quinta-feira, 30 de abril de 2009

1004) Freud explica o Unheimlich (4.6.2006)



Um conceito fundamental da Literatura Fantástica é o que Freud chamou “das Unheimlich”. O equivalente inglês é “the Uncanny”, que meu dicionário Webster traduz assim: “Estranho, misterioso; sinistro; excepcional, incomum (p. ex., ‘uncanny ability’, habilidade excepcional); fantástico, sobrenatural; (dialetal) perigoso”. Mike Ashley (The Encyclopedia of Fantasy, ed. John Clute & John Grant), explica: “Embora usado com freqüência para descrever qualquer coisa estranha ou inusual, o sentido estrito da palavra se refere a algo além do nosso conhecimento, além do nosso alcance, portanto não é necessariamente algo sobrenatural. Tzvetan Todorov, em sua classificação do Fantástico, colocou o “uncanny” no extremo mais racionalizado de sua escala. Contudo, já que ele está fora do nosso entendimento, costuma trazer consigo conotações óbvias de medo, e por isto o termo é frequentemente usado tanto em relação ao Horror quanto ao Sobrenatural.”

Decidi recorrer pessoalmente ao Dr. Freud. Em seu artigo clássico sobre o tema ele diz que o “Unheimlich/Uncanny” não deriva seu terror de alguma coisa externa, estranha ou desconhecida, mas, pelo contrário, de algo estranhamente familiar, que tentamos afastar de nós, mas que resiste aos nossos esforços. Freud lança mão de um pequeno episódio autobiográfico para exprimir essa sensação. Diz ele que certa vez estava visitando pela primeira vez uma cidadezinha italiana, numa tarde quente de verão, quando, caminhando sozinho e a esmo, descobriu que tinha ido parar numa área que ele, pudicamente, evita nomear, mas descreve assim:

“Encontrei-me num bairro sobre cuja natureza eu não poderia ficar em dúvida por muito tempo. Nas janelas das pequenas casas eu via apenas mulheres maquiladas, e apressei o passo para afastar-me daquela rua estreita na próxima esquina. Depois de andar por algum tempo sem pedir instruções, de repente vi-me de volta à mesma ruela, onde minha presença já começava a atrair as atenções. Apressei o passo novamente, somente para descobrir, depois de tomar outro rumo, que estava desembocando no mesmo lugar pela terceira vez. Nesse instante fui invadido por um sentimento que posso apenas denominar de ‘Unheimlich’, e tive um profundo alívio quando me vi de volta à pequena ‘piazza’ por onde havia passado um pouco antes, sem me aventurar em outros passeios de descoberta”.

Agora me digam: tem história mais freudiana do que esta?! Um respeitável médico austríaco visita uma cidade estrangeira, onde ninguém o conhece. Aí sai para passear sozinho. De repente, não mais que de repente, percebe que chegou na Zona. Como diabo o senhor chegou ali, Dr. Freud? Que acaso, ou distração, o levou justamente ao Rói-Couro local? E quando quis sair de lá, por que quis fazê-lo “sem pedir instruções”, e acabou voltando? E por que chamou a isso “passeios de descoberta” (“voyages of discovery”)?! Dr. Freud, Dr. Freud... Conte essa história direito!!

1003) Ainda o WTC (3.6.2006)


(foto: James Nachtwey)

Os Estados Unidos são um lugar úmido e ensolarado onde floresce qualquer semente exótica, principalmente aquelas trazidas por um semeador de más intenções. O país inteiro tem sido uma estufa privilegiada para aquilo que chamamos de “Teorias das Conspirações”, aquelas histórias mirabolantes e paranoicamente plausíveis que nos explicam tudo que existe por trás de tragédias inexplicáveis como a queda de um avião ou de eventos aparentemente anódinos como o bater das asas de uma borboleta.

Num país que disseca o assassinato de Kennedy há mais de 40 anos, o atentado ao World Trade Center em 2001 é um mote que qualquer conspiracionista que se preze sente-se obrigado a ficar glosando até o fim dos tempos. Numa palestra recente em Nova York, um deles afirmou: “Estou aqui para desmontar esse mito ridículo, esse conto-de-fadas absurdo de que aquele atentado foi a obra de dezenove fanáticos, armados com estiletes enviados por um sujeito barbudo que mora no fundo de uma caverna”.

Eu me identifico bastante com algumas dessas teorias (ver “Mistério no World Trade Center”, 2.2.06). Tem muita coisa estranha. Segundo as autoridades, numa rua próxima ao WTC foi encontrado (intacto) o passaporte de um dos terroristas, que estava na cabine do avião no momento do choque. Em matéria de história mal contada por um governo, essa bate todos os recordes. Me lembra uma novela da Globo em que no último capítulo o autor de um assassinato misterioso é descoberto porque a polícia se lembrou de fazer uma nova busca no local do crime, e achou lá a carteira de identidade do assassino, que a deixou cair inadvertidamente durante a fuga!

Nunca um edifício com estrutura de metal desabou por causa de incêndio. Por que motivo naquele dia desabaram três, inclusive o WTC 7, que não foi atingido por aviões? Se o combustível dos aviões queima a 1.800 graus Fahrenheit e o aço derrete a 2.700 graus, como se explica que as torres tenham “derretido” em apenas 56 minutos, como no caso da Torre Sul? Como se encontrou o passaporte de um dos terroristas, e as duas caixas-pretas foram destruídas? E como se explica a intensa negociação de ações da American Airlines e United Airlines, as duas empresas envolvidas, poucos dias antes dos ataques? Quem faz estas perguntas é um cara chamado Webster Tarpley, autor do livro 9/11 Synthetic Terror: Made in USA. Para ele, o 11 de setembro é algo parecido com o ataque de Pearl Harbour em 1941: segundo alguns historiadores, o presidente Roosevelt estava informado de tudo, mas deixou o ataque acontecer para poder declarar guerra ao Japão sem ter que explicar muita coisa.

Sou um homem ocupado, mas se você, caro leitor, quiser aprofundar o assunto, vai encontrar espaços virtuais como “911truth.org,” 911forthetruth.com,” “911truthla.org,” “nakedfor911truth.com,” “911truthemergence.com,” “911citizenswatch.org,” “911research.wtc7.net,” “911review.com”, sei lá o que mais. Não seja o último a ficar sabendo.

1002) O rabo do jumento (2.6.2006)


(Elino e o jumento)

Nos meus estudos autodidatas de Filosofia, me deparo com uma questão insolúvel: como definir o que é Grande Arte e o que não é? Precisamos de critérios universais, como em qualquer definição filosófica que se preze. Mas é possível encontrar critérios estéticos universais para justificar por que razão considero “O rabo do jumento”, do recém-falecido Elino Julião, uma boa música?

Reza a lenda que Elino tinha um jumento que um dia, por descuido seu, invadiu o roçado do vizinho, um tal de Nascimento. Era um sujeito metido a brabo, que em represália puxou a peixeira e cortou o rabo do bicho. Quando Elino protestou, o cara ameaçou: “Cala a boca, senão faço a mesma coisa com você”. Mesmo não tendo rabo, Elino achou mais prudente se calar. Todo mundo nas redondezas ficou chocado ao ver o jumento naquelas condições, perguntou quem foi o autor da maldade, e Elino calado. O vizinho começou a ter remorsos. Um dia foi lá, e propôs a Elino pagar-lhe uma indenização. Aí o compositor saiu-se com a frase memorável: “Eu não quero pagamento, Nascimento. Eu quero é outro rabo pro jumento”.

Um episódio exemplar, até pelo grau de absurdo envolvido na ameaça (“Eu faço o mesmo com você!”) e no pedido final (“Eu quero é outro rabo pro jumento”). Platão e Aristóteles certamente elogiariam sua economia de meios. Tem uma função educativa e revelatória, equivalente à das fábulas animais de Esopo, aqueles episódios alegóricos típicos das pequenas comunidades rurais e pastoris. A canção tem poder de síntese (uma história complexa narrada em poucas linhas). Parece ter brotado espontaneamente (que letrista resiste a esta rima dada de graça pelo Acaso, “jumento/Nascimento”?). Como em toda boa canção, a melodia potencializa a letra. É triste, lamentosa. Em alguns momentos, ergue-se para acompanhar o protesto do autor: “Veja pessoal, que mau elemento! Não sei se o animal é ele ou o jumento!”), mas cada estrofe se conclui retornando ao mesmo refrão, monótono, teimoso, inflexível, mesma letra, mesma melodia: “Eu quero é outro rabo pro jumento”. São três acordes sucessivos, implacáveis (no tom de lá menor, os acordes de fá maior, mi maior com sétima, e lá menor).

Grande Arte? Não sei, mas, por que não? Talvez não seja uma obra-prima da MPB, talvez não seja um dos 50 maiores xotes de todos os tempos, periga não ser nem uma das 10 melhores canções de Elino Julião. Mas, julgada pelos critérios de sua forma e de sua matéria, é uma canção que surpreende pela originalidade (alguém conhece outra sobre o mesmo tema?), agrada pela concisão, faz rir pelo absurdo da situação narrada. Tem verdade social, tem verossimilhança psicológica. O personagem-narrador é um “caba” teimoso, tipo Seu Lunguinha ou Seu Mandury, muito familiar ao público que ouve canções assim. Acham que estou tirando leite de pedra, companheiros? Oxente, faz mais de 50 anos que a crítica tira leite daquela pedra de Carlos Drummond, e ela ainda não secou.

