O México me parece o “Brasil” da América do
Norte, o seu espaço mais selvagem, mais heterogêneo, mais
colagem-de-narrativas. (Pela mesma ótica, os EUA são a Argentina de lá, e o
Canadá é o seu Uruguai.)
O México tem sido ao longo da história um
atrator para mentalidades inquietas dos EUA e da Europa – mentes em busca do
mistério e do risco, em busca da transcendência e da violência. Mentes inquietas, místicas, vanguardistas,
não-cartesianas, não-aristotélicas.
Talvez seja a atração primal dos deuses
astecas, das serpentes emplumadas sedentas de sangue; das pirâmides em degraus,
das caveiras do Dia dos Mortos, das insurreições épicas de Pancho Villa e
Zapata. O México era um atrator de aventura e tragédia para tantos europeus dessorados,
cultos, cheios de bons modos à mesa.
Para o México rumou o surrealista Luís Buñuel,
não em busca do mistério (que ele já trazia dentro de si – Don Luís tornou-se
na juventude um hierofante do olho retangular do cinema), mas em busca de um
país brutalidade-jardim, parecido com ele próprio.
Para o México rumou um dia o surrealista
Antonin Artaud:
Não há escassez de lugares da Terra onde a
Natureza, impelida por uma espécie de capricho da inteligência, tenha esculpido
formas humanas. Mas aqui trata-se de algo muito diferente: porque aqui é em
toda a área geográfica de uma raça que a Natureza se exprimiu de forma
intencional.
(“A Respeito de uma Jornada à Terra dos
Tarahumaras”, trad. BT)
Para o México rumou o jovem surrealista chileno
Alejandro Jodorowsky, meio desanimado com os surrealistas franceses, e desejoso
de encontrar um caminho geográfico para o Inconsciente.
Para o México rumou o jovem quase-surrealista
William Burroughs, em seu mergulho suicida nos estados alterados de consciência
através de quaisquer drogas naturais ou artificiais.
Para o México rumou o surrealista Benjamin
Péret, poeta, editor, prosador, agitador de esquerda, interessado na mitologia pré-colombiana.
Para o México rumou a surrealista espanhola
Remédios Varo, que havia se refugiado da Guerra Civil espanhola indo para
Paris.
E para o México rumou também a misteriosa
surrealista Leonora Carrington, pintora e escritora de uma obra única,
fora-de-esquadro, uma obra que bebe diretamente nas fontes do sonho, do trauma
infantil, da sexualidade, dos contos de fadas, do terror gótico, do
visionarismo lisérgico, da simbologia mística.
(Leonora Carrington, "Bird Bath", 1947)
As peregrinações listadas acima não foram
simultâneas; cada artista teve sua época e seu momento de tentar viver “sob o
vulcão”. Algumas, contudo, foram convergentes. Benjamin Péret e Remedios Varo
estavam casados e chegaram ao México juntos, de navio, fugindo ao nazismo. Chegando
lá, Péret reencontrou Buñuel, seu amigo dos tempos surrealistas parisienses; e
Remedios Varo reencontrou Leonora Carrington, que já conhecia desde a mesma
época.
Estas duas pintoras são figuras fascinantes
dentro do surrealismo europeu, que por variadas razões foi um movimento muito
masculino: muito machista em alguns aspectos, e muito derrubador de
preconceitos em outros.
Leonora Carrington, nascida em 1917 na
Inglaterra, chegou ao México aos 26 anos, em condições parecidas com as de
Remedios Varo. Depois de romper com sua família inglesa e tradicionalista, ela
aos 19 anos conheceu o artista Max Ernst e fugiu com ele para Paris, onde se
juntou ao grupo surrealista.
(Leonora Carrington, "Portrait of Max Ernst". 1973)
Com a Guerra, Ernst foi preso primeiro pelas
autoridades francesas, por ser alemão, e depois pelos invasores nazistas, por
fazer “arte degenerada”; acabou dando um jeito de fugir para os EUA. Quanto a
Leonora, teve uma crise após a prisão dele e foi internada num sanatório. Ao
sair, foi apresentada por Picasso ao diplomata Renato Leduc, que fez com ela um
casamento de conveniência para poder tirá-la da França nazista (sob imunidade
diplomática), e de lá ela acabou no México, onde viveu o resto de sua vida.
(Leonora Carrington, "Um conto de fadas mexicano")
Pintora, escultora e escritora, Leonora
Carrington teve um livro publicado há pouco no Brasil: Um Conto de Fadas Mexicano e Outras Histórias (Iluminuras, 2011,
trad. Dirce Waltrick do Amarante, org. DWA e Bira M. Basurto Santos.
O título é adequado, porque os contos da autora
recorrem constantemente ao imaginário dos contos populares: animais que falam,
objetos mágicos, personagens infantis ou adolescentes confrontando adultos...
