quinta-feira, 16 de abril de 2009

0985) A Propedêutica da Epistemologia (13.5.2006)




Numa fria manhã de inverno, o Budista Tibetano acordou com batidas insistentes à porta da cabana. Demorou a atender, mas quando abriu a porta sorriu ao se deparar com seu colega de juventude Wing Su Shi, a quem não via há trinta anos, e que era agora o filósofo mais respeitado da China. 

Sentaram-se na pequena sala com duas xícaras de chá fumegante, recordaram bons momentos do passado, trocaram informações sobre o paradeiro dos amigos comuns, e então Wing Su Shi contou o propósito de sua vinda.

– Atravesso uma situação difícil, ó meu velho companheiro! – disse ele. – A China inteira reverencia meus ensinamentos, estuda meus escritos, segue meus conselhos. Quando passo pelas ruas, os velhos me abençoam, e os jovens vêm pedir-me a bênção. Toda semana sou chamado ao palácio pelo Imperador, que quer minha opinião sobre assuntos de Estado. Os nobres disputam a minha atenção. Livros clássicos da Filosofia estão sendo recopiados para poder incorporar meus comentários, os quais, segundo os estudiosos, enriquecem sobremaneira os textos originais.

Vendo que o Budista Tibetano fazia uma cara de quem não vê situação difícil alguma, ele prosseguiu: 

– O problema é que eu não sou nada disto que pensam! Sou cheio de dúvidas sobre meus raciocínios, de incertezas quanto às minhas premissas. Meu conhecimento livresco é cheio de lacunas, mas eles pensam que eu tudo li, tudo assimilei. Atribuem aos meus aforismos de ocasião uma densidade metafísica que eles não comportam. Quando apareço, ficam todos na expectativa de mais uma verdade transcendental. E eu não sei de nada, não entendo de nada ! No fundo, sou uma fraude!

O Budista Tibetano deu dois tapinhas consolatórios no joelho do amigo. 

– Wing Su, estas ansiedades apenas demonstram tua honestidade e tua profunda sabedoria. Li em algum lugar que em séculos futuros serão inventados aparelhos chamados circuladores-de-ar. Nós, filósofos, somos meros circuladores de idéias. Não as fabricamos, mesmo quando as estamos exprimindo pela primeira vez. Mesmo um médico incompetente pode curar um enfermo, se receitar um remédio que lhe sirva. Quando te elogiarem, toma isto como um incentivo para que continues escrevendo e trabalhando, mas não te deixes iludir, como aliás já o fazes. Não és uma fraude. És para o conhecimento como um agricultor é para o trigo: não és seu criador, és apenas o parteiro que o trouxe ao mundo.

Wing Su Shi agradeceu efusivamente, os dois se abraçaram e o Budista Tibetano ficou olhando o amigo, montado em seu burrico, descer a trilha tortuosa que levava ao vale, ainda envolto na fria névoa matutina. 

Fechou a porta, e retornou ao quarto quente e escuro, onde sua gueixa o esperava sob as cobertas aconchegantes. 

– Quem era? – perguntou ela. 

– Um velho amigo enviado pela Providência, – disse ele. – Veio trazer-me a resposta para uma dúvida que me torturava há anos. Que os deuses abençoem sua sabedoria! 

E meteu-se embaixo do edredom.







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