1001) Por que estudar matemática (1.6.2006)



Li na Internet um ensaio com este título assinado por Espen Andersen, que ensina matemática numa universidade da Noruega. Pelo nome, não dá para saber se Espen é um professor ou uma professora, o que não deixa de ser uma maneira adequadamente matemática de considerar um indivíduo. Aliás, a palavra latina “indivíduo” é também uma metáfora matemática: in (negativa) + dividuo (divisão), aquilo que não pode mais ser dividido, a unidade básica. É o mesmo que o grego “átomo”: a (negativa) + tomos (divisão). Espen nos dá alguns conselhos valiosos sobre a importância de entender as coisas matematicamente.

“Estude matemática para poupar tempo na vida universitária”. Vai exigir uma certa quebração-de-cabeça na adolescência, mas uma vez chegado à Universidade você será capaz de em poucos segundos interpretar um gráfico ou uma fórmula, e entender como aquelas coisas se relacionam entre si, enquanto colegas menos preparados levarão vários minutos para saber a que corresponde cada fatia colorida daquela “pizza”. Diz Espen: “A matemática é uma linguagem mais rápida e mais eficaz que as outras linguagens. Quem a domina, trabalha com mais eficiência, e trabalha menos que os demais”.

“Estude matemática porque ela aparecerá cada vez mais no seu futuro”. É bom ir se preparando para viver num mundo em que jornalistas e políticos falarão menos e analisarão mais, em que mecânicos terão que lidar com chips embutidos tanto quanto lidam com chaves inglesas. A matemática e seus processos lógicos nos ajudam a entender tanto o funcionamento de mecanismos domésticos quanto os acontecimentos econômicos e militares do mundo em geral.


“Estude matemática porque ela é criativa”. Muita gente pensa que o pensamento matemático é mecanizado, repetitivo, o contrário do pensamento criativo. Isto é um absurdo. A matemática tem regras; apenas isto. Basta que saibamos a que se referem estas regras, e como funcionam; a partir daí, a criatividade está em saber interpretá-las e aplicá-las, e o céu é o limite. Saber relacionar as grandezas, as formas, os tempos e espaços, as medidas, as variações, as séries e progressões, é um desafio constante para nossa imaginação e inteligência. Basta saber quais são as regras.

“Estude matemática para perder menos dinheiro”. Quando multidões de idiotas entram em “pirâmides” ou em outros esquemas infalíveis para ganhar dinheiro, eles só o fazem porque não entendem patavina de matemática, e são incapazes de enxergar o conto-do-vigário que lhes está sendo aplicado. Se você entende de probabilidades, estatísticas, percentagens, juros, tem em mãos uma arma poderosa para lidar com bancos, Bolsas de Valores, empréstimos, financiamentos, compras a crédito. Pode comparar dois contratos ou duas ofertas bem diferentes e perceber em poucos minutos qual oferece mais vantagens. Saber matemática talvez não torne você rico, mas certamente tornará mais difícil que alguém fique rico às suas custas.

1000) 1.000 (31.5.2006)



Não sei se você estava contando, caro leitor. Eu estava. Este é o artigo número 1.000 que publico aqui nesta coluna no “Jornal da Paraíba”, desde 23 de março de 2003, quando estreei neste espaço com o texto “Palavras que ficam”. Mil artigos quase diários (o jornal não sai nas segundas-feiras), sem ter falhado um dia sequer. Não digo para me gabar, mas para reafirmar um princípio da minha ética literária: se quer ser escritor, escreva todo dia.

Escrever todo dia faz parte do nosso batente, e aqui tiro o chapéu a todos os coleguinhas deste jornal, colunistas ou redatores anônimos, que batem ponto nestas páginas com suas idéias, sua verve, sua arte e ofício. Tin-tin, companheiros! O jornalismo é mais próximo da Literatura Oral do que da Literatura. É uma forma fugaz de permanência, uma paradoxal oralidade impressa, típica de nossa época.

Espero não ter dito muita besteira ao longo deste tempo. Este era o meu maior medo quando fui convidado por Rômulo Azevedo e Luís Carlos de Sousa e passei um ou dois meses negaceando, até ser convencido pela pertinácia e pela diplomacia de Guilherme Lima. Tinha medo de ficar sem assunto, e de me repetir com freqüência. No frigir dos ovos, acho que a coisa está indo bem, até porque quando abro a porta do meu Depósito de Assuntos vejo uma imagem parecida com aquele último plano de Os Caçadores de Arca Perdida. Material não falta.

Aqui escrevo o que me dá na telha, uso o vocabulário que me convém, defendo as idéias que me parecem corretas, falo sério quando me apraz e tiro onda quando tô a fim. Há quem discorde do que digo, mas ninguém interfere no meu texto. Aqui reencontrei amigos de longa data como Sílvio Osias e Láuriston Pinheiro, e aqui acompanho o surgimento de uma nova geração de jornalistas jovens e promissores como Astier Basílio, André Cananéa e o recém-contratado Zé Nêumanne. E estendo este cumprimento e esta saudação aos demais colegas, com quem não tenho o prazer de conviver de perto, pois a verdade é que, graças aos recursos do ciberespaço, moro a 2 mil km de distância e só piso na redação duas ou três vezes por ano.

Espero que o leitor releve esta pausa de hoje na minha discussão dos grandes problemas mundiais (como a arte do palíndromo ou os avanços da robótica) para estes cinco minutos de papo descontraído junto ao bebedouro. Depois de mais de vinte anos morando longe, o “Jornal da Paraíba” me trouxe de volta à Paraíba, onde, como tantos outros que saíram de mundo afora por terem sonhado com um tesouro, acabei descobrindo que meu tesouro estava no lugar de onde parti. Mas, como dizia o poeta, e como cantávamos ao violão tantas vezes nas madrugadas frias de Campina, era “como se ter ido fosse necessário para voltar”. Todos os dias estou de volta, emocionado, porque embora minha cabeça esteja sempre passeando pelas galáxias e eu tenha aspirações secretas de ser eleito Síndico do Universo, é aqui que está o meu coração, sras e srs.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

0999) Duchampianas (30.5.2006)




(Duchamp, foto de Viktor Obsatz)

Em 1918, Marcel Duchamp pegou um cartão postal com a reprodução da “Mona Lisa” e pintou-lhe em cima um bigode e um cavanhaque. O sacrilégio ajudou a sacramentar sua fama de iconoclasta. 

Duchamp já havia introduzido nas artes plásticas o conceito de “ready made”, a obra de arte “já pronta”: um objeto banal que era magicamente transformado em Arte pelo gesto do artista em oferecê-lo (a uma galeria, uma exposição, um museu, um possível comprador) como obra de arte. 

Duchamp fez isto com uma roda de bicicleta afixada a um banquinho, e depois com um urinol de porcelana, aqueles de banheiro público (que geralmente estão cheios de bolas de naftalina, pedras de gelo ou rodelas de limão).

A quantidade de mal-entendidos, ingenuidades e vigarices que estes gestos produziram é grande, e um dos seus críticos mais entusiastas é Affonso Romano de Sant’Anna, numa série de artigos que acompanhei durante anos em “O Globo”, reunidos depois no livro Desconstruindo Duchamp

Eu tenho uma atitude contraditória diante disto. Por um lado, admiro a originalidade e a ousadia do pensamento de Duchamp. Por outro, acho que sua influência (como a de tantos artistas desconcertantes, surpreendentes) acabou fazendo mais mal do que bem.

Os gestos de Duchamp só têm valor porque ninguém tinha pensado naquilo antes. São o que alguns teóricos chamam de “gestos, ou atos, fundadores”. O seu bigode na Mona Lisa provocou escândalo, irritação, menosprezo; depois, milhares de páginas de discussões sobre o que é e o que não é arte, sobre os conceitos de paródia, desconstrução, comentário estético, sacralidade da obra, metalinguagem, o escambau. Podemos ser contra, como Affonso Romano, mas eu, pelo menos, me sinto na obrigação de reconhecer que aquele gesto teve originalidade, e colocou um problema novo.

Mas, o que seria das artes plásticas se os artistas jovens tomassem isso como um novo gênero, chamado “Bigodes em Rostos Femininos”? E fôssemos condenados a comparecer a vernissages onde veríamos apenas reproduções de retratos femininos, só que com a vigorosa adição de bigodes de todos os formatos? 

A repetição de gestos fundadores é um cacoete infelizmente inevitável na Arte. Edgar Allan Poe escreveu dois ou três contos em que um sujeito decifra um crime misterioso usando apenas seus poderes de observação e de dedução – e o romance detetivesco aí está, repetindo “ad infinitum” esse seu gesto fundador. 

A favor do romance policial deve-se reconhecer a imensa originalidade das variantes imaginadas pelos seus cultivadores, e alguém menos mal-humorado do que eu talvez venha a dizer o mesmo da Arte Conceitual de hoje. 

Duchamp, que era um grande gozador, gostava de espalhar cascas-de-banana conceituais diante dos marchands e dos críticos. Hoje, seus seguidores espalham cascas de laranja, de abacaxi, de maçã... Falta alguém dizer que não é a casca, pessoal. É o “resultado fundador” do gesto, e isto só ocorre na primeira vez.





