Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 27 de junho de 2010
2196) “We can build you” (23.3.2010)
É um romance menor na obra de Philip K. Dick, mas, como tudo que Dick escreveu, é uma obra em que estão visíveis todas as qualidades do autor. Dick se colocava por inteiro em tudo que escrevia, e cada obra sua é um registro de suas obsessões, suas inquietações éticas e filosóficas, seu humor torto e surpreendente. Este livro foi escrito (de acordo com Lawrence Sutin em sua biografia Divine Invasions) entre 1961 e 1962, embora tenha sido publicado aos pedaços em revistas e a primeira edição em livro seja de 1972. É a história de uma fábrica de órgãos musicais eletrônicos que consegue produzir os primeiros andróides capazes de ser confundidos com seres humanos. Os andróides são feitos à imagem de Abraham Lincoln e de seu secretário de governo Edwin Stanton. (Dick havia visto e ficado fascinado com um “Lincoln” mecânico na Disneylândia, e 1961 marcou o centenário da Guerra da Secessão, um subtema do livro.) Os primeiros dois terços do livro mostram a criação dos andróides, o modo como eles se relacionam com os humanos, e a disputa entre duas empresas que querem usá-los para diferentes fins.
No terço final do livro, a história dá uma curiosa guinada. O narrador, Louis Rosen, um dos sócios da fábrica de andróides, se apaixona por Pris, a filha do seu sócio Maury Rock. Pris é esquizofrênica, e tendo recebido alta de uma clínica psiquiátrica dedica-se ao trabalho artístico da criação dos andróides. Louis a vê alternadamente como uma mulher fascinante e como uma destruidora. Nesta parte final, os andróides recuam para segundo plano, e acompanhamos apenas a descida aos infernos de Louis Rosen, que, apaixonado por uma mulher esquizóide, torna-se esquizóide ele próprio.
Dick foi o escritor de FC que melhor soube criar personagens comuns, geralmente pequenos industriais ou comerciantes, vendedores, sujeitos de bom caráter mas consumidos por dúvidas existenciais e problemas filosóficos. Indivíduos que se deparam com situações fantásticas em que precisam redefinir seus conceitos sobre o que é real, o que é um ser humano, o que é a vida, a morte, o Universo. We Can Build You ressuscita um Abraham Lincoln compassivo, ético, depressivo (o livro comenta as crises esquizóides que Lincoln teve na juventude) como contraponto a Louis Rosen.
Brian Stableford observa que muitos livros de Dick não se encerram, se esvaem, terminando de forma abrupta ou vaga, sem resolver as situações dramáticas que propõem. E sugere que isso se deve ao modo de produção do autor, que consistia em acessos de hiperatividade criativa em que escrevia dias e noites sem parar. Quando esses acessos eram curtos, o livro adquiria essa estrutura desconjuntada, inconclusa. O que não tem muita importância, pois a obra de Dick é uma espécie de ficcionalização permanente de seu próprio cotidiano, de suas fantasias e alucinações. Mesmo um livro menor, como este, é capaz de inquietar um novo leitor, fasciná-lo, conquistá-lo para sempre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário