Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
2190) Glauco (16.3.2010)
Glauco Villas-Boas, assassinado na semana passada em Osasco junto com seu filho Raoni, foi um dos cartunistas que ressuscitaram o humor brasileiro durante a década de 1980. Era uma turma enorme de paulistas nascidos ou adotivos: Glauco, Angeli, Laerte, Adão Iturrusgarai, Paulo & Chico Caruso, Nilson, e tantos outros. Circularam em fanzines, depois em revistas como Circo, Chiclete com Banana, entraram para a imprensa diária (Folha, Estadão), colaboraram na TV, e depois cada um estava lançando sua própria revista. Faço esse arrazoado para deixar claro que, se Roberto Carlos e os Beatles são chamados “a trilha sonora de uma geração”, esses cartunistas foram o muro, o grafito, a porta-de-banheiro, as páginas-do-fim do caderno onde a História desta geração foi escrita.
Glauco foi sem dúvida um dos traços mais não-parecidos-com-coisa-nenhuma que já apareceram no cartum e nos quadrinhos brasileiros. Suas tirinhas do Geraldão eram no início um desafio para os meus olhos acostumados a tiras graficamente mais bem-comportadas, como as de Angeli (o que é uma boa medida do mau-comportamento desenhístico de Glauco). Geraldão era aquele maluco desvairado que passa o dia em casa vendo TV, tomando todas as drogas imagináveis, levando Playboy pro banheiro, metendo-se em confusões. Um primo distante dos Freak Brothers. Geraldão aparecia aplicando-se com seringa, e alguns meses depois já caminhava entre dois quadrinhos com meia dúzia de seringas, sem explicações, cravadas em pontos diferentes do corpo. Fumava e bebia, tudo bem, mas daí a pouco lá vai Geraldão atender a campainha com cinco cigarros fumegando na boca e meia-dúzia de copos equilibrados na cabeça.
O delírio cubista de Glauco foi chegando a limites que fariam recuar Picasso e Braque. Geraldão se locomovia num universo quântico em que todas as possibilidades coexistiam e se superpunham, Geraldão com dez braços bebendo, fumando, cheirando, falando ao telefone e desdobrando uma “centerfold” ao mesmo tempo. O traço de Glauco era rigorosamente não-figurativo, era esquemático e histérico, uma mistura da economia de Nássara com o frenesi de Henfil.
É impressionante que um sujeito com um traço tão anti-Belas-Artes tenha sido capaz de não apenas sobreviver, mas tornar-se nacionalmente reconhecido. Isso diz muita coisa boa sobre o Brasil, e especificamente sobre o ambiente de imprensa e cultura gráfica de São Paulo, onde talento conta muito. É no cartum e nos quadrinhos que a gente percebe, num choque instantâneo de reconhecimento, o que é “estilo” (literário, musical, cinematográfico, etc.). Estilo é a superutilização concentrada e intensiva de tudo que a gente sabe fazer, depois de jogar pela janela o que não sabe e não consegue. Não adianta dizer ao garoto, “desenhe igual a Michelangelo, ou a Crumb”. O estilo resulta da mão, do olho e do juízo acelerado de cada um, e o resultado é único, incomparável, insubstituível. Salve, grande Glauco!
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