0998) Árido Movie (28.5.2006)



O filme de Lírio Ferreira, que recentemente ganhou o prêmio principal do Festival de Cinema do Recife, é uma porrada. É o filme mais pernambucano que eu já vi, porque nele estão superpostos e entrelaçados vários Pernambucos, contraditórios e conflitantes, mas que pela força das coisas são forçados a coexistir e comunicar-se. É um filme nordestino que surpreende a chamada “platéia do Sul”, como já ocorrera com o filme anterior do diretor, O Baile Perfumado (em parceria com Paulo Caldas). É um Nordeste onde os coronéis plantam maconha e os jagunços andam de moto. Em vez da unanimidade da caatinga, vemos um vale de formações rochosas que parecem projetadas por Salvador Dali. E os beatos messiânicos prometem uma vida melhor em Júpiter ou Saturno.

O filme é uma reescritura do Nordeste como região geradora de mitos. No Baile Perfumado, o diretor optara por mostrar um Nordeste úmido, verde, de beira de rio e borda de desfiladeiro, em vez do Nordeste ressequido e desértico que as platéias de cinema se acostumaram a esperar; e aquele filme era menos sobre o Cangaço do que sobre o Filme de Cangaço. Em Árido Movie, o roteiro costura a relação, óbvia para quem é da região, entre decadência rural, tráfico de drogas, messianismo com discurso apocalíptico, extinção de tribos indígenas, música pop-brega e a lei das armas de fogo.

E a água, a imagem básica que perpassa toda a história. Desde a indústria de peixes a que a mãe de Jonas vai se dedicar no Recife até a água benta e milagrosa do profeta, que em termos de placebo para as dores da realidade não se distingue muito da onipresente maconha. São os carros-pipa agilizados por políticos, e as latas dágua das incessantes idas e vindas das mulheres sertanejas; são as cavernas míticas onde só se chega de jipe. A água é moeda de troca, é fonte de poder, é símbolo religioso, e é também onipresente, mesmo quando ninguém a vê.

Numa cena do filme, José Dumont (numa de suas melhores atuações) mostra uma montanha que parece um elefante com metade do corpo submerso na água. E depois que ele nos mostra esquecemos (se quisermos) que aquilo é terra, é pedra, é mato: só vemos o elefante. Pois a montanha é o Nordeste; e o elefante, ou os muitos bichos que podemos ver nela, são os filmes sobre o Nordeste. O que Nelson Pereira dos Santos viu em Vidas Secas e o que Glauber viu em Deus e o Diabo na terra do Sol continua visível. Não desmente nem é desmentido pelo que é visto em Árido Movie. Mas, sobre os alicerces daquele Nordeste clássico e esquerdista, em preto-e-branco, de quarenta anos atrás, está sendo construído outro, mais cínico, mais realista, mais confrontador, mais eletrificado. O cinema que está sendo feito por Lírio Ferreira, Marcelo Gomes, Paulo Caldas, Cláudio Assis e outros ajuda a entender o que está acontecendo hoje no Nordeste, e principalmente a entender isso que vai acontecer, inevitavelmente, no futuro próximo.

0997) Os livros de História (27.5.2006)




Num livro de Kurt Vonnegut Jr. um personagem faz uma viagem no Tempo e chega ao futuro remoto. As pessoas lhe perguntam de que época ele vem, mas ele não consegue explicar o que diabo é “século 20”. Fala “depois da II Guerra Mundial”, e ninguém sabe o que foi. Diz que é dos Estados Unidos, e o pessoal nunca ouviu falar. 

Curiosos, levam-no para uma Biblioteca onde ele tem acesso a uma enciclopédia histórica, e manda pesquisar o termo “Era Cristã”. Aí o computador exibe duas linhas de texto, dizendo: “Após o nascimento do profeta Jesus Cristo, a Humanidade passou por um período de adaptação que durou um milhão de anos”. E isto é tudo.

Vonnegut é um dos escritores mais sarcásticos e descrentes de nossa época, e o pior é que ele sempre parece estar certo. O passar dos anos vai reduzindo nossos relatos sobre o que aconteceu no Brasil e no mundo. 

Às vezes eu pego um livro de História recente e me deparo com 30 ou 40 páginas descrevendo as disputas internas de um Partido para a composição e aprovação de uma chapa eleitoral. Telefonemas, cartas, reuniões madrugada adentro, brigas pessoais, traições, conchavos de última hora... Parece que não acaba nunca. 

Me consolo pensando que com o passar dos anos aquilo vai aparecer nos livros assim; “Em 1900-e-tantos, Fulano de Tal foi eleito presidente da República e governou dois mandatos seguidos, quando então foi eleito Beltrano”.

Nos livros de História que nossos filhos estudam, até os nomes próprios desapareceram, o que vemos é uma espécie de Abstracionismo Social, onde só existem formas geométricas básicas. “Com o declínio do poder feudal e as revoltas dos servos, o regime monárquico aliou-se estrategicamente à burguesia nascente, promulgando medidas que eram de seu interesse, como o conceito de moeda única e a supressão do pagamento de impostos intra-territoriais”.

Vista a tal distância, a História é uma espécie de balé de formas, uma animação de Hans Donner. “Poder feudal” é uma porção de circulozinhos multicores justapostos, que vão empalidecendo e minguando. Os “servos” são fungos esverdeados que aderem às suas bordas e os corroem pouco a pouco. O “regime monárquico” é uma estrela central de onde se irradiam linhas douradas em todas as direções. E a “burguesia nascente” é uma infinidade de minúsculos canais que carreiam tinta dos círculos para a estrela, e que, no próximo episódio da série, acabarão sugando para dentro de si a substância cromática de que a própria estrela se compõe.

Tiro meu chapéu para os historiadores que são capazes desta enorme abstração, mas não posso evitar uma certa angústia ao pensar no quanto é irrelevante, para os livros de História de 2050, tudo que nos aperreia o juízo quando assistimos o Jornal Nacional. 

Nos parágrafos iniciais de A insustentável leveza do ser, Milan Kundera cita uma guerra na África em que “350 mil pessoas morreram vítimas de sofrimentos atrozes”. E não ficou o retrato de uma sequer.








0996) O código dos albinos (26.5.2006)



Uma minoria pela qual ninguém se interessa são os albinos. Os negros, índios, homossexuais, deficientes físicos, crianças super-dotadas... todas estas minorias contam com a simpatia implícita das legislaturas e dos meios de comunicação. Contra os albinos, contudo, parece existir um conluio difamatório, ou na melhor das hipóteses uma conspiração de silêncio. Isto é curioso, por ser uma espécie de preconceito de cor às avessas. Não sou albino, mas, como branquelo convicto, já fui muitas vezes vítima de discriminação em lugares públicos – como a praia, por exemplo. Se os negros se queixam de preconceito, os muito brancos também têm seus motivos para insatisfação. Precisamos acabar com a ditadura cultural dos bronzeados.

Enquanto isto não acontece, contam os albinos com a Organização Nacional pelo Albinismo e Hipopigmentação (N.O.A.H.), entidade que defende os interesses dessa turma, e que foi à imprensa há pouco para protestar contra o filme O Código Da Vinci, onde um dos vilões é um monge albino que assassina pessoas a mando da ordem religiosa a que pertence. Michael McGowan, diretor da NOAH, disse que este é o 68o. filme, desde 1960, a mostrar um albino num papel negativo. Como exemplos recentes ele citou o personagem de Bosie em Cold Mountain e os gêmeos assassinos de Matrix Reloaded. Ao mesmo tempo, ironizou a desinformação dos responsáveis por filmes como A Firma e Letal Weapon, onde são mostrados albinos (que têm uma notória deficiência visual) como atiradores de elite. McGowan afirmou que, nas duas últimas décadas, 2004 foi o único ano em que não apareceu nenhum filme com um personagem albino apresentado sob uma ótica negativa.

Os albinos parecem ameaçadores, talvez, porque seu desconforto à luz tem algo de noturno e vampiresco. Para os leitores de ficção científica não há como não lembrar dos Morlocks, os mutantes subterrâneos de H. G. Wells em A Máquina do Tempo. Seres que o Viajante do Tempo, em seu primeiro encontro, descreve como “aquela Coisa desbotada, obscena, noturna”, produto de milênios vividos nas profundezas da Terra.

Para nós, nordestinos, tudo isto parece esquisito, porque os albinos mais conhecidos que temos são aquela dupla de músicos que gênio que recreiam nossos ouvidos e nossa imaginação há décadas: o paraibano Sivuca e o alagoano Hermeto Paschoal. Aos nossos olhos, nada têm de ameaçadores. Suas barbas alvíssimas e seus rostos rosados lhes dão a aparência bonachona de um Papai Noel à paisana. O sentimento que sua visão nos desperta é de instintiva simpatia, mesclada à curiosidade que sentimos por quem foge um pouco à medianidade. Ambos guardam um ar de mistério por trás daquelas lentes meio escuras, meio fundo-de-garrafa. Um mistério de quem tem algo de alquimista, bruxo, duende, mas um mistério que irradia luz, que vem do lado dos mistérios criativos, de onde brotam a vida e a beleza.

