segunda-feira, 20 de abril de 2009

0989) A cidade imaginária (18.5.2006)



Um tipo de literatura que tem crescido cada vez mais nas últimas décadas é a Literatura Descritiva, em contraposição à Literatura Narrativa. Acho que estes dois termos são claros o bastante, e expressam duas funções básicas da mente humana. A grande tradição romanesca do século 19 parece ter conseguido o equilíbrio ideal entre as duas. Dali em diante, parece que o negócio desandou, e o “descritivismo” está se tornando uma verdadeira mania. Um exemplo típico disto é a obra de J. R. R. Tolkien, que batizei de “ficção catalográfica”: uma enorme descrição de um mundo imaginário, com sua astronomia, sua geologia, sua geografia e corografia, suas línguas e dialetos, suas raças humanas, semi-humanas e animais, suas dinastias de reis e imperadores, suas intermináveis listas de batalhas e conquistas. Desse mapa descritivo e monumental, Tolkien ainda conseguiu extrair algumas Narrativas que fizeram o seu sucesso, como O Senhor dos Anéis.

Certos autores (penso em Georges Perec) acham que às vezes inventar um ambiente é um processo que se basta a si mesmo, e que não é preciso contar histórias para justificá-lo. É o caso da literatura utópica, desde Platão a Thomas Morus. Um exemplo recente é o da cidade imaginária de Urville, criada por Gilles Tréhin, um rapaz que vive na cidade francesa de Cagnes-sur-Mer. Gilles é um autista, ou seja, um daqueles indivíduos que parecem viver fechados em si mesmos, extremamente concentrados em sua própria atividade mental e com pouca ou nenhuma vontade de se relacionar com o mundo exterior. Claro que existem gradações em casos assim, e Gilles é “extrovertido” o bastante para escrever e falar sobre si mesmo e sobre a cidade que inventou.

A princípio, era uma cidade que ele pretendia reconstruir inteiramente com peças de Lego, numa enorme maquete. Depois, chegou à conclusão de que era mais simples e mais rico produzir um conjunto de textos e desenhos. A cidade foi crescendo, e não parou mais de crescer. O processo todo começou por volta de 1984, e até agora Gilles produziu cerca de 250 desenhos muito detalhados, todos eles derivados de cinco plantas básicas que incluem todos os setores da cidade. Quem quiser dar uma olhada nesta ciclópica aventura, vá aqui: http://urville.com/.

A empreitada de Gilles mistura arquitetura, urbanismo e literatura, porque ele escreve a história da cidade, sua evolução, os fatos importantes que aconteceram ao longo de sua história. É como se um jogo tipo Sim City fosse criado no papel por um único indivíduo. O fato de Gilles ser autista, ou portador da Síndrome de Asperger, parece indicar que esta síndrome tem às vezes como conseqüência a hipertrofia de uma função mental em detrimento de outras. No presente caso, Gilles é um “descritor” de mão-cheia. A excepcionalidade de sua missão não deve obscurecer o fato de que isto que ele faz hoje está se encaminhando para ser no futuro um gênero artístico autônomo, como o romance histórico ou o relato utópico.

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