sexta-feira, 24 de abril de 2009

0998) Árido Movie (28.5.2006)



O filme de Lírio Ferreira, que recentemente ganhou o prêmio principal do Festival de Cinema do Recife, é uma porrada. É o filme mais pernambucano que eu já vi, porque nele estão superpostos e entrelaçados vários Pernambucos, contraditórios e conflitantes, mas que pela força das coisas são forçados a coexistir e comunicar-se. É um filme nordestino que surpreende a chamada “platéia do Sul”, como já ocorrera com o filme anterior do diretor, O Baile Perfumado (em parceria com Paulo Caldas). É um Nordeste onde os coronéis plantam maconha e os jagunços andam de moto. Em vez da unanimidade da caatinga, vemos um vale de formações rochosas que parecem projetadas por Salvador Dali. E os beatos messiânicos prometem uma vida melhor em Júpiter ou Saturno.

O filme é uma reescritura do Nordeste como região geradora de mitos. No Baile Perfumado, o diretor optara por mostrar um Nordeste úmido, verde, de beira de rio e borda de desfiladeiro, em vez do Nordeste ressequido e desértico que as platéias de cinema se acostumaram a esperar; e aquele filme era menos sobre o Cangaço do que sobre o Filme de Cangaço. Em Árido Movie, o roteiro costura a relação, óbvia para quem é da região, entre decadência rural, tráfico de drogas, messianismo com discurso apocalíptico, extinção de tribos indígenas, música pop-brega e a lei das armas de fogo.

E a água, a imagem básica que perpassa toda a história. Desde a indústria de peixes a que a mãe de Jonas vai se dedicar no Recife até a água benta e milagrosa do profeta, que em termos de placebo para as dores da realidade não se distingue muito da onipresente maconha. São os carros-pipa agilizados por políticos, e as latas dágua das incessantes idas e vindas das mulheres sertanejas; são as cavernas míticas onde só se chega de jipe. A água é moeda de troca, é fonte de poder, é símbolo religioso, e é também onipresente, mesmo quando ninguém a vê.

Numa cena do filme, José Dumont (numa de suas melhores atuações) mostra uma montanha que parece um elefante com metade do corpo submerso na água. E depois que ele nos mostra esquecemos (se quisermos) que aquilo é terra, é pedra, é mato: só vemos o elefante. Pois a montanha é o Nordeste; e o elefante, ou os muitos bichos que podemos ver nela, são os filmes sobre o Nordeste. O que Nelson Pereira dos Santos viu em Vidas Secas e o que Glauber viu em Deus e o Diabo na terra do Sol continua visível. Não desmente nem é desmentido pelo que é visto em Árido Movie. Mas, sobre os alicerces daquele Nordeste clássico e esquerdista, em preto-e-branco, de quarenta anos atrás, está sendo construído outro, mais cínico, mais realista, mais confrontador, mais eletrificado. O cinema que está sendo feito por Lírio Ferreira, Marcelo Gomes, Paulo Caldas, Cláudio Assis e outros ajuda a entender o que está acontecendo hoje no Nordeste, e principalmente a entender isso que vai acontecer, inevitavelmente, no futuro próximo.

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