0995) A lista de Parreira (25.5.2006)



Saiu a lista de convocados para a Copa do Mundo! Nos sismógrafos dos botequins da Pátria, as agulhas deram uma tremidinha besta, e nada mais. Há anos não vejo uma lista tão pouco polêmica. A safra é boa, e o trabalho de Parreira e Zagalo está se impondo com um futebol vistoso e eficiente. Podem ser lamentadas algumas ausências: o ótimo goleiro Marcos; o lateral Júnior, que fez uma boa Copa em 2002 e está bem no São Paulo; e há quem sinta saudade de Roque Júnior. Mesmo assim, o grupo é excelente. Se vai ganhar ou não (ou se vai passar da primeira fase ou não) são outros quinhentos, os quinhentos que fazem o fascínio do futebol.

Fiquei contente com a convocação de dois jogadores que admiro há muito tempo: Juan e Juninho Pernambucano. Os dois não têm muito lobby, não são bons de marketing, e não vivem nesse culto desenfreado à mídia. Talvez acabem ficando meio obscurecidos por jogadores mais badalativos e sem um décimo do talento deles. Nos mais de dez anos em que vi Juan jogar no Flamengo não o vi dar mais do que meia dúzia de entrevistas, sempre lacônicas. É um zagueiro clássico, com suficiente força para bloquear um atacante maior do que ele, e com suficiente domínio de bola para sair jogando de cabeça erguida. E ótimo cabeceador, tanto para rebater na própria área como para fazer gols na área oposta.

Juninho Pernambucano era jogador do Sport, mas só vim a conhecê-lo com a camisa do Vasco, time pelo qual não morro de amores. Mas já assisti na TV muito jogo Vasco x América ou Vasco x Bangu para vê-lo distribuir jogo com clarividência, matar a bola com maestria, e bater faltas como pouca gente bate no mundo. Juninho apareceu na imprensa muito mais do que Juan, mas por uma causa nobre, quando encarou e bateu de frente com o Poderoso Chefão vascaíno, Eurico Miranda. Acossado e ameaçado por todos os lados, Juninho pagou pra ver e conseguiu desligar-se do Vasco (era uma confusão em torno de venda de passe, percentagens, etc.) e agora, na França, ajudou o Lyon a ser pentacampeão francês.

São jogadores talentosos, sérios, “na deles”. Isso não quer dizer que eu não goste de jogadores brincalhões e extrovertidos como Ronaldinho Gaúcho, Robinho ou Ronaldo. Mas é que hoje em dia inventaram esse tal conceito de “jogador com personalidade”. Para a imprensa que cultiva este slogan, jogador com personalidade é aquele que pinta o cabelo de azul, e passa o jogo inteiro insultando o juiz com o dedo em riste e tirando lascas das canelas dos adversários. O oposto simétrico deste é o jogador cheio de santimônias, que se diz evangélico, agradece pessoalmente a Jesus Cristo cada gol que marca, mas vive fazendo armação para derrubar o técnico.

Juan e Juninho (e Ronaldo, Ronaldinho, e quase todos os outros) são o que o nosso futebol tem de melhor para oferecer. Tomara que ganhem a Copa. E se tiverem que perdê-la, que a percam para alguma seleção que até hoje não ganhou, como Japão ou Angola.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

0994) Dylan on the road (24.5.2006)



Reza a lenda que numa noite de 1966 Bob Dylan vinha pilotando sua moto por entre as colinas de Woodstock, onde tinha sua casa de campo. Um pouco atrás dele vinha sua mulher, Sara, ao volante de um dos automóveis do casal. A estrada estava molhada de chuva, a moto derrapou, e Dylan foi projetado de encontro ao tronco de uma árvore. Sara freou, trouxe o carro para o acostamento, e correu para socorrê-lo. Ao abaixar-se sobre seu corpo, percebeu, pelo ângulo, que ele tinha quebrado o pescoço, e não mais respirava. O maior gênio da música folk e do rock-and-roll norte-americano dos anos 1960 estava morto.

Ou melhor – não é bem assim. O que muita gente não sabe é que na fração de segundo em que seu corpo se chocou com a árvore, Dylan viu-se transportado para um local estranho, muito parecido com os bares enfumaçados do Village que poucos anos atrás eram o único espaço onde lhe permitiam cantar com sua voz roufenha as canções folclóricas que ele, hereticamente, escrevia por conta própria. O bar estava vazio, cadeiras empilhadas sobre as mesas, mas sentado num banquinho no palco estava um homem com colete preto bordado a ouro, chapéu de cowboy, um rosto enrugado, e um bigodinho fino que lembrava o do ator Vincent Price. “Estou morto?” perguntou Dylan. “Por enquanto não”, disse o desconhecido. “Você está num ponto de divergência, onde tem a chance de escolher seu futuro. Como gostaria de estar, digamos, aos 65 anos?” “On the road,” disse ele sem pestanejar. “Cantando toda noite, para pequenas platéias, sem nunca repetir o mesmo show”. O desconhecido sorriu: “Concedido”. No bosque de Woodstock, o cantor mexeu-se, resmungou algo indistinto, e sua esposa deu um suspiro de alívio.

Hoje, dia em que completa 65 anos, Dylan está com a vida que pediu a Deus. Acompanhado há anos pelos mesmos músicos, ele realiza o que a imprensa batizou “The Never Ending Tour”, a Turnê Sem Fim. Viaja de ônibus, de cidade em cidade, e canta às vezes em cinco cidades diferentes numa semana. Agora em maio ele deu uma parada, mas em junho vai à Europa. Dia 24 em Kilkenny, dia 25 em Cork, dia 27 em Cardiff, dia 28 em Bournemouth, dia 30 em Roskilde, dia 2 de julho em Gelsenkirchen, dia 3 em Lille, dia 4 em Clermont, dia 6 em Cap Roig, dia 7 em Valência, dia 8 em Madrid, dia 9 em Valladolid... Se quiser ver a agenda completa, vá no saite Expecting Rain (http://www.expectingrain.com/), onde me mantenho informado.

Aos 65 anos, Dylan nunca repete o mesmo show. Os músicos sabem seu repertório de cor, de modo que se meia hora antes de subir ao palco ele avisar que vai cantar antiguidades como “Chimes of Freedom” ou “Love Minus Zero (No Limit)”, o pessoal acompanha sem precisar de ensaio. Quanto aos grandes sucessos como “Mr. Tambourine Man”, “All along the watchtower” ou “Just Like a Woman”, ele tem o costume de mudar o tom em cima da hora, para evitar que a banda ligue o piloto automático. Happy birthday, Mr. Bob.

0993) Elino Julião (23.5.2006)



Um domingo simpático de sol e céu azul no Rio de Janeiro. Acordei, tomei café folheando o jornal, liguei o computador para checar meus emails, e na lista de assuntos a primeira frase que me chamou a atenção foi: “Morreu Elino Julião”. Foi o quanto bastou para o dia adquirir a tonalidade tenebrosa e lúgubre da Visão de Toledo de El Greco.

Lembrei os anos que passei acompanhando o trabalho de Fernando Moura e Antonio Vicente para pesquisar e escrever Jackson do Pandeiro – o Rei do Ritmo (Editora 34, SP, 2001). O esforço para localizar documentos, checar versões conflitantes dos fatos. O trabalho insano de rastrear e entrevistar pessoas idosas, de fala trôpega e memória instável. Imagino que quando eu estiver com 80 anos, pesquisadores virão bater à minha porta. “O sr. ouvia Elino Julião? Viu algum show dele?” Vi, sim. Vi pela última vez o grande forrozeiro num memorável show no São João de Campina, creio que em 1999. Vi à distância, tomando cerveja com ribaçã numa barraca, e acompanhando pelo telão Elino encapetado, lá e cá no palco, com um paletó amarelo visível a dez quilômetros de distância. Não vi de perto, amigos, porque a multidão não permitiu. Era gente demais.

Bons tempos, em que os principais shows do São João da Paraíba eram de forrozeiros, e não de cantores românticos paulistas com chapéu de cowboy. Elino Julião desfiou seus grandes sucessos: “Na Tamarineira” (“Só por te amar, tô dessa maneira, e na Tamarineira, sei que vou parar...”), “O Rabo do Jumento” (“Você disse que é brabo, Nascimento... Você cortou o rabo do jumento...”), “Forró da Coréia” (“Só tem véia, só tem véia, no forró da Coréia...”), “O Burro” (“Vamos dar valor a quem trabalha, vamos dar valor a quem dá murro... O burro é quem merece uma medalha, o burro é quem trabalha, o burro é quem dá murro”)..., “Puxando fogo” (“Pra ter animação na festa, São João só presta puxando fogo”). Muitas. A lista não cabe aqui.

Elino (que ia fazer 70 anos em novembro) era um caboclo encarcado, do olho aceso, cheio de eletricidade, e com uma voz extensa de quem aprendeu a cantar sem microfone. Seus forrós tinham a vivacidade alegre das canções feitas em cima de boas idéias. Nada a ver com tanto forró que se faz por aí – uma justaposição, em linha de montagem, de clichês de letra, clichês de melodia e clichês de arranjo. Não vou ficar aqui lamentando a desatenção da imprensa, porque eu mesmo tenho esta coluna há três anos e nunca falei dele. Achei que não precisava. Eu é que ficaria orgulhoso se um cara como ele falasse um dia de mim, ou, melhor ainda, gravasse um forró meu (que nunca mandei, por timidez incurável). Daqui a 30 anos, jornalistas jovens baterão à minha porta. “Seu Braulio, o que era esse tal de forró?” E eu direi: “Rapaz, era a coisa melhor do mundo, e foi um produto de exportação nosso, antes que alguém começasse a nos vender a idéia de que a música dos cowboys ricos de São Paulo era superior à nossa”.

