domingo, 27 de junho de 2010

2200) A literatura enumerativa (27.3.2010)




O blog “The Reading Experience” publicou uma crítica de Adam Kirsch ao recém-falecido J. D. Salinger. Kirsch visava certos trechos existentes nos livros de Salinger (nos dele e nos da torcida do Flamengo, se a gente observar bem), trechos meramente enumerativos, listas e listas de coisas. Diz ele: 

“O inventário obsessivo do apartamento da família em Franny e Zooey – há listas com uma página de extensão, uma das quais inclui ‘três rádios (um Freshman de 1927, um Stromberg-Carlson de 1933 e um RCA de 1941)’ – não é o tipo de detalhe que romancistas usam para capturar uma verdade psicológica ou social. Parece mais com os detalhes gratuitos e auto-gratificantes que as crianças usam na construção de seus mundos de fantasia”. 

Kirsch prossegue dizendo que em suas obras mais tardias Salinger já não usava a ficção como um meio de explorar a realidade, mas como um substituto para ela. 

Talvez essa visão crítica esteja sendo contaminada por tudo que sabemos de Salinger, sua fuga à publicidade, seu rompimento de relações com leitores, editores e críticos, sua transformação num eremita agressivo e mal-humorado. 

Kirsch compara essa ficção catalográfica de Salinger com as histórias de fantasia que as três irmãs Brontë escreviam juntas na infância (historinhas cheias de listas), e diz que elas evoluíram dessas fantasias infantis para escrever O Morro dos Ventos Uivantes ou Jane Eyre, ao passo que Salinger pareceu ter cumprido o percurso inverso. 

Ficção catalográfica é um mal ou um bem do século. Aí estão James Joyce, Georges Perec, Guimarães Rosa, J. R. R. Tolkien, Jorge Luís Borges e tantos outros que, quando a ocasião se apresentava, não hesitavam em encher suas páginas com copiosas listas. 

A questão é que para esses escritores (e para Salinger também, acho) essas listas tinham efeito estético e afetivo. O exemplo escolhido por Kirsch é até meio infeliz para ilustrar sua tese, porque, mesmo não fazendo idéia do que são os rádios citados, não duvido que esses nomes tenham uma profunda repercussão na memória afetiva de milhares de leitores dos EUA. Eu mesmo, que não sou apegado a essas coisas, posso imaginar uma lista de marcas de rádios antigos que me deixaria com um nó na garganta. 

Quando a lembrança é forte e emocionalmente carregada, basta o nome para, proustianamente, arrastar consigo mil e uma histórias. Para os que sabem praticá-la, a ficção catalográfica não é um índice insensível e monótono de meros nomes. Cada item daquelas listas é uma ponta de iceberg. 

O autor insinua (e o leitor aceita) que poderia escrever páginas a respeito de cada um. O catalografismo nasce de um conhecimento paradoxalmente amplo e minucioso (os dois conceitos puxam em direções diferentes) da realidade. Envolve uma noção de hipertexto “avant la lettre”, onde cada frase daquelas, cada nome, é na verdade um link. Um link para algo que o autor deixa subentendido e que cabe à fé do leitor aceitar ou não.






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