as relações civis, as lendas e mitos, etc.) fez as cabeças mais inteligentes se dedicarem à invenção de um sistema de sinais que preservasse as palavras faladas através de marcas numa superfície.

Durante os séculos seguintes (digamos que a escrita começou na antiga Suméria, 4 mil anos antes de Cristo) toda a memória oral começou a ser transcrita para os papiros, tabletes de argila, etc. 

Novos textos continuaram a ser inventados, no processo tradicional: os poetas ou contadores de histórias imaginavam o que queriam dizer, e diante de outras pessoas recitavam ou narravam aquilo em voz alta. 

Todo poema era composto de sons; toda história só existia em forma de palavras ditas em voz alta. E depois alguém os transcrevia em sinais escritos. O escrito surgiu como uma forma de preservar e disseminar o falado.

Mas houve um dia em que um poeta pegou uma tábua de argila limpa, virgem, empunhou sua coleção de estiletes de pontas cuneiformes, sentou-se à sombra de uma árvore e começou a pensar (digamos) em um novo hino em homenagem à deusa Ishtar. 

As palavras foram surgindo em sua mente, algo como “Oh, grande deusa, tu que em forma de lua te ergues brilhando sobre as águas do Eufrates...” 

Algo assim. A questão é que ele estava sozinho, não havia nenhum dos seus colegas ou discípulos para quem ele pudesse dizer aquelas palavras e avaliar a reação. Mas ele achou que aquele começo não estava nada mau! E calado, sem nem sequer murmurar os versos, ele pegou os estiletes e começou a gravar, em sinaizinhos: “Oh, grande deusa...”

Parece uma besteira, né? Mas foi um instante crucial na história do mundo, tanto quanto a banheira de Arquimedes ou a maçã de Newton. Foi a primeira vez em que a palavra poética pensada tornou-se palavra poética escrita, sem passar pela palavra falada. 

Abriu-se uma portinholazinha minúscula, mas por ela passaram, milênios depois, desde os caligramas de Apolinnaire até os poemas concretos dos irmãos Campos, desde Cummings até o Poema Processo.