0992) Chindogu (21.5.2006)


Em japonês, “chindogu” significa “objeto estranho”, mas talvez a melhor palavra para traduzi-lo seja o neologismo criado por Paulo Leminski: “inutensílio”. Ao que se diz, o conceito foi criado pelo escritor e inventor Kenji Kawakami num livro publicado na década de 1990 sob o título 101 Invenções Inúteis Japonesas: A Arte do Chindogu. Kawakami imagina (e fabrica) acessórios do cotidiano que são práticos, lógicos, e ao mesmo tempo absurdos, incapazes de ser utilizados. Como por exemplo o seu chapéu para alérgicos, que vem com um rolo da papel higiênico montado no topo. Para sujeitos com rinite, como eu, que às vezes passam o dia inteiro espirrando e assoando o nariz, pode haver algo mais providencial? E menos utilizável?

Tem o protetor contra manchas de molho, uma espécie de “babador” circular em volta do rosto inteiro, que ninguém teria coragem de usar nem em casa, quanto mais num restaurante. Tem a Roupa de Banho Completa, uma espécie de bolha de plástico para pessoas com alergia a água. Tem o Esfregão Para Bebês: enquanto se arrastam de quatro, eles dão polimento na cera do assoalho. Para pouparmos tempo, leitor, vá no saite: http://www.chindogu.com/, ou leia esta matéria: http://www.japaninc.net/article.php?articleID=762.

A primeira coisa que me veio à memória ao ver os chindogus de Kawakami foram as invenções abstrusas do pessoal da revista Mad, como os parangolés mecânicos de Al Jaffee ou as armas dos espiões (“Spy vs. Spy”) de Alex Prohias. Há também as engenhocas de Rube Goldberg, já comentadas aqui (“A economia Rube Goldberg”, 10.12.2003), e as invenções malucas do marselhês Jacques Carelman, cujo Catálogo de Objetos Inviáveis foi editado em 1976 pela Nova Fronteira...

Vou parar a enumeração, pois este jornal inteiro não teria espaço. Estes, caro leitor, são indivíduos que vivem num mundo mais belo e mais livre do que o nosso. Pressionados por uma cultura onde tudo tem que ter valor (seja de uso ou de troca), onde tudo responde ao Mercado, onde tudo tem utilidade e função, estes discretos cronópios correm todos para o prato oposto da balança, e dedicam-se a produzir inutensílios, desaparelhos, futilidades domésticas.

É um gesto filosófico e um gesto político. Com a palavra Kawakami: “Um chindogu é um objeto inútil, mas nem todo objeto inútil é um chindogu” E ele enumera características para que algo seja um chindogu: “Um chindogu não é para ser usado de verdade. Um chindogu tem que ser algo que possa ser materialmente fabricado. Cada chindogu traz em si o espírito da anarquia. Um chindogu tem que ser um objeto simples, da vida cotidiana. Um chindogu não pode ser vendido. Um chindogu não pode ser criado por razões apenas humorísticas. Um chindogu não pode servir para propaganda. Um chindogu não deve servir para piadas obscenas ou vulgares. Um chindogu não pode ser patenteado. Um chindogu não pode aderir a preconceitos.” Pois é. Quem foi que disse que o mundo estava perdido?

0991) O azinhavre da alma (20.5.2006)




Certas pessoas parecem ter uma espécie de azinhavre na alma, uma gastura, um amargor entranhado cuja existência talvez nem elas mesmas percebam. 

Esse amargor não é a Maldade, pois algumas delas são pessoas escrupulosamente éticas, corretas, impecáveis. Mesmo assim, quando nos relacionamos com elas acabamos sentindo, cedo ou tarde, aquela acidez. 

Por mais que a gente tente dissipar com brincadeiras, amenidades e água mineral, acaba absorvendo aquele mal-estar, aquela sensação de argueiro invisível grudado no olho.

Por algum tempo pensei que isso fosse frustração, porque conheci gente que nunca fez outra coisa senão dar com a cara na porta, chutar na trave. É de se esperar que com o passar dos anos vá se acumulando dentro delas aquele “gosto amargo de infelizes”, aquela saudade que se sente após um futuro bom que foi ultrapassado sem ter existido. 

Mas, também não é só isso. Também conheço gente bem-sucedida, escanchada em cima de um Everest de triunfos, gente que se refestela nas próprias memórias como um Tio Patinhas nadando em seu tanque de moedas. Têm todos os motivos para a generosidade e a compaixão. Vistas de longe parecem ter a alma coberta de açúcar e mel-de-engenho, mas quando conseguimos ter um vislumbre dessa alma, recuamos. Ali está o terrível vazamento de vinhoto, brotando às ocultas de alguma tubulação defeituosa da usina.

Riem muito, mas em geral é às custas de alguém. Elogiam, mas sempre com alguma ressalva cruel. Fazem favores, mas sempre com aquela pose guardada de quem pretende cobrá-los na primeira oportunidade. Catalogam as pessoas pelos defeitos ou problemas que elas têm: “Fulano? Acho que sei quem é, não é aquele que é brigado com o pai?...” 

Parecem viver numa busca silente e ansiosa por coisas que não dão certo, e observam o comportamento das outras pessoas como quem examina seus ombros em busca de sinais de caspa.

Quando lhes fazemos uma pergunta um pouco mais pessoal, quando queremos saber algo mais sobre elas mesmas, dão-nos dois tipos de resposta. 

Pode ser um auto-elogio, daqueles tão pré-moldados e definitivos que não nos deixam saída senão concordar com um “hum-hum” qualquer e tentar mudar de assunto; ou pode ser uma auto-depreciação azeda, com tintas de melodrama, quase que nos obrigando a mentir: “Que é isso, eu acho que você tá super-bem...” 

O mundo tem muita gente assim. Ou talvez seja mais honesto dizer que todo mundo tem momentos assim, fases da vida em que fica assim.

Reze para fugir disso, caro colega; porque eu rezo tanto! O presente texto é uma dessas orações, uma oraçãozinha agnóstica que dirijo a mim mesmo ou a alguma Potestade bondosa que por acaso esteja à escuta. 

O velho Augusto Matraga, ao limpar-se de seu próprio azinhavre, dizia: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso”. Se você não crê em Jesus, colega, redija sua própria prece. Mas não deixe essa coisa tomar conta.






0990) As fantasias do passado (19.5.2006)




Na adolescência fui um bom leitor de romances históricos, embora confesse envergonhado que não li clássicos como Sir Walter Scott. Li seu maior seguidor, Conan Doyle, e sempre acreditei que aquela Idade Média ou aquela Era Napoleônica descrita em seus livros era – o termo é inevitável – realista. 

O mesmo ocorria com os romances de capa-e-espada de Michel Zevaco, que, simpatizante do socialismo, criava “vastos painéis sociais” onde ações individuais e forças coletivas se entrechocavam para criar a História. 

Qual não era minha surpresa quando, anos depois, estudando história da França, eu reencontrava todos aqueles personagens que imaginava terem sido inventados por Zevaco.

Eu poderia prosseguir falando em Alexandre Dumas, Tolstoi, Maurice Druon, e tantos outros, mas passemos adiante. Um romance histórico é uma obra realista? Em princípio, sim, se o autor procurar informar-se o melhor possível sobre a época escolhida. Não basta ambientar uma história no Egito dos faraós e depois contar tudo como se acontecesse na esquina daqui de casa. 

É preciso conhecer o espírito da época, a mentalidade do povo, quais as idéias que predominavam, os fatos históricos mais importantes, e, acima, de tudo, aquilo que hoje chamamos de “pequena História”: a vida cotidiana, os hábitos, os meios de transporte, a alimentação... 

Como se iluminavam as casas à noite? Quem saía na chuva, usava o quê? Como eram as saudações entre pessoas de diferente idade, diferente classe social? Como eram dispostos os aposentos de uma casa? Quais as moedas usadas, quais as armas, quais os calçados, quais os remédios? Com que brincavam as crianças? E assim por diante.

Por mais que a pesquisa seja detalhada (e, tiremos o chapéu, os romancistas históricos de hoje fazem bem seu dever de casa) todo o resto é fantasia. Queiramos ou não, não há como sabermos como eram as pessoas daquele tempo. Imaginar o passado remoto é tão especulativo como imaginar o futuro, como faz a ficção científica. 

Ariano Suassuna costuma contar um episódio divertido de uma peça de teatro que viu certa vez num circo. A história se passava na Idade Média e de repente um personagem dizia para o outro: “Nós, que somos cavaleiros medievais...” E ele pergunta: “Oxente, o cara já sabia que era medieval?”

Este pequeno deslize é típico do romance histórico, mesmo o de melhor qualidade literária. Queira ou não, o autor trata seus personagens do ponto de vista do século 21, e às vezes dá um escorregão como este. 

Pensar como eram as pessoas no Brasil Holandês, ou como eram na Espanha muçulmana ou em Roma antiga, é um exercício de fantasia. Estes livros têm uma superfície realista, mas no fundo são obras de imaginação, tanto quanto O Senhor dos Anéis. Se o autor os escreve como se fosse um catálogo de fatos, corre o risco de ser chato. Se deixa a imaginação voar livre, seus gregos ou romanos ficarão cada vez mais parecidos com ele próprio.






