Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 30 de junho de 2010
2211) Uma chuva pesada vai cair (9.4.2010)
Quando “o maior temporal dos últimos 40 anos” caiu sobre o Rio de Janeiro, eu estava longe, mas foi como se estivesse lá. Estava lendo os últimos capítulos do livro Forty Signs of Rain de Kim Stanley Robinson (2004), um thriller político de ficção científica, parte de uma trilogia prosseguida com Fifty Degrees Below (2005) e Sixty Days and Counting (2007). A obra de Robinson descreve a atividade de um grupo de cientistas e políticos tentando atenuar os efeitos da presente catástrofe ambiental, que já começou, mas que as pessoas só se lembram que está em curso quando acontece algo nas suas cidades.
Os últimos capítulos de Forty Signs of Rain mostram Washington D.C. sendo devastada por um toró com origem igual à do que atingiu o Rio de Janeiro esta semana, só que muito mais forte. Ruas e avenidas submersas, prédios públicos alagados até o terceiro andar, a capital do país mais rico do mundo paralisada, e até os animais do Zoológico sendo soltos para não serem arrastados pelas gigantesca enxurrada que varre o parque. Até as reações dos poderes públicos são parecidas. No Rio, pediram ao prefeito Eduardo Paes para dar uma nota de 0 a 10 à infraestrutura da cidade, e ele respondeu: “Menos que zero”. No livro de Robinson, o presidente dos EUA (uma mistura de Bush e Reagan) bate em retirada para Camp David, declara os Estados de Virginia, Maryland e Delaware uma “área de calamidade pública”, e diz que o Distrito de Columbia (onde fica a capital) está “ainda pior do que isto”.
Catástrofes são sempre anunciadas com antecedência; acho que a única catástrofe que acontece de repente é a queda de um raio, e mesmo esta pode ser estatisticamente prevista. Catástrofes climáticas fazem parte da vida na Terra, mas as que estão ocorrendo agora são resultado da ação do homem sobre a Terra. Ninguém age por maldade, ninguém quer destruir o planeta. As pessoas querem apenas viver suas vidas, e trabalhar em paz, mesmo que isto implique em despejar dejetos nos rios, queimar combustíveis que destroem a camada de ozônio, produzir toneladas de lixo desnecessário, devastar regiões inteiras com monoculturas predatórias, consumir sem necessidade e desperdiçar sem remorso. Diz Robinson em seu livro: “É mais fácil destruir o mundo do que mudar o capitalismo um ‘tantinho’ assim”.
Robinson cria, no primeiro volume de sua trilogia (vou encarar agora as 520 páginas do segundo) uma galeria de cientistas com seus problemas pessoais e ideológicos. Um deles trabalha em casa cuidando dos filhos pequenos, e há uma cena hilária em que ele tem de discutir ambientalismo com o Presidente dos EUA carregando o guri de um ano e meio numa mochila às costas. Vidas pessoais e o destino do planeta se entrelaçam de uma maneira que só a literatura de visão panorâmica (da qual a FC é um ramo) pode nos revelar. A literatura cujo personagem principal é a Humanidade, a única que nos permite ver a totalidade do momento presente.
2210) O português do povo (8.4.2010)
Que língua interessante é o português. Interessante e complicada – para quem vem de fora.
Lembro de uma história ocorrida no antigo Campus II da UFPB, hoje UFCG, em Bodocongó. Um professor holandês, chegado a Campina há menos de um ano, teve um problema familiar grave e precisava licenciar-se com urgência para ir à Holanda. Foi falar com o Reitor, explicou os motivos e pediu uma licença de três semanas. “Pois não,” disse o Reitor, comovido com o drama dele. O homem ficou aflito: “Mas é um assunto muito sério! Eu preciso mesmo ir!” “O Reitor repetiu: “Pois não”. O homem quase chora: “Mas por que o senhor me nega esse direito?!...”
Claro que ele viajou, só não sei é se resolveu o problema.
Uma das melhores coisas do português é a fervilhância de novidades linguísticas que encontramos na rua, pelo simples fato de que as pessoas, quando precisam dizer alguma coisa e não encontram a palavra certa (ou melhor, a palavra que nos ocorreria se fôssemos nós a querer dizer aquilo), inventam na hora uma maneira própria de dizer.
Recentemente um camelô, na Rua da Uruguaiana, vendia DVDs piratas do filme Avatar, anunciando aos quatro ventos: “Avatar em trimensão!” Ele se referia, claro, ao fato de que o filme era em 3-D, ou em terceira dimensão. O camelô (ou a pessoa que passou essa palavra para ele) percebeu intuitivamente que existe um precedente linguístico para transformar uma palavra com o prefixo “di” (significando dois) em outra com o prefixo “tri” (significando três), como em “difásico / trifásico”, por exemplo.
A criação desses neologismos é um processo de evolução natural da língua, e acho engraçado como o tempo todo aparece gente dizendo que essas pessoas estão “falando errado”. Pergunto a razão e me respondem: “Porque essa palavra não existe, não tem no dicionário, eles falam assim porque são ignorantes”.
Existe nas pessoas medianamente cultas a fantasia de que o Dicionário e a Gramática são uma espécie de Código Penal do idioma, dizendo o que é permitido e o que é proibido fazer. Não são. Dicionários e gramáticas são elaborados “a posteriori”: o povo (incluindo desde os camelôs até João Guimarães Rosa) inventa as palavras e as maneiras de falar, e quando algumas dessas maneiras se cristalizam e se impõem, os dicionaristas e gramáticos, diligentemente, registram, carimbam e aprovam. Nada mais.
Cabe aos dicionaristas e gramáticos um papel parecido com o de um maestro numa orquestra – evitar as dissonâncias, estimular a harmonia, preservar a fidelidade à fonte, por exemplo.
A língua portuguesa tem seus próprios mecanismos de criação de palavras, de articulação de frases, de conjugação de verbos, de uso de conjunções e preposições. Esses mecanismos são dela e lhe dão personalidade, sabor, fisionomia própria. Quando um camelô, intuitivamente, percebe esses princípios e os aplica, mostra que conhece a língua melhor do que seus críticos.
2209) A árvore, o filho e o livro (7.4.2010)
“Todo homem”, dizem, “deveria realizar três coisas antes de morrer: plantar uma árvore, fazer um filho e escrever um livro”. Parece que o intuito dessa frase é louvar o sentido de permanência e perpetuidade após a morte. Depois de fazer essas três coisas, o sujeito pode morrer em paz, porque deixa três símbolos concretos de sua passagem pela terra. A árvore, o filho e o livro lhe sobrevivem e prolongam sua existência por mais algumas décadas (no caso do filho) e no caso da árvore e do livro, quem sabe? Até por alguns séculos.
Outra interpretação diz que isso nada tem a ver com prolongar a vida. Tem a ver com a educação do sujeito enquanto está vivo. A árvore, por exemplo. O ato de plantar uma árvore muda se dissermos: “Plantar uma árvore e responsabilizar-se pelo seu crescimento”. Árvore demora muito para crescer, dependendo da espécie. Algumas levam séculos. Plantar uma árvore não é apenas, como fazem os políticos no Dia do Meio Ambiente, cavar um buraco e jogar uma semente. É continuar vida afora ali do lado, esperando a folhinha verde apontar, esperando o caulezinho, esperando que a árvore vá ganhando corpo, elevando-se, ficando mais firme, mais rija, capaz de aguentar o vento, capaz depois de aguentar o esbarrão de um bêbo. Capaz de crescer e por fim dar sombra, dar frutos, fornecer o galho para alguém armar um balanço... Não é só plantar a árvore. É esperar que ela fique forte, cuidando dela.
Mesma coisa com os filhos, não é mesmo? Fazer um filho qualquer sujeito distraído faz, em muitos casos sem nem saber que está fazendo. Só se toca disso um mês depois, quando a garota liga aperreada para ele: “Não veio ainda...” Fazer um filho é fazê-lo ao longo da primeira infância, da segunda, da adolescência, da juventude, da vida adulta. E isso não acaba nunca, porque a verdade dos fatos é que mesmo quando a gente está senil e os filhos estão de barbas grisalhas, já pais de uma numerosa família, continuamos tendo motivos para puxar-lhes as orelhas, dar-lhes um carão de vez em quando, obrigá-los a fazer correções de rumo... Ou mesmo, invertendo o processo, responder às dúvidas que nos trazem, dar palpites nos problemas que atravessam. Não, nunca se pode dizer, como na música de Gordurinha: “os meninos ‘tão criados, satisfiz o meu desejo...” Nunca estão. Por definição, nunca poderão estar.