Sua ligação com o grupo surrealista parisiense
se deu de início através do seu amante Max Ernst, mas ela se envolveu com
muitas atividades do grupo, cujo machismo nunca deixou de criticar: “Os
surrealistas só veem as mulheres como musas, não como iguais”.
(Leonora Carrington, "The Lovers", 1987)
De fato havia nas idéias e no comportamento dos
surrealistas uma caatinga entrelaçada de contradições espinhosas.
Revolucionários, profetas de uma nova maneira de encarar a realidade, inimigos
ferozes do clero e da burguesia, propagadores do “amour fou”, o amor louco, a paixão que não conhece limites – eles
eram ao mesmo tempo o que hoje (um século depois) seria classificado como um
grupo de machistas brancos de classe média, homofóbicos e preconceituosos.
Sob este aspecto, vale a pena ler e consultar o
precioso volume Investigating Sex –
Surrealist Discussions 1928-1932 (New York/London: Verso, 1994, org. José
Pierre). Por iniciativa de André Breton, os surrealistas tinham uma prática do
tipo “jogo da verdade”, uma reunião do grupo em que todos faziam perguntas
indiscretas sobre a vida sexual, e tinham a obrigação moral de responder a
verdade.
O livro reproduz os diálogos de doze destas
sessões (sempre havia alguém anotando tudo – Max Morise, Péret, Paul Éluard,
etc.). A primeira delas chegou a ser publicada na revista La Révolution Surréaliste (# 11, 15 de março de 1928, pág. 32 e
seguintes).
Aqui, uma reprodução online:
https://fr.wikisource.org/w/index.php?title=Page:La_R%C3%A9volution_surr%C3%A9aliste,_n11,_1928.djvu/36&action=edit&redlink=1
Quarenta pessoas, ao todo, tomaram parte nestas
sessões, sendo apenas sete mulheres: Nusch (que casaria com Paul Éluard em
1934, Jeannette Tanguy, Mme. Unik, Simone Vion, Mme. Lena, Katia Thirion e uma
misteriosa “Y”.
Leonora nunca participou, mas sua obra de
pintura e de ficção está carregada de uma sexualidade indireta, simbólica ou
explícita.
(Leonora Carrington, "Down Below", 1940)
(Leonora Carrington, "Inn of the Dawn Horse")
(Leonora Carrington, "Green Tea", 1942)
Pouco chegada à auto-promoção, Carrington tinha
um temperamento caloroso, mas impaciente com badalações sociais. Dava poucas
entrevistas, mas acabou acedendo a uma biografia escrita por uma distante prima
inglesa: The Surreal Life of Leonora
Carrington (2017) de Joanne Moorhead.
No YouTube há um documentário (legendas
automáticas em espanhol) mostrando a artista, já com mais de 80 anos: Leonora Carrington, Invocación Surrealista (de
Sandra Luz Aguilar):
https://www.youtube.com/watch?v=zuchqAqkY_E
O filme traz entre outras coisas uma
dramatização, com atores, de um dos seus contos mais cruéis, “A Debutante”, em
que a família de uma adolescente promove um baile em sua homenagem. A garota,
que detesta essas coisas, manda em seu lugar uma hiena disfarçada com roupas
suas e com o rosto arrancado de sua criada. A hiena explica:
-- Você chamará com um sino a criada e quando
ela entrar a gente se joga em cima dela e lhe tira o rosto.; usarei o rosto
dela em vez do meu esta noite.
-- Não é prático – eu disse. – Ela provavelmete
morrerá quando não tiver mais rosto; alguém encontrará com certeza o cadáver e
iremos as duas para a prisão.
-- Com a fome que estou, vou comê-la – replicou
a hiena.
-- E os ossos?
-- Isso também – ela disse. (...)
Quando Marta entrou, eu me virei para a parede
a fim de não ver. Admito que tudo foi rápido. Enquanto a hiena comia, eu olhava
pela janela. Alguns minutos depois ela disse:
--Não consigo mais comer, ainda faltam os pés,
mas se você tiver uma bolsinha eu os como mais tarde, ao longo do dia.
(pág. 39-40,
trad. Dirce Waltrick do Amarante)
Outro documentário, Leonora Carrington, el Juego Surrealista, dirigido por Javier
Martín-Domínguez, pode ser encontrado por aí pelos streamings, e traz também
imagens da artista já idosa, em sua casa e em seu ateliê, e depoimentos de seus
contemporâneos, além de um dos filhos seus do longo casamento com Csizi Weisz,
fotógrafo húngaro também radicado no México.
Um comentário:
Ganhei de presente de aniversário A Corneta, sem saber nada sobre a autora. É realmente o imaginário que você descreve: fantástico, misturando surrealismo com conto de fadas e literatura infantil. O fato dela também desenhar (e a edição brasileira traz as ilustrações) nos faz ficar pensando o papel desses desenhos na narrativa: vieram antes ou depois do texto?
Postar um comentário