0989) A cidade imaginária (18.5.2006)



Um tipo de literatura que tem crescido cada vez mais nas últimas décadas é a Literatura Descritiva, em contraposição à Literatura Narrativa. Acho que estes dois termos são claros o bastante, e expressam duas funções básicas da mente humana. A grande tradição romanesca do século 19 parece ter conseguido o equilíbrio ideal entre as duas. Dali em diante, parece que o negócio desandou, e o “descritivismo” está se tornando uma verdadeira mania. Um exemplo típico disto é a obra de J. R. R. Tolkien, que batizei de “ficção catalográfica”: uma enorme descrição de um mundo imaginário, com sua astronomia, sua geologia, sua geografia e corografia, suas línguas e dialetos, suas raças humanas, semi-humanas e animais, suas dinastias de reis e imperadores, suas intermináveis listas de batalhas e conquistas. Desse mapa descritivo e monumental, Tolkien ainda conseguiu extrair algumas Narrativas que fizeram o seu sucesso, como O Senhor dos Anéis.

Certos autores (penso em Georges Perec) acham que às vezes inventar um ambiente é um processo que se basta a si mesmo, e que não é preciso contar histórias para justificá-lo. É o caso da literatura utópica, desde Platão a Thomas Morus. Um exemplo recente é o da cidade imaginária de Urville, criada por Gilles Tréhin, um rapaz que vive na cidade francesa de Cagnes-sur-Mer. Gilles é um autista, ou seja, um daqueles indivíduos que parecem viver fechados em si mesmos, extremamente concentrados em sua própria atividade mental e com pouca ou nenhuma vontade de se relacionar com o mundo exterior. Claro que existem gradações em casos assim, e Gilles é “extrovertido” o bastante para escrever e falar sobre si mesmo e sobre a cidade que inventou.

A princípio, era uma cidade que ele pretendia reconstruir inteiramente com peças de Lego, numa enorme maquete. Depois, chegou à conclusão de que era mais simples e mais rico produzir um conjunto de textos e desenhos. A cidade foi crescendo, e não parou mais de crescer. O processo todo começou por volta de 1984, e até agora Gilles produziu cerca de 250 desenhos muito detalhados, todos eles derivados de cinco plantas básicas que incluem todos os setores da cidade. Quem quiser dar uma olhada nesta ciclópica aventura, vá aqui: http://urville.com/.

A empreitada de Gilles mistura arquitetura, urbanismo e literatura, porque ele escreve a história da cidade, sua evolução, os fatos importantes que aconteceram ao longo de sua história. É como se um jogo tipo Sim City fosse criado no papel por um único indivíduo. O fato de Gilles ser autista, ou portador da Síndrome de Asperger, parece indicar que esta síndrome tem às vezes como conseqüência a hipertrofia de uma função mental em detrimento de outras. No presente caso, Gilles é um “descritor” de mão-cheia. A excepcionalidade de sua missão não deve obscurecer o fato de que isto que ele faz hoje está se encaminhando para ser no futuro um gênero artístico autônomo, como o romance histórico ou o relato utópico.

0988) O crime e as vidraças quebradas (17.5.2006)



A polícia norte-americana tem adotado no combate ao crime aquilo que os especialistas chamam de “broken window theory”, a teoria das vidraças quebradas. Segundo ela, a maneira mais eficaz de prevenir o surgimento de crimes graves é reprimir os pequenos, antes que eles evoluam para dar lugar aos grandes. Suponhamos um bairro onde as casas fechadas ou prédios abandonados começam a ter as vidraças quebradas, a ser invadidos pelo mato, a ter suas paredes cobertas de graffiti. Quem passa pela rua vê grupos de mendigos rodeados de caixas de papelão, praticamente habitando aquele espaço. Por todo lado há sinais de abandono e desordem: cantos de parede transformados em mictório, lixo amontoado e não recolhido, postes com lâmpadas quebradas... Todos estes sinais de desorganização e descaso (diz a teoria) são o ambiente ideal para a ocorrência de crimes mais graves como assaltos, tiroteios, consumo de drogas a céu aberto, e assim por diante.

Dizem os defensores da teoria: “Nossas percepções afetam a realidade. A aparência de desordem acaba produzindo um grau de desordem equivalente. Sinais visíveis de que existe ausência de controle social num bairro podem transformar esse bairro num terreno fértil para o crescimento do crime. Uma vidraça que fica quebrada durante muito tempo é um sinal de que ninguém está ligando, e de que se alguém quebrar outras vidraças vai ficar tudo por isso mesmo”. Existe um longo debate a este respeito; uma das críticas principais a esta teoria é de que ela conduz a um aperto policial cada vez mais forte nos bairros mais pobres, onde estas pequenas transgressões têm mais probabilidade de aparecer.

Esta questão tem dois lados, e um exemplo que me parece útil é o caso das pichações de muros nas grandes cidades. Não me refiro aos graffiti criativos, sejam verbais ou visuais; me refiro à mania narcisista de rabiscar compulsivamente aqueles monogramas ilegíveis em qualquer superfície indefesa. Quem faz isto são dois grupos: rapazes pobres, sem oportunidades na vida, que se sentem excluídos da cidade e querem revidar incomodando-a; e rapazes de classe média que se julgam donos da cidade e portanto autorizados para “zoar” impunemente, porque se houver qualquer problema papai vai buscá-los na Delegacia e dar um esbregue no Delegado (ver “Pichadores”, 29.4.2003).

Minha geração tem uma parcela de culpa nisto, porque, diante do totalitarismo de uma ditadura e das hipocrisias dos políticos, das igrejas e das escolas, glorificávamos às cegas qualquer tipo de transgressão, de desobediência, de marginalidade, de desrespeito, de “ser do contra”. “Ser do contra” acabou se transformando num valor em si, mas em vez de conduzir à Revolução Socialista conduziu a isto: um capitalismo triunfante e suicida em que rapazes pobres quebram vidraças porque nunca poderão morar num prédio como aquele, e rapazes ricos quebram vidraças porque se for preciso papai vai lá e paga.

0987) As brumas da História (16.5.2006)




(R. A. Lafferty)

Num artigo sobre Roma Antiga no número de fevereiro da The New York Review of Science Fiction, Darrell Schweitzer faz alguns comentários sagazes a respeito das mudanças nos conceitos de História e de relato histórico, ao longo dos séculos. 

Ele está comentando o livro The Fall of Rome, de R. A. Lafferty, escritor erudito e inclassificável que tornou-se famoso no mundo da ficção científica produzindo dezenas de livros esquisitos e memoráveis, que não se pareciam com nada escrito por quem quer que fosse. 

Era um dos “oddball stylists” que comentei nesta coluna (“Os estilistas excêntricos”, 30.11.05). Lafferty escreveu uma história da queda de Roma repleta de diálogos improváveis, aparições de fantasmas, encontros entre personagens cuja existência nenhum historiador registra...

Diz Schweitzer que no período histórico sobre o qual Lafferty está escrevendo, ou seja, o final do século IV d.C., 

“...a História era uma das modalidades do discurso literário, juntamente com o diálogo, o poema épico, a epístola, a sátira, e, lá embaixo da pilha, o romance ou novela, que nesses tempos clássicos tendiam a ser histórias escritas em grego rudimentar. (...) Os antigos pensavam na História como uma espécie de épico em prosa. Era perfeitamente aceitável inserir longas falas atribuídas aos personagens, se isto era o que a pessoa poderia ter dito, ou deveria ter dito. A idéia da antiga historiografia, como eu a entendo hoje, quase dois mil anos depois, era moldar e reconstruir o significado do que ocorrera no Passado. Não era uma simples reportagem, mas algo mais próximo à codificação de um mito”.

Será preguiça mental minha, ou é exatamente isto que os nosso romances históricos de hoje em dia fazem? O romance histórico é considerado um gênero mais realista do que (por exemplo) a ficção científica ou os romances de vampiros, mas somente pelo fato de que nele não aparecem coisas “que não existem”, como alienígenas ou nosferatus. 

Todos esses romances sobre a Idade Média, sobre o Rei Artur, sobre os Faraós egípcios, sobre a Inglaterra vitoriana, são vendidos como literatura realista, e a maioria das pessoas que os lê acredita que inventado, ali, só o elenco principal; todo o resto corresponde escrupulosamente à verdade.

Não é bem assim. Mesmo depois de esforços gigantescos para transformar a História numa ciência, cabe sempre à nossa imaginação (mesmo uma imaginação cientificamente cautelosa) a tarefa de preencher as lacunas, sempre maiores e mais vastas do que as áreas cobertas de informação. Ao preenchê-las, acabamos inconscientemente criando fatos, pessoas, situações que têm a ver como a época em que escrevemos, não com a época descrita. 