E o livro, esse então nem se fala. Muito escritor pensa que se livrou do livro no instante em que escreveu “FIM”. Ledo engano, ilusão trêda. Aí é que começam os trabalhos, os labores. E não me refiro apenas à publicação. Quando se diz que todo homem deveria escrever um livro antes de morrer, é para que ele saiba que vai ter que responder por esse livro a vida toda, aguentar as críticas, aguentar os elogios (às vezes são mais problemáticos e comprometedores do que as críticas). Ajudar o livro a crescer, e crescer ele próprio em volta desse livro, sabendo que agora é impossível mudá-lo.
2208) O direito de imagem (6.4.2010)
De vez em quando sai uma história desse tipo na imprensa. Desta vez, pelo que vi nos jornais, foram os herdeiros de Manuel Bandeira que fizeram retirar do mercado um livro de fotos do fotógrafo José Medeiros, só porque em determinada página do livro aparecia uma foto de Bandeira ao lado de outras pessoas. O absurdo de uma tal situação me lembra o que ocorreu anos atrás quando o cineasta Rosemberg Cariry, no Ceará, fez um filme sobre os cangaceiros Corisco e Dadá; os herdeiros de Dadá exigiram uma indenização pelo uso da imagem, e a indenização era maior que o próprio orçamento do filme.
Parece uma lei da Natureza, esse negócio de ter que ir de um extremo ao outro, de sair de uma situação de total permissividade para uma de total repressão, de um estado de coisas em que tudo é de graça para outro em que tudo é pago. Abusos do direito de imagem sempre foram cometidos. Eu sou um jogador de futevôlei, fui fotografado jogando na praia, alguém usou a foto sem autorização na capa de um guia turístico. Eu sou uma modelo, desfilei usando uma roupa, e a cena do desfile é utilizada num comercial. Eu sou um sujeito famoso, tomei uma cerveja com amigos, fui fotografado, e minha foto apareceu numa propaganda da cerveja. Tudo isto são usos indevidos de imagem ou de um trabalho, e é claro que precisa haver uma regulamentação para disciplinar esse uso. De preferência, remunerando o dono da imagem; no mínimo, pedindo sua autorização.
O que acontece é que processos bem sucedidos contra o uso não-autorizado da imagem de alguém acabam criando uma situação esquisita, em que essas ações judiciais se transformam numa indústria lucrativa. Detentores dos direitos sobre uma imagem deflagram processo atrás de processo e fazem disso um meio de vida. Num texto divulgado pela Internet a respeito do episódio de Manuel Bandeira, o poeta Alexei Bueno afirma: “Há um princípio jurídico de grande importância, o da razoabilidade, que está sendo atropelado por todas essas aberrações. E mais: um sinal óbvio de civilização são os limites à propriedade, em nome do bem comum, inclusive o bem cultural. Maior exemplo não existe do que o tombamento. Se Ouro Preto não tivesse sido declarada Monumento Nacional nos anos de 1930, todas as suas casas seriam hoje cubos de concreto, com janelas basculantes de vidro blindex! Se há limites de propriedade para os bens físicos, por que não os haveria para bens imateriais, como as obras literárias, às vezes de muito maior importância?”
Por conta dessa ânsia de faturamento com imagem (e por medo dos processos resultantes) trabalhar com TV virou um pesadelo. Se você filma uma cena em que aparecem 30 pessoas, tem que pegar 30 autorizações preenchidas e assinadas, para evitar um processo. Se o “princípio da razoabilidade” existe, precisa ser posto em prática para que se distinga com clareza o que é boa ou má fé, pois há muitas maneiras de se faturar injustamente com a imagem alheia.
terça-feira, 29 de junho de 2010
2207) E não ficou nenhum (4.4.2010)
Éramos turistas de vários países, numa excursão pela Europa. Chegamos pela manhã, de trem, numa capital qualquer, todos cansados da viagem. Uns esperavam a bagagem, outros já estavam nos guichês de câmbio adquirindo moeda local, outros consultavam mapas.
Era uma estação enorme, uma estrutura de ferro com aparência século 19. Eu comentava com o Guia que algumas estações européias eram tão bem providas de serviços, comércio, etc., que bem poderíamos conhecer apenas elas, sem o trabalho de circular pelas cidades propriamente ditas.
De súbito, alguém do grupo soltou um grito e caiu no chão. Correram várias pessoas a acudi-lo, formou-se o tumulto. Guardas se aproximaram, depois veio um médico, afobado, puxando um estetoscópio de dentro do casaco.
Logo fomos avisados de que nosso companheiro estava morto, um ataque fulminante. Isso nos causou inquietação e transtorno. Somente à tarde conseguimos fazer check-in no hotel.
Naquela noite, ao sairmos do restaurante, outra pessoa tombou no chão. A morte foi constatada sem demora, e uma perturbação crescente se apossou do grupo. Dormi mal, e creio que todos também.
No dia seguinte tentamos cumprir o roteiro pré-estabelecido de passeios, mas ao cruzarmos um parque uma senhora tombou nos braços do marido. Desta vez os policiais encontraram algo: um pequeno dardo, do tamanho de meio alfinete, cravado em suas costas. “Veneno”, disse um deles.
À noite nos reunimos no hotel para tentar entender o que acontecia. O Guia, um homem baixinho e metódico, estava acompanhando as investigações, e admitiu que as três mortes tinham sido assassinatos, cometidos pelo mesmo método. Um membro do nosso grupo estava eliminando os demais, cravando-lhes aqueles dardos, ou arremessando-os à distância.
Houve uma discussão acalorada em várias línguas. Afinal, não nos conhecíamos, nada tínhamos a lucrar com a morte daqueles companheiros casuais... À saída, parei no umbral da porta, e nesse instante senti algo passar voando perto do meu rosto. Virando-me, vi o Guia empunhando uma piteira diante da boca. Meus olhos cruzaram com os seus, e ele inseriu com calma um cigarro na piteira e começou a fumá-lo. Claro que, ao me virar, percebi o pequeno dardo cravado na madeira da porta.
Convoquei ao meu quarto dois companheiros com quem me entendia melhor, para tomar alguma decisão. Quando conversávamos, um alarido brotou no corredor. Corremos para lá. Os outros membros do grupo, inclusive o Guia, estavam dominando uma mulher loura, alta, que era uma das que mais reclamavam. Eles a tinham flagrado soprando um dardo contra outra passageira, já morta no chão.
Uma corda foi pendurada do teto; um laço foi armado às pressas. Quando ajudei a colocar seu pescoço no laço, ela conseguiu desvencilhar um braço e cravou no meu pescoço um dos seus dardos envenenados. Sabendo que meu destino estava selado, enfiei a mão no bolso e cravei-lhe no rosto um dos meus. Depois não vi mais nada.
2206) A laranja chupada (3.4.2010)
Numa entrevista recente ao “Globo”, o treinador do Santos, Dorival Júnior comentou o estado atual do nosso futebol, e fez uma comparação interessante. Disse ele que um dos problemas no atual futebol brasileiro é a ênfase excessiva dadas aos aspectos físicos e táticos do jogo, e pouca importância dada aos fundamentos técnicos. Ele lembrou o caso do vôlei brasileiro, que se tornou o melhor do mundo através de técnicos como Bernardinho e Zé Roberto Guimarães, que criaram uma filosofia de treinamento dos fundamentos básicos do jogo: recepção, passe, cortada, saque, finta, etc. Nossos times de vôlei são os melhores do mundo (ou estão consistentemente entre os melhores do mundo há 20 anos) devido a esse foco nos fundamentos. Sem fundamentos, não adianta tática, nem preparo físico, nada, nada.
