domingo, 27 de junho de 2010

2201) Um quadro para os meus olhos (28.3.2010)



Eu estava viajando sozinho, de ônibus, do Rio para São Paulo, e seriam umas dez da manhã. O ônibus ficou preso num engarrafamento na Dutra, ainda nos subúrbios do Rio. 

Eu estava sentado junto a uma janela do lado esquerdo. Olhei para fora. Do lado oposto da rodovia erguiam-se aquelas casa de tijolos sem reboco, aquela proliferação de paredes escuras e irregulares, cortadas por ruas de terra, com poças de lama, porcos, cachorros. As casas quase todas com antenas de TV em cima, e unidas pelo traçado dos varais de roupas. 

Foi então que apareceram duas coisas ao mesmo tempo. Numa casa de dois andares, virada para a rodovia, surgiu na varanda do andar de cima, onde havia uma rede armada e uns vasos de flores, uma moça de blusa amarela e bermudas. A varanda tinha uma grade metálica fina que ia até a cintura dela. Ela andava, limpava poeira com um pano, ajeitava os vasos, passava por baixo da rede quando ia de um lado para o outro e deixava a rede balançando vazia. 

No mesmo instante em que ela apareceu nessa varanda eu vi surgir na rua ao lado (porque essa casa ficava de esquina) um rapazinho com uma camisa vermelha, montado numa bicicleta. Ele deu uma volta na rua, parou a bicicleta em frente a algo que parecia uma birosca, desceu dela e começou a bater bola com outros rapazes diante da calçada (era uma daquelas ruas de terra que têm pequenos trechos calçados de cimento em frente a esta ou aquela casa). 

Começou então um pequeno “pas de deux” cromático entre aquela mancha de amarelo brilhante e aquela outra mancha de vermelho sanguíneo. A mocinha ia para um lado em seu terraço, o garoto ia para outro do lado oposto. Um não enxergava o outro, porque a casa ficava de frente para a estrada e o lugar onde o rapaz estacionara a bicicleta ficava na rua ao lado, uns dez metros mais para dentro. 

Mas aos meus olhos, aqueles dois retalhos de cor se destacavam no meio daquele pano de fundo cor de tijolo sujo. Havia os tijolos de barro vermelho-escuro, unidos pela grade cinzenta da argamassa, e havia em outras casas os tijolos cinza que se usam em outras construções. Quase nenhuma placa de propaganda. As roupas dos varais quase todas brancas ou de tons desbotados. 

E aos meus olhos entrecerrados aqueles dois fragmentos de cores vívidas que se agitavam, como dois passarinhos na mesma gaiola, indo às vezes ambos para a direita e depois retornando para a esquerda. 

Criou-se naquela instante uma harmonia de movimentos aleatórios entre duas pessoas que provavelmente ignoravam não só a presença mas a própria existência uma da outra; um balé browniano em que cada um se movia à revelia do outro, mas cabia aos meus olhos, que captavam tudo, projetar nesses movimentos um senso qualquer de harmonia, uma vontade de ordem, uma decisão de considerar que aquela micro-coincidência vista apenas por mim resultava em algo que valia a pena ver, e que um dia (hoje, depois de tanto tempo) valeria a pena lembrar.








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