Como em certas pinturas renascentistas, em que cenas da crucificação de Cristo mostravam personagens vestindo roupas da época do pintor, e nem este nem o seu público se incomodavam com o anacronismo.







quinta-feira, 16 de abril de 2009

0986) Dia das Mães (14.5.2006)




Pense num dia problemático! Nunca fui bom para escolher presentes, ainda mais para a Marquesa, como se auto-intitulava Dona Cleuza (que vários leitores desta coluna conheceram pessoalmente). Não que ela fosse complicada. Num dia como hoje, bastaria estarmos os dois, no fim da tarde, tomando café a sós na mesa da cozinha, como fizemos milhares de vezes, e bastaria que eu pegasse uma bolacha creme-craque e a estendesse para ela: “Ah, sim, quase me esqueço, tá aqui seu presente do Dia das Mães”. Ela encheria os olhos de lágrimas, empurraria a cadeira para trás, daria a volta à mesa e apertaria minha cabeça junto ao seu peito, dizendo, “Ô meu filho lindo... ô meu santo...” Era assim.

Um livro? Talvez. Algum capa-e-espada de Michel Zevaco, que líamos tanto, lá na casa da Miguel Couto; alguma aventura de Arsène Lupin... Ou quem sabe eu encontrasse uma edição antiga de Jean Christophe, um livro que ela endeusava e que nunca cheguei a ler. Depois que virou espírita, ela se concentrou em Chico Xavier, Divaldo Franco... Vivia me aconselhando um livro chamado Os Exilados de Capela, mistura de discos voadores e kardecismo, e eu argumentava: “Mãe, pelo amor de Deus, isso não tem a menor base científica...” Ela dava uma rabissaca e dizia: “Deixa pra lá. Você é cético.”

Uma jóia, um perfume? No tempo em que ela usava isto, eu era pequeno demais para comprar. Teria oito, dez anos, e olhava ela se aprontando para alguma ocasião elegante. Lembro o cheiro do perfume, o contraste violento entre os cabelos negros e a boca pintada de vermelho. Lembro as jóias; um broche de esmeraldas (que celebrei num poema), um bracelete dourado que eu sempre pensei ser de ouro maciço.

Podia ser um disco. Aí não havia dúvida: Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Anísio Silva, o onipresente Roberto Carlos... A Marquesa adorava cantar. Adorava falar. Caririzeira (de Coxixola) até a medula, era quase uma “mamma” italiana, exuberante, barroca. Sua vida pessoal e seus sentimentos mais íntimos forneciam o teor de um monólogo a plenos pulmões que se estendia por manhãs e tardes inteiras, enquanto ela varria a casa, arrumava, fazia o almoço, lavava e estendia roupa, sempre à frente da empregada, a quem cabia apenas finalizar as tarefas.

Eu poderia dar-lhe hoje uma efígie (mais uma!) do Padre Cícero, ou um filhote de gato (mais um!) para ser criado e paparicado. Podia dar-lhe um livro de receitas, um livro de costura, um livro de bordados, para que ela passasse noites inteiras com os óculos cavalgando o nariz, destrinchando aquelas (para mim) álgebras incompreensíveis com a curiosidade de uma criança e o crivo exigente de um cientista. Podia dar-lhe qualquer coisa: uma flor, um rapa-coco, uma tartaruga (mais uma!), uma poncheira, uma sandália havaiana, dois fios do meu cabelo (um preto, outro branco). Pois é, tantas opções de presente e eu sem nada para lhe dar, tendo apenas as mãos vazias de quem durante a vida inteira só fez receber.





0985) A Propedêutica da Epistemologia (13.5.2006)




Numa fria manhã de inverno, o Budista Tibetano acordou com batidas insistentes à porta da cabana. Demorou a atender, mas quando abriu a porta sorriu ao se deparar com seu colega de juventude Wing Su Shi, a quem não via há trinta anos, e que era agora o filósofo mais respeitado da China. 

Sentaram-se na pequena sala com duas xícaras de chá fumegante, recordaram bons momentos do passado, trocaram informações sobre o paradeiro dos amigos comuns, e então Wing Su Shi contou o propósito de sua vinda.

– Atravesso uma situação difícil, ó meu velho companheiro! – disse ele. – A China inteira reverencia meus ensinamentos, estuda meus escritos, segue meus conselhos. Quando passo pelas ruas, os velhos me abençoam, e os jovens vêm pedir-me a bênção. Toda semana sou chamado ao palácio pelo Imperador, que quer minha opinião sobre assuntos de Estado. Os nobres disputam a minha atenção. Livros clássicos da Filosofia estão sendo recopiados para poder incorporar meus comentários, os quais, segundo os estudiosos, enriquecem sobremaneira os textos originais.

Vendo que o Budista Tibetano fazia uma cara de quem não vê situação difícil alguma, ele prosseguiu: 

– O problema é que eu não sou nada disto que pensam! Sou cheio de dúvidas sobre meus raciocínios, de incertezas quanto às minhas premissas. Meu conhecimento livresco é cheio de lacunas, mas eles pensam que eu tudo li, tudo assimilei. Atribuem aos meus aforismos de ocasião uma densidade metafísica que eles não comportam. Quando apareço, ficam todos na expectativa de mais uma verdade transcendental. E eu não sei de nada, não entendo de nada ! No fundo, sou uma fraude!

O Budista Tibetano deu dois tapinhas consolatórios no joelho do amigo. 

– Wing Su, estas ansiedades apenas demonstram tua honestidade e tua profunda sabedoria. Li em algum lugar que em séculos futuros serão inventados aparelhos chamados circuladores-de-ar. Nós, filósofos, somos meros circuladores de idéias. Não as fabricamos, mesmo quando as estamos exprimindo pela primeira vez. Mesmo um médico incompetente pode curar um enfermo, se receitar um remédio que lhe sirva. Quando te elogiarem, toma isto como um incentivo para que continues escrevendo e trabalhando, mas não te deixes iludir, como aliás já o fazes. Não és uma fraude. És para o conhecimento como um agricultor é para o trigo: não és seu criador, és apenas o parteiro que o trouxe ao mundo.

Wing Su Shi agradeceu efusivamente, os dois se abraçaram e o Budista Tibetano ficou olhando o amigo, montado em seu burrico, descer a trilha tortuosa que levava ao vale, ainda envolto na fria névoa matutina. 

Fechou a porta, e retornou ao quarto quente e escuro, onde sua gueixa o esperava sob as cobertas aconchegantes. 

– Quem era? – perguntou ela. 

– Um velho amigo enviado pela Providência, – disse ele. – Veio trazer-me a resposta para uma dúvida que me torturava há anos. Que os deuses abençoem sua sabedoria! 

E meteu-se embaixo do edredom.







0984) Roman à clef (12.5.2006)


(Coelho Neto)

Esta expressão (que se pronuncia “romanaclê”) significa “romance com chave”, e se aplica a certa obras literárias que usam pessoas reais ocultas sob nomes fictícios. Escritores recorrem a isto por diferentes motivos. Às vezes o cara quer descrever o espírito de uma época, os tipos humanos que a caracterizaram, e quer utilizar episódios reais; mas ao mesmo tempo quer ter liberdade suficiente para dar uma ajeitadinha nos fatos, fazer com que ocorram de uma maneira mais interessante do que realmente ocorreram; em suma, copidescar a História. Aí, em vez de um relato autobiográfico, faz um romance-com-chave onde personagens e fatos são alternadamente reais e inventados.

Um dos meus exemplos preferidos é a obra-prima A Conquista, de Coelho Neto, onde ele mostra a vida boêmia e literária do Rio de Janeiro durante a Campanha da Abolição. Alguns personagens históricos aparecem sob seu próprio nome, como José do Patrocínio. Outros, sob nomes mal disfarçados: “Otávio Bivar” é Olavo Bilac, “Paulo Neiva” é Paula Nei, e assim por diante. Outros, como “Anselmo Ribas” e “Ruy Vaz”, são pseudônimos que o próprio Coelho Neto usou na vida literária, e parecem corresponder a diferentes facetas do próprio autor.

Pode ocorrer que o autor queira fugir a eventuais processos jurídicos por estar descrevendo pessoas reais de forma pouco lisonjeira. Contar os milagres e trocar os nomes dos santos passa a ser uma manobra lícita para escapar a um processo (embora nem sempre o autor escape de vinganças por meios não-oficiais). Outras vezes, o autor faz uma alegoria totalmente distanciada da realidade que está descrevendo, mas ainda assim quer deixar claro quem é quem: um exemplo disto é A Revolução dos Bichos de George Orwell, uma sátira à Revolução Russa, onde “Napoleão” é Stálin, “Bola de Neve” é Trotsky, e assim por diante.

Autores que descrevem um ambiente social repleto de gente famosa sabem que bastam dois ou três traços para dar ao leitor a pista sobre quem é quem, como ocorre com obras como as de F. Scott Fitzgerald ou Marcel Proust. Faz parte do espírito da coisa que um “roman à clef” não dê nenhuma pista explícita sobre esse tipo de correspondência, deixando que os críticos literários e as colunas de fofocas (dois círculos que muitas vezes se interseccionam) se encarreguem de montar o quebra-cabeças.

O perigo de um “roman à clef” é permitir que este jogo de identificações e substituições se torne mais importante que a obra literária. Hoje, não precisamos saber a quem correspondem os personagens de Fitzgerald. Seus livros se sustentam sozinhos, sem o álibi da vida real para lhes conferir substância de forma indireta. Sustentam-se enquanto histórias, e seus personagens valem porque são personagens antes de serem ecos ou referências a pessoas que existiram um dia. Infelizmente, na maioria dos romances com chave, se tirarmos a chave não fica quase nada para sustentar o romance.

0983) A arte da dinamite (11.5.2006)

(Crazy Horse Memorial)

Imagino que o leitor conheça o monumento do Monte Rushmore, nos EUA, aquela imensa escultura na encosta de uma montanha, reproduzindo os rostos de quatro presidentes norte-americanos: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. Aparece de vez em quando na TV e nas revistas; e serviu de palco para uma das seqüências de perseguição mais memoráveis do cinema americano: a dos espiões caçando Cary Grant e Eve Marie Saint, em Intriga Internacional de Alfred Hitchcock. O monumento foi construído por uma enorme equipe chefiada pelo escultor Gutzon Borglum, tendo os trabalhos começado em 1927 e terminado em 1941.

Escultores antigos trabalhavam com martelo e cinzel (um instrumento pontudo), desbastando a pedra e dando forma às figuras que tinham na imaginação. Conta-se que Michelangelo explicou assim sua famosa escultura de Moisés: “O Moisés já estava dentro do bloco de pedra, tudo que fiz foi tirar o excesso”. A escultura é uma arte refinada, a arte que nada adiciona, apenas retira. E uma arte arriscadíssima, porque se tirarmos uma lasquinha que seja a mais, não há como repor. Cada golpe do martelo, cada beliscada do cinzel são irreversíveis.

O Monte Rushmore é uma das muitas obras que transportaram este princípio básico para a grande escala e a alta tecnologia dos tempos modernos. Em vez do cinzel, usam-se cargas de dinamite. A pedra é examinada para determinar os pontos exatos de colocação das cargas e a intensidade que devem ter. O excesso bruto de rocha é retirado, e o acabamento final é feito através de picaretas, lixas, etc. Imaginem só o tamanho do problema se uma explosão mal planejada bota abaixo duas toneladas de rocha. Lá se vai o nariz de Abraham Lincoln!

Um trabalho em escala muito mais impressionante está sendo feito há décadas no Crazy Horse Memorial, erigido em homenagem a Cavalo Doido, chefe índio falecido em 1877, que liderou os Sioux na batalha de Little Big Horn, onde foram dizimadas as tropas do General Custer. O escultor é Korczak Ziolkowski, que foi assistente de Borglum no Monte Rushmore. O projeto foi encomendado pelos índios Lakota, donos das terras onde o monumento está sendo esculpido. Depois de pronta, a escultura de Cavalo Doido será a maior escultura da Terra, com 195m de comprimento e 172m de altura, mostrando o chefe índio galopando em seu cavalo. Para se ter uma idéia, todas as quatro cabeças de presidentes do Monte Rushmore caberiam no interior da cabeça desta estátua descomunal. Detalhes podem ser apreciados em : http://www.crazyhorse.org/.

Estamos vivendo uma época meio faraônica, não é mesmo? Eu admiro tudo que é grandioso, e sempre lamentei que seis das sete maravilhas do mundo antigo não tivessem resistido à passagem do tempo. Sempre achei uma ironia que o Colosso de Rodes e a estátua de Júpiter Olímpico, tão descomunais, tivessem durado menos tempo do que uma peça de Sófocles ou um poema de Píndaro. Ironias da História.

0982) A Cientologia (10.5.2006)


(L. Ron Hubbard)

A Cientologia, que no início de sua história era chamada de Dianética, é uma atividade híbrida de Ciência e Religião, inventada por um escritor de ficção científica chamado L. Ron Hubbard. Bastaria isto para torná-la um símbolo de nossa época, ou melhor, da época pós-II Guerra Mundial, quando a popularização da Psicanálise inspirou a invenção de numerosas terapias vagamente científicas, cada uma delas prometendo curas milagrosas. Vou logo avisando que minha visão da Cientologia é preconceituosa, porque ouvi falar dela pela primeira vez no formidável livro de Martin Gardner, Manias e Crendices em Nome da Ciência (que, aliás, também me deixou desconfiado para sempre com Wilhelm Reich). Se o leitor quiser a visão oficial vá em: http://www.lronhubbard.org/, ou então telefone para Tom Cruise e John Travolta, que são adeptos, e talvez conheçam o assunto melhor do que eu.

Hubbard era um sujeito ruivo, corpulento, falastrão, incansável, sempre contando aventuras mirabolantes sobre si próprio, tão divertidas que a questão de serem verídicas ou não ficava em segundo plano. Ganhava a vida escrevendo histórias de ficção científica, num longo rolo de papel (como fazia Jack Kerouac), para não perder tempo trocando de página. Traduzi dois livros seus (Gênese Negra e O Plano dos Invasores) para a Editora Record. É uma pulp-fiction interplanetária descartável, cômica, verbosa, mistura de Flash Gordon com Mel Brooks. Por justiça, afirmo aqui que sua noveleta Fear (1940) é uma das melhores histórias de terror psicológico que já li.

Reza a lenda que um dia Hubbard desabafou: “Chega de escrever FC e ganhar uma merreca! Vou inventar uma religião e ficar milionário!” No número de maio de 1950, a revista Astounding Science Fiction, da qual ele era colaborador, publicou um longo artigo sobre a Dianética, uma revolucionária técnica de auto-análise capaz (segundo ele) de curar qualquer problema psicológico, e também de desenvolver super-poderes mentais. A idéia fascinou o editor da revista, John W. Campbell, além de outros escritores como A. E. Van Vogt. A Dianética tornou-se uma febre nos EUA, seus livros viraram tremendos best-sellers.

Em 1955 Hubbard abandonou a Dianética e fundou uma religião que absorvia seus ensinamentos, a Cientologia. Diz-se que o fez para se beneficiar da isenção de impostos que as igrejas geralmente recebem dos governos. A Cientologia é muito discutida na comunidade de ficção científica porque foi a primeira religião criada por um de seus escritores, e ainda hoje se discute se isto foi uma boa coisa ou não. Surgiu nas revistas de FC, como surgiu o mito dos discos voadores como naves extra-terrestres (foi na revista Fate que Kenneth Arnold publicou em 1948 seu primeiro relato de “avistamento” dos OVNIs). Sempre existiu uma tênue linha divisória entre ficção e realidade, no mundo da FC. Com Hubbard, essa linha virou um marco plantado na zona fronteiriça entre Ficção, Ciência e Religião.

0981) O peru e a Bolívia (9.5.2006)


(Evo Morales)

Um grupo de amigos jogava pôquer num clube, mas tinha um sócio que gostava de ficar em pé, olhando as cartas de todos e dando palpite. “Pede somente uma carta, aí se vier copas você fica com um flush...” Os dias passando, o pessoal foi enchendo o saco, aí começaram a jogar buraco para ver se o peru desistia. Não adiantou. Ele continuava cercando a mesa, olhando por sobre os ombros dos outros e murmurando: “Não descarta esse 8 não, de repente isso vira uma canastra...”

Certo dia, chegaram no clube antes do cara e um deles teve uma idéia: “Vamos inventar um jogo que ele não entenda”. “Que jogo?” “Um jogo que não existe! A gente vai jogando e inventando!” Quando o peru chegou na sala, o jogo ia a todo vapor. O primeiro cara pegou uma dama, um 3 e um 5, arriou na mesa e disse: “Eu tenho um flarf! Aposto dez reais!” O segundo tirou algumas cartas do monte, arriou na mesa dois ases e dois 7, e disse: “Eu tenho um blorb! Seus dez, e mais dez!” O terceiro pegou um melé, um 2 e um 8, e disse: “Eu tenho um bong-bong! E dobro a aposta de vocês!” Aí o peru não se conteve e disse: “Tás maluco, cara? Tu quer ganhar de um flarf e de um blorb somente com um bong-bong?!”

Pois é assim que eu sou; pois é assim que eu sinto que sou, quando começo a emitir opiniões sobre assuntos herméticos e esotéricos como a desapropriação da usina da Petrobrás na Bolívia. Dou meus pitacos por esta compulsão de procurar sentido nas coisas que ocorrem à minha volta, principalmente quando elas acontecem na TV ou na primeira página dos jornais. Dito regras, teorizo, boto banca, mas em última análise os fatos históricos são um código ininteligível, é como assistir um filme japonês com legendas em búlgaro.

Um colunista é uma espécie de peru remunerado. Ele julga ser obrigação sua dar palpites sobre jogos cujas regras ele não entende. Que idéia posso ter das manobras de bastidores, dos telefonemas cifrados à meia-noite, dos jogos de poder regional, das prevaricações jurídicas, do xadrez de pequenas conspirações diplomáticas entre a direita e a esquerda da América Latina, das pressões de Havana e de Washington, e de tudo mais que resulta no gesto simbólico de Evo Morales, fazendo com as empresas de Lula o que Lula insinuou que ia fazer com as empresas de Bush? Muito bem feito! A Petrobrás não é o Brasil; é uma corporação em busca de lucros, como são o MacDonald’s, a Coca-Cola, a Microsoft de Bill Gates e a Halliburton de Dick Cheney. Ou será que é dela que devemos nos compadecer, e não dos pobres índios bolivianos, desnutridos e analfabetos? Afinal é “nossa” Petrobrás, nossa BR, que patrocina a Fórmula-1 e o futebol, que financia teatros e festivais de cinema! Que reviravolta foi essa nas regras do jogo? Ou será que a primeira reviravolta foi o que Lula deixou de fazer depois da posse? E quem diabo é esse Evo Morales, que quer ganhar de um flarf e de um blorb somente com um bong-bong?!