O que são os fundamentos do futebol? São o drible, o passe, o chute a gol, a cabeçada a gol (os principais) e mais a matada de bola, a condução de bola, etc. Não sei como os técnicos dividem teoricamente essas coisas, mas eu divido assim: no futebol, técnica (fundamento) é tudo que envolve um jogador e a bola; tática é tudo que envolve dois ou mais jogadores e a bola. No capítulo da tática, portanto, estão aquelas coisas como a tabelinha, a triangulação, aquilo que Cláudio Coutinho chamava de “overlapping” (quando na lateral um jogador domina a bola, é ultrapassado velozmente por um companheiro e toca a bola para que este a alcance lá na frente), etc.
Nossos jogadores eram (até o tricampeonato em 1970) os melhores do mundo em técnica. Ninguém passava, driblava ou chutava melhor do que a gente. Os europeus nos sobrepujavam, quando era o caso, no preparo físico ou na esperteza tática, principalmente na marcação. Nossos jogadores eram os mais técnicos (os mais talentosos nos fundamentos) porque se criavam jogando com laranja chupada, bola de meia, bola de plástico furada, coco seco, tampa de garrafa. A variedade de movimentos musculares e de reflexos gerada por essas atividades lhes dava muito mais recursos quando se deparavam com a simplicidade de uma bola profissional, algo próximo de uma Esfera Platônica.
Mas hoje... Meus amigos, assistir qualquer campeonato estadual, ou mesmo o Brasileiro, nos dá os mesmos calafrios de um gramático folheando um livro de poesia matuta. Os jogadores brasileiros atuais (me refiro aos dos grandes clubes, não aos do Naviraiense) levam em média cinco ou dez segundos para dominar a bola quando recebem um passe feito à distância. Isso quando o jogador que fez esse passe à distância consegue colocar a bola a menos de três metros do que vai recebê-la. Nossos chutes a gol são uma antologia de videocassetadas. Dribles? No futebol brasileiro de hoje você tira uma dúzia que sabe driblar; para os demais, driblar é rodear o zagueiro empurrando-o com o ombro. Já está na hora de jogar a garotada na rua, com uma laranja chupada, para ver se salvamos pelo menos a próxima geração.
2205) A estratégia da distração (2.4.2010)
Circula na Internet um documento atribuído ao linguista Noam Chomsky, um conhecido crítico das políticas dos EUA. Chomsky é uma espécie de Michael Moore do meio acadêmico, que investe como um tanque contra aquilo que a gente chama “o complexo industrial-financeiro-militar” do seu país. O documento que circula talvez seja apócrifo (não encontrei sinal dele em parte alguma na Net, em inglês), mas não importa. As coisas que diz ou são corretas ou são deflagradoras de um debate importante e necessário, pouco importa quem tenha sido seu autor original. O documento enumera “Dez Estratégias” usadas pelos governos atuais para impor suas políticas e manter a população sob controle, um controle ainda mais eficaz do que o das ditaduras, porque as pessoas não sabem que estão sendo controladas, e esse controle se dá de uma maneira aparentemente agradável para elas. É o que eu chamo a Ditadura do Chiclete, contraposta à Ditadura do Chicote. O primeiro item da lista diz:
“1) A estratégica da distração. O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto “Armas silenciosas para guerras tranqüilas”)”.
O século XX ensinou que a melhor maneira de evitar que a população tenha acesso a determinadas informações não é proibindo essas informações. Isso foi tentado por todos, desde Hitler e Stálin até nossa ditadura brasileira; e sempre existe uma minoria sólida, atuante e incansável que acaba dando um jeito de recuperar as informações proibidas e fazê-las circular. Muito melhor do que proibir é diluir. Em vez de proibir a obra perigosa de Fulano ou Sicrano, basta estimular a produção de obras de cem Beltranos (que dizem coisas parecidas, mas inócuas) e usá-las para fazer submergir as idéias indesejáveis.
O melhor lugar para esconder uma agulha não é num palheiro, é num agulheiro. Proibir a obra de alguém significa lançar sobre essa obra e esse autor os poderosos holofotes da atenção do Poder. Melhor aparentar desprezo por essa obra, e voltar os holofotes em outra direção. É possível até ceder a esses autores incômodos uma rádio, um canal de TV a cabo, com a garantia de que eles estarão diluídos no meio de 200 rádios e 200 canais dizendo coisas mais chamativas, mais sensacionais, menos problemáticas.
2204) O matemático e as baratas (1.4.2010)
Uma vizinha do cidadão afirmou à imprensa:
“Ele tem apenas uma mesa, um banquinho e uma cama com um lençol sujo que foi deixado ali pelos antigos donos – uns bêbados que venderam o apartamento para ele. Estamos tentando acabar com as baratas nesse quarteirão, mas elas se escondem na casa dele.”
O mundo da Alta Matemática é um pouco como o da Poesia Surrealista: abandonai todo o senso comum, ó vós que entrais. Perelman conseguiu resolver um problema chamado “a Conjetura de Poincaré”, por ter sido formulado pelo grande Henri Poincaré (1854-1912). Não discutirei aqui as sutilezas do problema, basta-me citar a descrição que está na Wikipédia.
Poincaré supôs (sem poder provar) que “qualquer variedade tridimensional fechada e com grupo fundamental trivial é homeomorfa a uma esfera tridimensional”. Ele supôs, mas não encontrou um meio de provar, e desde então os matemáticos vinham quebrando a cabeça atrás dessa prova.
Perelman, em suas noites insones tendo como ruído de fundo o ciciar das baratas, conseguiu. Ofereceram-lhe o milhão de dólares do prêmio proposto, e ele declinou: “Obrigado, já tenho tudo do que preciso, não quero ficar em exibição como um bicho num Jardim Zoológico”. E bateu a porta.
Há um filme brilhante e pouco conhecido que nos mostra por dentro o mundo desses indivíduos: Pi, de Darren Aronofsky. Foi feito com uma merreca, por uma equipe de uma dúzia de pessoas, pelas ruas de Nova York, filmando em preto-e-branco com uma camarazinha qualquer.
A Matemática é algo como uma droga poderosa. É um estado alterado de consciência que, se não for tratado com cuidado, pode engolfar a consciência por inteiro. Todo mundo sabe dos “idiots savants”, aquele sujeitos retardados, incapazes de falar direito, de entender coisas minimamente simples, às vezes incapazes de cuidarem de si próprios, mas que conseguem fazer cálculos mentais gigantescos em alguns segundos.
O grande matemático como Perelman é uma versão atenuada disto. Sua mente processa dados e fórmulas sem parar e não pode dedicar espaço para ações triviais como ir ao supermercado ou trocar de cuecas. Indivíduos assim deveriam ser financiados pelo Estado e viver numa espécie de retiro, apenas trabalhando, pensando, resolvendo conjeturas abstratas. Se o Estado sustenta criminosos num presídio, por que não sustentaria um matemático?
domingo, 27 de junho de 2010
2203) O destino indireto (31.3.2010)
O escritor Alberto Mussa conta que quando fazia um curso universitário de Matemática usou, ao pagar as cadeiras de Cálculo, um livro-texto diferente do que seus colegas usavam. O autor do livro era um russo, um tal de Piskounov ou coisa parecida, diz ele. Espalhou-se na faculdade a notícia de que ele estudava no livro de um autor russo (era a época da ditadura) e isso imediatamente lhe conquistou um enorme prestígio entre seus colegas comunistas. Um deles deu-lhe de presente um livro de poemas de Agostinho Neto, o presidente comunista de Angola – e a vida de Mussa mudou para sempre. Não que ele tivesse virado comunista, mas foi através do poeta angolano que ele descobriu a cultura e a literatura da África, sobre as quais viria a escrever numerosas obras.
Vilma Guimarães Rosa conta no livro Relembramentos que sua tia Maria Luiza, quando jovem, precisava dar mamadeira a um sobrinho, mas não tinha relógio e estava sozinha com o bebê em casa. Para perguntar as horas a alguém confiável, ligou para um número que viu na lista, e que imaginou pertencer a uma entidade religiosa. Não era: era uma pensão de estudantes. Um rapaz atendeu, os dois começaram uma conversa, depois um namoro, e acabaram casados pelo resto da vida.
São mil histórias; cada um de nós sabe várias. É a moça que acompanha a amiga a um estúdio, onde a amiga vai gravar alguma coisa, e alguém lhe pede que faça um teste ao microfone, ela canta e vira mais cantora que a amiga. É o rapaz que vai se matricular na Faculdade, vê uma moça bonita se matriculando noutro curso e, num impulso, matricula-se ali sem outro interesse, e vira um luminar daquela ciência.
Luís Buñuel nunca tinha pisado no México. Estava meio exilado e desempregado em Hollywood quando em 1946 recebeu um recado de uma amiga, no México, chamando-o para produzirem juntos uma peça. Don Luís foi para lá. No hotel, ficou sabendo que a peça que tinham em mente fora liberada para outro produtor. Buñuel ficou no México até morrer, e realizou ali 20 filmes.
É o que eu sempre digo: "Sorte não é sonhar avestruz, jogar avestruz, e dar avestruz. Sorte é sonhar avestruz, jogar camelo por engano, e dar camelo". Em tudo que tem interferências do Acaso a gente percebe o lado aleatório da coisa, mas percebe também (ou está ansioso para perceber) a presença de um enorme Dedo empurrando os personagenzinhos nesta direção, depois naquela... Luís Buñuel tem uma afirmativa terrível: “O Acaso não pode ser uma criação de Deus, já que ele é a negação de Deus. Estes dois termos são antinômicos, excluem-se um ao outro”. Escutaram, amigos, mil catedrais desabando? O contrário de Deus não é o Diabo, que é feito da mesma essência dele e no máximo encarna o seu pólo oposto. Deus é criação, controle, onisciência, determinismo, ordem; é isto, e tudo que combinar com isto. O contrário de Deus é o Acaso. Se pudermos um dia provar a existência do Acaso provaremos a inexistência de Deus.
2202) Messi (30.3.2010)
A Copa do Mundo já está em contagem regressiva no “Globo Esporte” e eu me preparando. O Brasil inteiro se prepara para torcer por mais um título da Seleção. Eu, não. Já sei que o título é praticamente impossível. A Fifa e os poderosos chefões do futebol não nos permitirão ganhar dois títulos consecutivos em 2010 e 2014; e se é pra ganhar somente um, prefiro (e acho que Ricardo Teixeira também) ganhar a Copa que vai ser disputada aqui, na nossa casa. Fica mais redondo, não é mesmo? Esqueçam o título.
Torcer pelo Brasil é minha segunda prioridade. A primeira é ver grandes jogos, grandes craques, grandes gols. A Copa é o Woodstock do futebol. Eu pertenço a essa espécie pouco ortodoxa que gosta mais de futebol do que de um time, ainda que seja o do Brasil. A maioria dos torcedores tem com o futebol uma relação composta em partes iguais de política, militarismo e religião; meu relacionamento com ele é de ordem estética. Se numa final de Copa, jogo empatado, Brasil x Argentina, um argentino fizer um gol de placa tirando o título do Brasil, acho que vou aplaudir tanto quanto se fosse um gol brasileiro.
O sujeito capaz dessa façanha é o baixinho Lionel Messi, que anda comendo a bola há tempos, e que nesta Copa, aos 22 de idade, vai ter a chance de mostrar a razão de sua presença neste planeta. Messi é uma figura. Aliás, o que nos atrai nos grandes jogadores (como nos grandes artistas) é a sua individualidade. Não há dois craques iguais. Mesmo craque de estilos semelhantes (digamos – Beckenbauer e Ademir da Guia) podem ser distinguidos de olhos fechados. Cada craque é um cara que se especializou ao máximo em explorar criativamente uma combinação improvável, rara, de qualidades físicas, técnicas e psicológicas.
Messi é baixinho, maciço, veloz, canhoto, excelente driblador, ótimo finalizador, um pulmão incansável, uma capacidade rara não somente de iniciar como de definir as jogadas de gol. Não apenas goleia com abundância, mas é expert em atrair sobre si três defensores e tocar a bola de biquinho para um companheiro desmarcado mandar para as redes. Dias atrás, em uma semana fez oito gols: 3 no Valência, 2 no Stuttgart e 3 no Saragoza. E faz dando a impressão ilusória de simplicidade, de que o gol já estava pronto e ele se limitou a executá-lo.
Messi revelou-se no Barcelona na época em que Ronaldinho Gaúcho fazia lá o que ele faz hoje. Há um lance dos dois que define, para mim, o que é ser craque. Num jogo difícil, o Barcelona cercava o adversário procurando uma brecha. Ronaldinho viu Messi livre na ponta esquerda, lançou, e Messi entrou na área e fez o gol. O juiz anulou. Dois minutos depois, o Gaúcho recebeu a bola na mesma posição anterior, repetiu o passe e Messi repetiu o gol. Parecia um replay. Depois, o garoto (devia ter uns 18 ou 19 naquele tempo) pulou nas costas do Gaúcho, que o carregou em triunfo pelo campo, com a torcida toda de pé. Seria tão bom ver os dois frente a frente nesta Copa.
2201) Um quadro para os meus olhos (28.3.2010)
Eu estava sentado junto a uma janela do lado esquerdo. Olhei para fora. Do lado oposto da rodovia erguiam-se aquelas casa de tijolos sem reboco, aquela proliferação de paredes escuras e irregulares, cortadas por ruas de terra, com poças de lama, porcos, cachorros. As casas quase todas com antenas de TV em cima, e unidas pelo traçado dos varais de roupas.
Foi então que apareceram duas coisas ao mesmo tempo. Numa casa de dois andares, virada para a rodovia, surgiu na varanda do andar de cima, onde havia uma rede armada e uns vasos de flores, uma moça de blusa amarela e bermudas. A varanda tinha uma grade metálica fina que ia até a cintura dela. Ela andava, limpava poeira com um pano, ajeitava os vasos, passava por baixo da rede quando ia de um lado para o outro e deixava a rede balançando vazia.
No mesmo instante em que ela apareceu nessa varanda eu vi surgir na rua ao lado (porque essa casa ficava de esquina) um rapazinho com uma camisa vermelha, montado numa bicicleta. Ele deu uma volta na rua, parou a bicicleta em frente a algo que parecia uma birosca, desceu dela e começou a bater bola com outros rapazes diante da calçada (era uma daquelas ruas de terra que têm pequenos trechos calçados de cimento em frente a esta ou aquela casa).
Começou então um pequeno “pas de deux” cromático entre aquela mancha de amarelo brilhante e aquela outra mancha de vermelho sanguíneo. A mocinha ia para um lado em seu terraço, o garoto ia para outro do lado oposto. Um não enxergava o outro, porque a casa ficava de frente para a estrada e o lugar onde o rapaz estacionara a bicicleta ficava na rua ao lado, uns dez metros mais para dentro.
Mas aos meus olhos, aqueles dois retalhos de cor se destacavam no meio daquele pano de fundo cor de tijolo sujo. Havia os tijolos de barro vermelho-escuro, unidos pela grade cinzenta da argamassa, e havia em outras casas os tijolos cinza que se usam em outras construções. Quase nenhuma placa de propaganda. As roupas dos varais quase todas brancas ou de tons desbotados.
E aos meus olhos entrecerrados aqueles dois fragmentos de cores vívidas que se agitavam, como dois passarinhos na mesma gaiola, indo às vezes ambos para a direita e depois retornando para a esquerda.
Criou-se naquela instante uma harmonia de movimentos aleatórios entre duas pessoas que provavelmente ignoravam não só a presença mas a própria existência uma da outra; um balé browniano em que cada um se movia à revelia do outro, mas cabia aos meus olhos, que captavam tudo, projetar nesses movimentos um senso qualquer de harmonia, uma vontade de ordem, uma decisão de considerar que aquela micro-coincidência vista apenas por mim resultava em algo que valia a pena ver, e que um dia (hoje, depois de tanto tempo) valeria a pena lembrar.
2200) A literatura enumerativa (27.3.2010)
“O inventário obsessivo do apartamento da família em Franny e Zooey – há listas com uma página de extensão, uma das quais inclui ‘três rádios (um Freshman de 1927, um Stromberg-Carlson de 1933 e um RCA de 1941)’ – não é o tipo de detalhe que romancistas usam para capturar uma verdade psicológica ou social. Parece mais com os detalhes gratuitos e auto-gratificantes que as crianças usam na construção de seus mundos de fantasia”.
Kirsch prossegue dizendo que em suas obras mais tardias Salinger já não usava a ficção como um meio de explorar a realidade, mas como um substituto para ela.
