sábado, 31 de janeiro de 2015

3725) Os escritores pop (31.1.2015)



As flips, flibos, flipoços, fliportos e tantas outras festas literárias e bienais têm alvoroçado muita gente.  A imprensa achou a expressão “fenômeno midiático”. No movimento browniano em que se entrechocam as opiniões e os gostos, há duas aglomerações opostas. 

Há os que se entusiasmam com essa interatividade, porque seu temperamento os conduz para isto e o processo todo os favorece.  E há os que têm repulsa a um processo assim, em parte porque não foram talhados para ele, e em parte porque acham que ele favorece quem escreve mal.

O escritor deve somente escrever, arder o cérebro pela madrugada, como uma vela no altar da Musa? Ou pode também se entregar à política literária, à vida social, organizar-se em “escolas” e “movimentos”, inventar um “ismo”, colaborar na imprensa, meter-se em polêmicas, meter-se na política, cortejar a fama? 

É a antiga oposição entre Gustave Flaubert e Émile Zola, dois escritores de peso, amigos, que podem até ilustrar os polos opostos dessa discussão.  Flaubert era o sacerdote, Zola era o publicitário. Machado... e Alencar. Graciliano... e Jorge Amado.

Henry James tem um conto fantástico, “The Private Life” (1892) que conta (entre outras coisas bizarras, machadianas) sobre um escritor famoso, encontrado pelo narrador numa colônia de férias na montanha, e que não faz outra coisa senão conversar e entreter os admiradores, fãs, tietes em geral.  O narrador sobe até a suíte onde esse autor está hospedado e descobre que ele tem um duplo, um outro corpo igual ao original, que fica se esfalfando na escrivaninha, produzindo os textos que fazem a fama do primeiro.

Eu entendo perfeitamente que alguém que não goste de falar em público ou de viajar (eu gosto).  Por outro lado, não sei se eu teria disposição para autografar 500 livros ao longo de umas três horas, como já vi pessoas fazendo. Cada um pode ter recursos ou disponibilidades diferentes  para se aproximar do público, mas isso não importa. Ser autor é escrever e publicar.  E nenhuma propaganda de livro é melhor do que a de boca em boca.

O personagem de Henry James é uma variante do médico-e-o-monstro.  É o escritor-e-marqueteiro, que surge espontaneamente em certas culturas. Quem não sabe ser marqueteiro, fique escrevendo no quarto do hotel.  O quarto vai ficar cheio de folhas manuscritas, cheio até o teto. Algumas folhas acabarão sendo empurradas para fora, por baixo da porta.  Um vento as erguerá no corredor e as conduzirá flutuando até a  rua, até uma tipografia, onde alguém, quase sem perceber, fará daquilo um livro.  Se for um livro bom, é nesse momento que o jogo começa. Se o livro é ruim, é aí que o jogo acaba.




sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

3724) O fair-play do mistério (30.1.2015)



(O "cuidado, leitor" em The Roman Hat Mystery, 1930, virou depois "Desafio ao leitor")

Alguns amigos estavam conversando sobre o filme Os Suspeitos, de Bryan Singer, aquele sobre uma quadrilha de delinquentes envolvidos com as maquinações de um gênio-do-mal, Keyser Soze, uma espécie de Fu Manchu ou de Vlad Dracula.  Não vou largar spoilers sobre o filme.  Para quem não o viu, basta dizer que é um filme que conta uma história longa e complexa, cheia de peripécias, tendo como pontos-de-vista cinco bandidos envolvidos num golpe, e o que acontece a cada um deles.  Nos últimos minutos há uma reviravolta espantosa na narrativa, quando o mistério final se revela.

A narrativa policial de mistério gira em torno disso: o mistério, a coisa estranha e inexplicável, que cabe à história solucionar.  A história de mistério não precisa ser policial: pode ser mistério com FC, mistério com horror.  Basta que haja um mistério, que o leitor ou espectador seja provocado a propor uma explicação.  O jogo dedutivo entre Sherlocks e Moriartys é o mesmo jogo do leitor, querendo adivinhar o pensamento e as intenções do autor.  Coube a Ellery Queen disciplinar esse xadrez de pistas e de suspeitas, quando criou nos anos 1930 o “Desafio ao Leitor” que interrompia seus romances. “Vocês já têm nas mãos todas as pistas que Ellery Queen usou para descobrir o criminoso”. 

