Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 30 de junho de 2010
2210) O português do povo (8.4.2010)
Que língua interessante é o português. Interessante e complicada – para quem vem de fora.
Lembro de uma história ocorrida no antigo Campus II da UFPB, hoje UFCG, em Bodocongó. Um professor holandês, chegado a Campina há menos de um ano, teve um problema familiar grave e precisava licenciar-se com urgência para ir à Holanda. Foi falar com o Reitor, explicou os motivos e pediu uma licença de três semanas. “Pois não,” disse o Reitor, comovido com o drama dele. O homem ficou aflito: “Mas é um assunto muito sério! Eu preciso mesmo ir!” “O Reitor repetiu: “Pois não”. O homem quase chora: “Mas por que o senhor me nega esse direito?!...”
Claro que ele viajou, só não sei é se resolveu o problema.
Uma das melhores coisas do português é a fervilhância de novidades linguísticas que encontramos na rua, pelo simples fato de que as pessoas, quando precisam dizer alguma coisa e não encontram a palavra certa (ou melhor, a palavra que nos ocorreria se fôssemos nós a querer dizer aquilo), inventam na hora uma maneira própria de dizer.
Recentemente um camelô, na Rua da Uruguaiana, vendia DVDs piratas do filme Avatar, anunciando aos quatro ventos: “Avatar em trimensão!” Ele se referia, claro, ao fato de que o filme era em 3-D, ou em terceira dimensão. O camelô (ou a pessoa que passou essa palavra para ele) percebeu intuitivamente que existe um precedente linguístico para transformar uma palavra com o prefixo “di” (significando dois) em outra com o prefixo “tri” (significando três), como em “difásico / trifásico”, por exemplo.
A criação desses neologismos é um processo de evolução natural da língua, e acho engraçado como o tempo todo aparece gente dizendo que essas pessoas estão “falando errado”. Pergunto a razão e me respondem: “Porque essa palavra não existe, não tem no dicionário, eles falam assim porque são ignorantes”.
Existe nas pessoas medianamente cultas a fantasia de que o Dicionário e a Gramática são uma espécie de Código Penal do idioma, dizendo o que é permitido e o que é proibido fazer. Não são. Dicionários e gramáticas são elaborados “a posteriori”: o povo (incluindo desde os camelôs até João Guimarães Rosa) inventa as palavras e as maneiras de falar, e quando algumas dessas maneiras se cristalizam e se impõem, os dicionaristas e gramáticos, diligentemente, registram, carimbam e aprovam. Nada mais.
Cabe aos dicionaristas e gramáticos um papel parecido com o de um maestro numa orquestra – evitar as dissonâncias, estimular a harmonia, preservar a fidelidade à fonte, por exemplo.
A língua portuguesa tem seus próprios mecanismos de criação de palavras, de articulação de frases, de conjugação de verbos, de uso de conjunções e preposições. Esses mecanismos são dela e lhe dão personalidade, sabor, fisionomia própria. Quando um camelô, intuitivamente, percebe esses princípios e os aplica, mostra que conhece a língua melhor do que seus críticos.
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