Talvez essa visão crítica esteja sendo contaminada por tudo que sabemos de Salinger, sua fuga à publicidade, seu rompimento de relações com leitores, editores e críticos, sua transformação num eremita agressivo e mal-humorado.
Kirsch compara essa ficção catalográfica de Salinger com as histórias de fantasia que as três irmãs Brontë escreviam juntas na infância (historinhas cheias de listas), e diz que elas evoluíram dessas fantasias infantis para escrever O Morro dos Ventos Uivantes ou Jane Eyre, ao passo que Salinger pareceu ter cumprido o percurso inverso.
Ficção catalográfica é um mal ou um bem do século. Aí estão James Joyce, Georges Perec, Guimarães Rosa, J. R. R. Tolkien, Jorge Luís Borges e tantos outros que, quando a ocasião se apresentava, não hesitavam em encher suas páginas com copiosas listas.
A questão é que para esses escritores (e para Salinger também, acho) essas listas tinham efeito estético e afetivo. O exemplo escolhido por Kirsch é até meio infeliz para ilustrar sua tese, porque, mesmo não fazendo idéia do que são os rádios citados, não duvido que esses nomes tenham uma profunda repercussão na memória afetiva de milhares de leitores dos EUA. Eu mesmo, que não sou apegado a essas coisas, posso imaginar uma lista de marcas de rádios antigos que me deixaria com um nó na garganta.
Quando a lembrança é forte e emocionalmente carregada, basta o nome para, proustianamente, arrastar consigo mil e uma histórias.
Para os que sabem praticá-la, a ficção catalográfica não é um índice insensível e monótono de meros nomes. Cada item daquelas listas é uma ponta de iceberg.
O autor insinua (e o leitor aceita) que poderia escrever páginas a respeito de cada um. O catalografismo nasce de um conhecimento paradoxalmente amplo e minucioso (os dois conceitos puxam em direções diferentes) da realidade. Envolve uma noção de hipertexto “avant la lettre”, onde cada frase daquelas, cada nome, é na verdade um link. Um link para algo que o autor deixa subentendido e que cabe à fé do leitor aceitar ou não.
2199) Três histórias de fãs (26.3.2010)
A primeira história diz respeito a Spider Robinson, norte-americano, autor de histórias de ficção científica ambientadas num bar chamado Callahan’s, nome do seu proprietário. É um bar frequentado por alienígenas, viajantes no Tempo, etc., e ali se contam histórias divertidas. Robinson conta que certa vez estava com a esposa numa convenção de FC, e um grupo de fãs os convidou para jantar. Como estavam sem um centavo, aceitaram. Entraram num carro. Rumaram para o subúrbio, pegaram a estrada. O tempo passando, e tome estrada. Robinson e a mulher impacientes; e os fãs piscando uns para os outros e dando risadas. Uma hora e meia depois, pararam num restaurante, chamado, é claro, “Callahan’s”. Diz Robinson que não apenas a comida era horrível, mas descobriram que os fãs também não tinham grana para pagar o jantar.
Um cantor profissional me contou que chegou na cidade onde ia fazer um show à noite, e no aeroporto foi recebido por um sujeito que disse ser da produção local, encarregado de levá-lo para o hotel. Ele guardou a bagagem e o violão no carro do sujeito, e os dois seguiram. No meio do caminho o cara perguntou se o artista se incomodava de passar antes num local onde ele precisava pegar alguma coisa. “Tudo bem”, disse ele. Daí a pouco desceram numa casa onde estava rolando o maior churrasco, e o motorista anunciou: “Aqui está ele!”. O cantor teve que descer, sentar, fingir que bebia, até conseguir ligar para o verdadeiro produtor local ir buscá-lo; mas antes teve que pegar o violão e cantar algum dos seus grandes sucessos.
Affonso Romano de Sant’Anna narra o episódio ocorrido com Michel Foucault, em sua vinda ao Rio de Janeiro em 1973. Foucault veio fazer conferências na PUC-RJ, com cobrança de ingresso. No primeiro dia, ele e Affonso foram abordados por estudantes de filosofia que se queixaram de não poder comprar ingresso. O filósofo se dispôs a falar de graça para eles em outro horário. Depois, contou a Affonso que os estudantes o levaram para uma cobertura em Ipanema, onde ficou bastante claro que eram muito mais bem-de-vida que o próprio filósofo.
Nem todo fã apronta situações desse tipo, é claro. Mas acontece tanto que dá o que pensar nessa relação meio canibalesca que o fã mantém com seu ídolo. Os jovens leitores que levaram Spider Robinson para aquela roubada estavam querendo não só homenageá-lo, mas querendo que ele achasse graça na piadinha deles. O pessoal do churrasco e os ouvintes de Foucault certamente eram admiradores sinceros de suas vítimas (não aprontariam aquilo com qualquer um), mas narcisistas, acima de tudo. Fizeram aquilo para sair dizendo coisas como “Fulano cantou no meu churrasco”, “Foucault esteve lá em casa semana passada...” O fã é capaz de extremos de altruísmo e de extremos de egoísmo, porque existe no seu Ego uma fome voraz que só o ídolo sacia. Quanto mais importante a gente se torna para um fã, mais cuidado precisa ter com ele.
2198) “O que fazer em caso de incêndio” (25.3.2010)
Este filme alemão dirigido por Gregor Schnitzler em 2001 (Was tun, wenn’s brennt?) conta a história de um grupo de anarquistas berlinenses que, depois da queda do Muro de Berlim, se deixa absorver e cooptar (este era o verbo usado pela esquerda aqui no Brasil, no tempo da ditadura) pelo Capitalismo triunfante. Um deles vira publicitário, outro advogado, uma vira socialite, a outra mãe de família... Somente dois deles continuam vestindo casacos de couro, hirsutos, radicais, vociferantes, morando em invasões urbanas (um deles anda em cadeira de rodas, o amigo lhe serve de anjo-da-guarda).
Acontece que eles tinham colocado uma bomba num prédio, e por defeito técnico a bomba não explodiu. Doze anos depois, explode por acaso. A polícia dá uma batida no apartamento dos dois malucos e confisca latas e mais latas de cinema underground feito por eles. E no meio das latas, existe uma mostrando o preparo e a instalação da bomba. O resto do filme mostra os dois recorrendo aos amigos aburguesados para tentar reaver (ou destruir) o filme que incrimina a todos – e de maneira especial aos que agora “se passaram para o lado do inimigo”.
Desde sua sequência inicial o filme se assemelha ao Watchmen recentemente dirigido (2009) por Zack Snyder. Em ambos, o mesmo tema da “volta dos que não foram”, ou seja, o retorno de um grupo de ativistas que na verdade nunca foi realmente extinto. Em ambos, a sequência inicial de apresentação dos créditos resumindo a situação para que o filme propriamente dito comece em seguida (em Incêndio, a preparação da bomba; em Watchmen, o triunfo dos governos de extrema direita nos EUA). Em ambos, os conflitos internos de ativistas políticos e sua dificuldade de sobreviver num país em que o Capitalismo ganhou a guerra política.
Mais curiosas do que as semelhanças, no entanto, são as diferenças entre os dois filmes. Watchmen, apesar de escrito por Alan Moore, um autor de ácidas HQs, não deixa de ser um super-espetáculo comercial. Entra no mercado como um “filme de super-heróis” destinado a grandes bilheterias e com foco nos adolescentes de todas as idades. O filme alemão parecia ser (pelo menos para mim) uma produção mais modesta porém mais independente, uma avaliação política de uma situação política.
Na prática é o contrário, e curiosamente Watchmen é o mais político dos dois. O filme de Schnitzler, apesar de simpático e bem realizado, parece um filme norte-americano pelos clichês que emprega, como a tipificação dos ex-revolucionários, e pela altíssima improbabilidade dos atentados, fugas, arrombamentos, infiltrações e escapadas do grupo. Tudo acontece com uma facilidade digna de seriados da Sessão da Tarde. A guerra da esquerda alemã já está servindo para gerar histórias de entretenimento sem compromisso. Se os revolucionários se dão bem no final do filme, é porque o filme é uma vitória do cinema capitalista de entretenimento.