O termo clássico para isso é “fair play”.  Se é um jogo entre intelectos habilidosos e atentos, é preciso jogar limpo com o leitor. Existem indícios? Então, que o leitor tenha acesso a eles, e só precisa interpretar corretamente cada fragmento de informação.  O interessante é a diferença de conceito de “fair play” no romance literário dos anos 1930 ou no taquicardíaco cinema de 2015.  No livro, a gente pode se deter, voltar algumas páginas, consultar um diálogo, checar uma data, ou seja: as pistas continuam ali onde o romancista as colocou, e o leitor volta lá quantas vezes quiser. É possível uma leitura não-linear.

Já o cinema virou um tobogã. Os Suspeitos tem um excelente roteiro, que faz um bordado complexo de peripécias e de agentes duplos, onde nunca se tem certeza de nada.  É num certo sentido um filme sobre o talento do repentista que não é poeta, mas é um contador de histórias.  Só que no cinema a projeção do filme é linear, sessão contínua até o fim. Filme de sala. As pistas passam, mas passam muito rápidas, piscou perdeu.  (Muitos diretores se comprazem em mostrar de novo tudo, no final: “olha aqui, eu mostrei bem claro...” ) Só em casa, com DVD e controles, ele vai ter com o filme uma experiência tão livre quanto a que um leitor tem com um livro; uma dimensão a mais, para poder saltar pra qualquer ponto da história.




quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

3723) O tio de Tonta (29.1.2015)




(ilustração: Leszek Bujnowski)

Tonta era na verdade Antonia, uma amiga nossa que morava perto da palhoça do “Buracão”. De vez em quando a gente ia fazer um pit-stop na casa dela antes de ir para os shows no ginásio da AABB. Tonta era uma menina ótima, topava todas, gostava de reunir a galera na casa dela para ouvir música. E ela tinha um tio que tinha a mania de tocar nas coisas com um dedo. A gente sentava na sala, uma turma de seis ou sete, ouvindo música, conversando, abrindo uma latinha de cerveja; alguns iam para um terraço lateral, para acender um cigarro sem empestar as cortinas. E daí a pouco o tio chegava.

Era um cara baixo e gordinho, irmão da mãe dela, solteirão, aposentado precoce por motivos de saúde, passava o dia ouvindo rádio e fazendo palavras cruzadas. Quando a sala se enchia de gente, ele vestia uma roupa apresentável e vinha sentar num canto, discreto, sem interferir.  Tonta dizia que ele se sentia melancólico e achava os jovens muito alegres e bem humorados.

O problema era o cacoete. De início eu não reparei (ninguém reparou), mas aos poucos fomos notando que ele levantava no meio da conversa, ia andando como quem não quer nada, aí estendia a mão, tocava num vaso sobre a mesa de centro, e voltava a sentar.  Às vezes, aproximava-se da gente para perguntar as horas ou algo assim, e tocava no ombro da gente. Só comecei a me intrigar no dia em que ele alegou estar vendo uma aranha na parede, arrastou uma cadeira, subiu nela e tocou numa foto do Led Zeppelin que Tonta tinha pregado por cima da cristaleira.

Tonta explicou que era uma compulsão.  De repente ele via uma coisa que já tinha visto mil vezes e sentia uma pressão irresistível de tocar nela. Pra que? Ele mesmo não sabia.  Sabia somente que, enquanto não tocasse, aquele comichão mental não o deixaria em paz.  Não adiantava ir para o quarto, se trancar, a coisa não passava.  (Uma vez, quando nos despedíamos à porta, ele veio do quarto correndo, tocou na mochila de alguém, e voltou correndo pro quarto.)

O que quer dizer isso?  A família já tinha assimilado aquela neura, porque vou te contar, poder assimilativo de famílias é uma coisa vasta. E afinal, todo mundo não é assim um pouco?  A gente vê um livro e não descansa enquanto não ler, ouve falar numa cidade e tem que ir lá de qualquer maneira, conhece uma mulher numa festa e não sossega enquanto não experimentar. E parece que depois que toca, desencanta. Aquela imagem vira uma realidade, perde as mil ficções que tinha sido. Vira uma coisa a mais, uma pessoa a mais, um pedaço do mundo que deixou de ser um pedaço da gente. Vira uma coisa possível, ao alcance de uma ponta de dedo banalizadora.





quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

3722) A borboleta e o filósofo (28.1.2015)


É uma das fábulas preferidas de Jorge Luís Borges. Ele a cita com frequência, faz associações de idéias entre ela e diferentes coisas.  É a história de Chuan Tzu, o filósofo que sonhou que era uma borboleta, e sonhou isso com tal verossimilhança que ao acordar já não sabia se era um homem que tinha sonhado que era uma borboleta, ou se era uma borboleta sonhando agora que era um homem.