2197) A história de César (24.3.2010)
César (usarei este nome, que não é o dele) estudou comigo no Ginásio, numa turma em que vim parar por esses remanejamentos escolares que nos jogavam, às vezes, no meio de um grupo de outros quarenta adolescentes que nunca víramos mais gordos. Fazer amizades era um processo relativamente rápido, pois nos primeiros dias de aula já se desenhavam os grupos que as marés das afinidades amontoavam em torno de um centro gravitacional comum: aqui os Comportados, ali os Palhaços, lá adiante os Brigões, e os Estudiosos, os Riquinhos, os Proletas, os De Família, os Amulherados, os Líderes, os Babões...
Vi logo que César pertencia aos Palhaços (era sempre o primeiro a desferir uma graça-sem-graça lá do fundo da sala, durante as explicações das professoras tímidas), aos Brigões (brandia o dedo no nariz de quem se opusesse a ele e chamava pra brigar na saída), aos Proletas (falava errado, a farda era toda cerzida, às vezes tentava tomar o lanche de alguém porque não podia pagar). Fazia de tudo para aparecer; sua vida era um chega-pra-lá permanente para afirmar seu próprio espaço. Era magro, rosto cheio de espinhas, branquelo igual a mim. Tinha uma voz estridente, forçada, e costumava entrar na sala gritando: “Eita calor fela da p... que faz nessa p... desse colégio!” – e dava um chute na primeira carteira que estivesse à sua frente, surdo às reclamações do “inquilino”.
De vez em quando ia às tapas com um ou outro. Por mais de uma vez me ameaçou por uma bobagem qualquer. Como eu falava pouco (viera de outra turma, não tinha nenhum amigo antigo ali), me chamava “o Recalcado”. Quando comecei a tirar notas boas em algumas matérias, parou de me insultar, não por respeito, mas para nos dias de prova sentar perto de mim e ficar pedindo cola – que eu fornecia, quando não corria risco de ser pêgo. Vi-o brigar algumas vezes no recreio. Era cruel mas desorganizado; brigava mal, mas fazia um tal alarido que suas brigas eram logo encerradas pela intervenção de alguém. Voltava das suspensões como se nada tivesse acontecido, gritando impropérios e chutando as carteiras.
Um dia estávamos no pátio conversando com uns caras de outras turmas. César estava com a corda toda, sarcástico, incômodo. Um dos sujeitos cruzou os braços e desferiu esta: “Engraçado, César agora é todo metido a homem, no ano passado era todo mariquinha: quando apanhava choraaaava...” Durou só um segundo; mas vi que ele vacilou, bambeou, meio que acusando o golpe; por alguns segundos seus olhos de cascavel transpareceram um medo sem nome, um susto sem fim. Vi ali o pavor de quem era fraco no bom sentido, de quem era medroso no bom sentido, de quem na verdade gostaria de ser algo diferente do que foi no ano passado e do que está sendo agora, mas nunca achou o caminho. Logo logo César bradou um palavrão e armou uma escaramuça. Continuou o mesmo, mas naquele instante eu aprendi alguma coisa que não sei bem o que foi, estou dizendo aqui para ver se alguém sabe.
2196) “We can build you” (23.3.2010)
É um romance menor na obra de Philip K. Dick, mas, como tudo que Dick escreveu, é uma obra em que estão visíveis todas as qualidades do autor. Dick se colocava por inteiro em tudo que escrevia, e cada obra sua é um registro de suas obsessões, suas inquietações éticas e filosóficas, seu humor torto e surpreendente. Este livro foi escrito (de acordo com Lawrence Sutin em sua biografia Divine Invasions) entre 1961 e 1962, embora tenha sido publicado aos pedaços em revistas e a primeira edição em livro seja de 1972. É a história de uma fábrica de órgãos musicais eletrônicos que consegue produzir os primeiros andróides capazes de ser confundidos com seres humanos. Os andróides são feitos à imagem de Abraham Lincoln e de seu secretário de governo Edwin Stanton. (Dick havia visto e ficado fascinado com um “Lincoln” mecânico na Disneylândia, e 1961 marcou o centenário da Guerra da Secessão, um subtema do livro.) Os primeiros dois terços do livro mostram a criação dos andróides, o modo como eles se relacionam com os humanos, e a disputa entre duas empresas que querem usá-los para diferentes fins.
No terço final do livro, a história dá uma curiosa guinada. O narrador, Louis Rosen, um dos sócios da fábrica de andróides, se apaixona por Pris, a filha do seu sócio Maury Rock. Pris é esquizofrênica, e tendo recebido alta de uma clínica psiquiátrica dedica-se ao trabalho artístico da criação dos andróides. Louis a vê alternadamente como uma mulher fascinante e como uma destruidora. Nesta parte final, os andróides recuam para segundo plano, e acompanhamos apenas a descida aos infernos de Louis Rosen, que, apaixonado por uma mulher esquizóide, torna-se esquizóide ele próprio.
Dick foi o escritor de FC que melhor soube criar personagens comuns, geralmente pequenos industriais ou comerciantes, vendedores, sujeitos de bom caráter mas consumidos por dúvidas existenciais e problemas filosóficos. Indivíduos que se deparam com situações fantásticas em que precisam redefinir seus conceitos sobre o que é real, o que é um ser humano, o que é a vida, a morte, o Universo. We Can Build You ressuscita um Abraham Lincoln compassivo, ético, depressivo (o livro comenta as crises esquizóides que Lincoln teve na juventude) como contraponto a Louis Rosen.
Brian Stableford observa que muitos livros de Dick não se encerram, se esvaem, terminando de forma abrupta ou vaga, sem resolver as situações dramáticas que propõem. E sugere que isso se deve ao modo de produção do autor, que consistia em acessos de hiperatividade criativa em que escrevia dias e noites sem parar. Quando esses acessos eram curtos, o livro adquiria essa estrutura desconjuntada, inconclusa. O que não tem muita importância, pois a obra de Dick é uma espécie de ficcionalização permanente de seu próprio cotidiano, de suas fantasias e alucinações. Mesmo um livro menor, como este, é capaz de inquietar um novo leitor, fasciná-lo, conquistá-lo para sempre.
sexta-feira, 25 de junho de 2010
2195) Idéia para um conto (21.3.2010)
Tenho uma idéia ótima para um conto. Começa descrevendo uma rua de uma grande cidade, falando em traços rápidos sobre as vitrines das lojas, os ônibus que passam, a multidão indo e vindo... Logo focaliza um sujeito de terno cinza parado no meio-fio, como se estivesse esperando o sinal abrir para atravessar a rua. Em toda essa descrição deve haver algumas lacunas obrigatórias (não dizer a cidade, nem sequer o país, nenhum traço identificável) e alguns adjetivos meio deslocados para dar idéia de estranheza (“ele usa um terno de um cinza implacável...”).
Só tenho isso por enquanto – e o personagem. Ou seja, a identidade dele, o que vai fazer nos parágrafos finais e devastadores. Mas como a revelação só virá no final, preciso preencher o espaço intermediário com uma trama qualquer. Houve uma época em que imaginei uma história de espionagem. Ele é um Agente Duplo. Vive naquela cidade sob uma identidade falsa, mas o faz há tanto tempo que essa identidade assumida se sobrepôs à verdadeira. É um agente de baixo escalão, numa cidade sem importância estratégica, e há anos não é contatado para executar nenhuma missão. Ele agora acredita ser quem finge que é, está satisfeito com essa vidinha, será capaz de qualquer violência para mantê-la, até mesmo de matar outro Agente Duplo enviado para eliminá-lo, assim que descobrir uma maneira de poder fazê-lo e continuar vivo.
Depois imaginei que esse cara não seria ninguém. O verdadeiro protagonista é, ou melhor são, um homem e uma mulher que o observam com binóculos, do quinto andar de um prédio próximo. São viajantes no Tempo que vêm do futuro. Daí a poucos minutos uma adolescente (a filha deles) irá atravessar aquela rua correndo; e vai escorregar, cair, e ser atropelada. O casal veio do futuro para impedir, mas os campos de força probabilísticos impedem que eles ajam diretamente sobre fatos que os emocionam. Não podem se aproximar, porque causariam uma turbulência emocional muito forte. O máximo que podem fazer é trazer consigo uma terceira pessoa, o homem de cinza, com instruções para aproximar-se da garota e não permitir que ela atravesse a rua. A hora está chegando, e os binóculos vacilam em suas mãos quando vêem a filha andando apressada (está atrasada para a aula de dança).
Essa idéia vingou durante alguns anos, mas já li tantas histórias assim que a descartei. Poderia ser algo mais best-seller. O homem de cinza é um mero advogado de causas cíveis. O casal luta por uma herança milionária. Só que o advogado (que em tese os defende) está sendo subornado pelos adversários no processo. Instalaram-se ali para fotografar com teleobjetiva o encontro dos dois, que descobriram ter sido marcado para uma lanchonete próxima. Acho que isto é mais realista. De qualquer maneira, acho esta idéia espetacular: um homem de terno parado numa calçada! Só não escrevi ainda o conto porque uma idéia tão boa vai acabar sendo plagiada por alguém.
2194) Poe e o efeito (20.3.2010)
Estou preparando uma antologia sobre os contos obscuros de Edgar Allan Poe (1809-1849), um dos escritores que mais influenciaram a literatura de hoje. Basta pensar que três dos gêneros mais populares do mercado em 2010 têm Poe como precursor: o romance policial, a ficção científica e a história de terror.
Pela complexidade de sua obra, e pelo modo como nela estão presentes elementos culturais que só hoje começam a se disseminar pelas sociedades tecnológicas, podemos dizer que Poe, nascido há 201 anos, foi o primeiro escritor a praticar a literatura do século 21.
Há um outro aspecto em que a influência de Poe foi extremamente positiva em sua época, mas tornou-se tão forte, e tão adequada ao Espírito do Tempo, que hoje passa a ser uma distorção e uma ameaça.
Ocorre isto com o espírito de racionalidade e deliberação que Poe imprimiu à poesia e ao conto, onde tudo, aos seus olhos, devia ser organizado não em função de uma suposta “mensagem” ideológica (este seria o objetivo do Ensaio) ou da criação da Beleza (este seria o objetivo da poesia).
No conto, dizia Poe, tudo deve ter em mente o efeito a ser produzido no leitor. Isso foi uma verdadeira puxada de tapete numa época em que se pressupunha que o objetivo da literatura era exprimir o que se passa na mente do autor, e que cabia ao leitor o esforço de entender.
O centro era o Autor. Poe deslocou esse centro: o centro é o Leitor, a mente do Leitor, e cabe ao autor organizar os seus recursos (enredo, personagens, efeitos estilísticos, etc.) para produzir no Leitor um efeito previamente escolhido.
Ora, isso que Poe propõe é exatamente o que faz, em escala maciça e massacrante, a indústria cultura de hoje, o cinema, a TV, a literatura popular em geral. Pesquisas de mercado passam o pente fino no gosto do público, listam os elementos mais preferidos e menos preferidos, organizam esses elementos de forma a criar um produto “customizado”, talhado na medida exata para atender a expectativa do freguês.
Dizem os americanos que qualquer filme que tenha crianças, cachorros e esporte é sucesso garantido.
Este excesso de deliberação e planejamento chega quase a um cinismo. A indústria cultural não trabalha com o conceito de Autor, de um indivíduo que centraliza a criação e a utiliza para exprimir sua própria visão do mundo, suas emoções, o que lhe vai pela alma.
A própria literatura está se aproximando dessa visão mercadológica em que o escritor primeiro pesquisa “o que o público está gostando” e só depois escolhe o assunto do seu livro e se senta para escrever. Claro que a literatura de autor, o cinema de autor e até mesmo a televisão de autor ainda existem. Isso não se extingue por decreto nem por ibope.
Mas a literatura, influenciada pela mudança de enfoque sugerida por Poe há quase dois séculos, tende cada vez mais a ser um produto pesquisado, planejado, cuidadosamente produzido para produzir os efeitos X ou Y no onipresente e impotente Leitor.
2193) A capa sobre a lama (19.3.2010)
(A Hard Day's Night)
No final do século 16 Sir Walter Raleigh era um dos nobres da Corte presentes num evento social em que a Rainha Elizabeth I, ao caminhar, deteve-se, hesitante, diante de uma poça de lama.
Todo mundo ficou pensando em alguma coisa para fazer, mas Raleigh adiantou-se e fez: arrancou sua capa de veludo, que custava uma nota preta, e a estendeu sobre a lama para que a Rainha não sujasse os sapatinhos e a barra do vestido.
Qual a Rainha que não se apaixona, diante de uma galanteria como esta? Sir Walter caiu nas graças de Elizabeth, e o resto, como se diz, é História.
Ou Estória, porque este episódio (segundo os historiadores) nunca ocorreu. Seu maior popularizador foi o romance histórico Kenilworth de Walter Scott (1821), em que o caso todo é recontado com certo charme.
Gestos assim se fixam no inconsciente coletivo de um povo, porque em 1899, em seu livro The Wind Among the Reeds, William Butler Yeats publicou um pequenino poema, hoje um dos mais famosos de sua obra, intitulado “He Wishes For the Clothes of Heaven”, que diz:
Se eu fosse dono dos panos bordados do Céu
tecidos com luz de ouro e de prata
os panos azuis e escuros e negros da noite
e da luz e da meia-luz do crepúsculo
eu estenderia esses panos aos teus pés;
mas, já que sou pobre, tenho apenas os meus sonhos
e os estendi aos teus pés;
pisa devagar, porque estás pisando sobre os meus sonhos.
Além da historicidade do gesto (familiar a qualquer britânico, pela tradição), o poema encanta pela beleza das imagens e pelo paradoxo de alguém não ter nada precioso para oferecer a sua dama, mas este mesmo fato torna preciosa a única coisa que ele tem: os seus sonhos.
Tudo que mergulha e se deposita no inconsciente coletivo pode ser trazido à tona pelo humor, que é uma perfuratriz capaz de atingir qualquer Pré-Sal em dois segundos. Em 1964, Richard Lester dirigiu o primeiro filme sobre os Beatles A Hard Day’s Night. Uma das sequências mostra Ringo Starr saindo dos estúdios, onde os amigos esperam a hora do ensaio, e indo passear sem destino por Londres.
A certa altura, ele está atravessando algo que parece um canteiro de obras (não tenho o filme à mão agora, estou citando de memória). Aparece uma dama elegante que hesita diante de uma poça de água e lama. Ringo cobre a poça com sua capa, a dama passa e sorri. Mais adiante, outra poça. Ringo repete o gesto, ela fica ainda mais feliz. Mais à frente, uma terceira poça. Ringo coloca a capa mais uma vez, a dama pisa... e afunda até desaparecer, pois era um buraco enorme.
John Lennon, na letra de “I’m so Tired”, referiu-se a Raleigh:
Embora eu esteja tão cansado
vou acender outro cigarro
e maldito seja Sir Walter Raleigh
aquele bastardo tão estúpido.
É uma referência a outra lenda: que um criado de Raleigh teria despejado um balde dágua sobre o patrão quando o viu fumando, por não saber o que era aquilo. Raleigh foi um dos responsáveis pela introdução do tabaco na Europa.
2192) Mais pérolas do vestibular (18.3.2010)
A realização recente de alguns vestibulares trouxe novamente à baila a questão do despreparo dos nossos estudantes, principalmente quando se trata de responder perguntas por extenso, usando suas próprias palavras.
Ninguém mais discute que o nefando método quantitativo (o método do xizinho, ou da múltipla escolha) destruiu o sistema neuronial de várias gerações sucessivas. Os jovens não são mais capazes de dizer o que pensam, se é que pensam. Não têm mais opiniões e nunca aprenderam a tê-las, porque sempre foram estimulados a responder com qual opinião alheia, num conjunto de cinco, eles concordam.
São nossos frankensteins. Mangamos deles, e deve existir alguma entidade metafísica mangando mais ainda de nós. Eis algumas das pérolas mais recentes.
HISTÓRIA GERAL:
“O Egito era especializado em obras faraônicas que continuam de pé a milhões de anos”.
“A Guerra da Sucessão nos Estados Unidos colocou em pontos contrários os escravagistas e os tabagistas”.
“Durante a Revolução Francesa foram guilhotinados inúmeros reis e rainhas e inclusive gente do povo mesmo”.
“O Rei Luís XIV criou o Museu do Louvre para abrigar os tesouros do Iluminismo”.
ECOLOGIA:
“A floresta amazônia está no meio dos ambientes ameaçados pelo gás estufa”.
“Devido ao esquecimento global, nossas forestas estão em petição de miséria”.
“O governo federal faz somente promugar novas leis de desmatamento mas a serração continua”.
“Desde a morte de Chico Mendes a floresta amazônica nunca mais foi a mesma”.
MATEMÁTICA:
“Números primos são números ímpares que não se deixam dividir”.
“Raiz quadrada é o processo para adivinhar qual foi o número que elevado ao quadrado deu aquele”.
“A Álgebra surgiu para satisfazer uma necessidade da mente humana de resolver problemas complexos usando letras simples”.
PORTUGUÊS:
“Oração principal é aquela mais importante nos momentos de maior necessidade, como por exemplo o Pai Nosso”.
“O português teve origem no Latim vulgar, que era a língua falado pelos centuriões romanos enviados para Portugal”.
“A Reforma Ortográfica veio promover a opressão das consoantes mudas e dos assentos diferenciados”.
LITERATURA BRASILEIRA:
“Durante o apogeu do Modernismo, virou moda fazer versos sem rimar, a menos que o poeta quisesse”.
“João Cabral de Melo Neto ficou mundialmente famoso pelo seu poema da Pedra no Caminho”.
“O Romantismo e o Realismo são as duas escolas mais importantes da literatura, com a diferença que cada uma não acha a outra importante”.
Achou graça, amigo? Eu também achei. Recebo pela Internet tantas besteiras atribuídas aos nossos vestibulandos! Boa parte delas deve ser produto não da ignorância dos coitados, mas da galhofa de redatores de humor desocupados, como o locutor que vos fala. Inventar estas frases me divertiu enormemente, e vou me divertir mais ainda quando as reencontrar daqui a alguns anos, atribuídas aos pobres coitados que herdarão o que restar do nosso país.
2191) Guerra ao Terror (17.3.2010)
Vendo este filme de Kathryn Bigelow, não foi difícil entender porque ganhou mais Oscars do que Avatar de James Cameron. Em primeiro lugar tratava-se, como a imprensa espremeu até a última gota de assunto, de uma disputa pessoal entre ex-esposa e ex-marido. Atrevo-me a dizer que todas as mulheres da Academia de Hollywood votaram no filme da ex-esposa, e os homens devem ter se dividido entre ele e os outros nove candidatos. Barbada. Há outro aspecto: era o filme de 11 milhões de dólares (o dela) contra o de 500 milhões (o dele). Por fim, o filme de Cameron é uma fantasia de animação (para mim metade do filme é tão animação quanto Fantasia de Walt Disney) e o de Bigelow é, surpreendentemente para uma mulher, um filme áspero e realista, um elogio àquilo que os EUA tanto prezam: sujeito durões fazendo um trabalho duro sem se deixar abater. Inclusive por escrúpulos morais.
É um excelente filme de ação, com narrativa seca, câmara na mão e montagem de cortes bruscos transmitindo uma sensação quase física de perigo, incerteza e envolvimento com uma ação em que tudo está o tempo todo por um fio e ninguém sabe exatamente o que está acontecendo. Para mim o grande diferencial deste filme em relação à maioria dos filmes sobre Vietnam, Guerra do Golfo e Iraque é que o tema do filme é a arte e a ciência de desarmar bombas. Isso faz dele menos um filme de carnagem (embora a carnagem aconteça) do que um filme de tensão e suspense, muito bem explorados pelo uso consciente de câmara, som (durante bem um terço do filme escutamos a respiração dos personagens), montagem. E interpretação, porque os atores, todos desconhecidos para mim, se saem muito bem.
Há um longo tiroteio no deserto em que a noção de tempo é bem explorada, dando-nos a sensação de estar acompanhando uma escaramuça em tempo real. Escaramuças desse tipo têm momentos alternados de tiroteio frenético e longas pausas em que cada um fica espreitando as intenções do outro. Aqui e acolá, tiros esparsos, muito bem alvejados, com direção. Um grande erro em filmes de guerra é tentar estabelecer um ritmo “emocional”: mostrar cenas de morte alternadas com cenas de bebedeira eufórica ou de saudades da família. Guerra ao Terror, mesmo pagando tributo a esses clichês, os empurra para segundo plano, e passa passar a impressão de um trabalho cotidiano em que a morte pode vir daí a um segundo, sem ser precedida por fanfarras, trombetas ou “Cavalgada das Valquírias” (que só funcionou bem quando Coppola fez pela primeira vez; de lá para cá virou um clichê insuportável).
Uma das últimas cenas mostra o desarmador de bombas defrontando-se, numa praça evacuada às pressas, com um iraquiano que grita e chora dizendo que não quer morrer. O técnico abre o paletó do sujeito e se depara com uma estrovenga cheia de cadeados, fivelas, detonadores, “timers”, e vê que não vai conseguir. Excelente metáfora. O Iraque vai morrer lutando, e os EUA não vão conseguir evitar.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
2190) Glauco (16.3.2010)
Glauco Villas-Boas, assassinado na semana passada em Osasco junto com seu filho Raoni, foi um dos cartunistas que ressuscitaram o humor brasileiro durante a década de 1980. Era uma turma enorme de paulistas nascidos ou adotivos: Glauco, Angeli, Laerte, Adão Iturrusgarai, Paulo & Chico Caruso, Nilson, e tantos outros. Circularam em fanzines, depois em revistas como Circo, Chiclete com Banana, entraram para a imprensa diária (Folha, Estadão), colaboraram na TV, e depois cada um estava lançando sua própria revista. Faço esse arrazoado para deixar claro que, se Roberto Carlos e os Beatles são chamados “a trilha sonora de uma geração”, esses cartunistas foram o muro, o grafito, a porta-de-banheiro, as páginas-do-fim do caderno onde a História desta geração foi escrita.
Glauco foi sem dúvida um dos traços mais não-parecidos-com-coisa-nenhuma que já apareceram no cartum e nos quadrinhos brasileiros. Suas tirinhas do Geraldão eram no início um desafio para os meus olhos acostumados a tiras graficamente mais bem-comportadas, como as de Angeli (o que é uma boa medida do mau-comportamento desenhístico de Glauco). Geraldão era aquele maluco desvairado que passa o dia em casa vendo TV, tomando todas as drogas imagináveis, levando Playboy pro banheiro, metendo-se em confusões. Um primo distante dos Freak Brothers. Geraldão aparecia aplicando-se com seringa, e alguns meses depois já caminhava entre dois quadrinhos com meia dúzia de seringas, sem explicações, cravadas em pontos diferentes do corpo. Fumava e bebia, tudo bem, mas daí a pouco lá vai Geraldão atender a campainha com cinco cigarros fumegando na boca e meia-dúzia de copos equilibrados na cabeça.
O delírio cubista de Glauco foi chegando a limites que fariam recuar Picasso e Braque. Geraldão se locomovia num universo quântico em que todas as possibilidades coexistiam e se superpunham, Geraldão com dez braços bebendo, fumando, cheirando, falando ao telefone e desdobrando uma “centerfold” ao mesmo tempo. O traço de Glauco era rigorosamente não-figurativo, era esquemático e histérico, uma mistura da economia de Nássara com o frenesi de Henfil.
É impressionante que um sujeito com um traço tão anti-Belas-Artes tenha sido capaz de não apenas sobreviver, mas tornar-se nacionalmente reconhecido. Isso diz muita coisa boa sobre o Brasil, e especificamente sobre o ambiente de imprensa e cultura gráfica de São Paulo, onde talento conta muito. É no cartum e nos quadrinhos que a gente percebe, num choque instantâneo de reconhecimento, o que é “estilo” (literário, musical, cinematográfico, etc.). Estilo é a superutilização concentrada e intensiva de tudo que a gente sabe fazer, depois de jogar pela janela o que não sabe e não consegue. Não adianta dizer ao garoto, “desenhe igual a Michelangelo, ou a Crumb”. O estilo resulta da mão, do olho e do juízo acelerado de cada um, e o resultado é único, incomparável, insubstituível. Salve, grande Glauco!