Borges, numa das suas Norton Conferences (1967-68, publicadas em 2000) examina mais de perto essa imagem.  Diz ele que em primeiro lugar a história alude a um sonho, e basta isso para contaminar de sonho qualquer realidade que se siga. Depois, porque a escolha do animal, a borboleta, não poderia ter sido mais adequada. 

De fato, uma borboleta é um bom exemplo de criatura que sabe o que é se transformar noutra.  Note-se que Chuan Tzu não sonha que é uma lagarta, então, quando ele se imagina e se projeta como borboleta, está admitindo que sua vida como Chuan Tzu tinha sido apenas o preparatório lagartóide para aquilo. Voltar a ser Chuan Tzu seria dar um passo atrás. Como o astronauta do conto de Clifford Simak (“Desertion”), que se transforma numa criatura jupiteriana, descobre a felicidade e não admite ser restaurado como humano.

A borboleta tanto é uma criatura inquieta, que vive sempre buscando algo, como é algo que atrai os olhares e as admirações em volta.  Chuan Tzu tem, na sua dimensão lepidóptera, o dom da beleza, que talvez lhe falte no mundo de cá, onde ele é filósofo gordinho ou um calvo comerciante.  Sem falar no voo, na terceira dimensão onipresente, na leveza.  Ser borboleta era o LSD de Chuan Tzu. Imagine-se como devia ser bom, acordar nos dias pares como Chuan Tzu, dormir, acordar nos ímpares como borboleta. 

“As borboletas têm algo de delicado e evanescente”, diz Borges. Claro que outros animais poderiam servir; mas a borboleta é perfeita.  Borges argumenta com simplicidade que seria inverossímil esta história com um tigre, uma máquina de escrever, uma baleia. Nenhum desses (concordo) parece ser capaz de pensar Chuan Tzu de volta, ou mesmo de dar a Chuan Tzu uma dimensão a mais que ele não tinha.  A borboleta, por dois ou três traços apenas, já ganha de goleada.

E deve ser divertido para ela, também.  Ter braços, perna e barriga.  Um corpo que tem de ficar preso ao chão.  Lidar com objetos!  Uma aventura fascinante.  Independente do animal escolhido, essa fábula é a fábula da intercambiabilidade das consciências.  Lovecraft, Edgar Rice Burroughs, Edmond Hamilton e outros escreveram histórias sobre mentes que conseguem trocar de corpo.  Ou corpos capazes de intercambiar suas mentes.






terça-feira, 27 de janeiro de 2015

3721) "O Pedestre" (27.1.2015)



Reza a lenda que alguns anos atrás Bob Dylan foi fazer um show numa cidade tamanho médio qualquer. Chegou na véspera, instalou-se no hotel, e ao anoitecer saiu sozinho para dar uma volta no quarteirão. 

Era um desses bairros pacatos, casinhas simples, com gramados sem cercas etc. e tal.  Ele saiu pelas calçadas, gozando o sabor e o prazer do anonimato (coisa que não é pra qualquer um), até que um carro da polícia parou e os agentes desceram empunhando lanternas e armas. Mandaram que erguesse os braços.  Alguém tinha visto um homem desconhecido, de casaco e chapéu, rondando as casas; calafrios de alarma percorreram aquelas vulneráveis medulas suburbanas.  

A rádio patrulha foi chamada, e não adiantou dizer “Sou Bob Dylan, o roqueiro.”  E daí?  Os policiais eram jovens, nunca tinham ouvido falar.  Ele levou o resto daquela noite para desmanchar o mal entendido.

S. J. Perelman, escritor e humorista norte-americano, trabalhou em Hollywood.  Numa entrevista à Paris Review, falou desse período, quando o repórter lhe perguntou sobre William Faulkner, que também mamou nas tetas do Bezerro de Ouro, por mais equívoca que seja esta metáfora. 

Perelman disse: “Às vezes, num domingo de manhã, ele passava caminhando em frente à casa em que eu morei, em Beverly Hills. Eu reparava nele somente porque o simples fato de sair andando, naquela área, o caracterizava como um excêntrico.  E ele acabou se metendo em complicações.  Um carro da patrulha o deteve uma vez e o fez passar um mau pedaço. A polícia estava convencida de que ele era olheiro de alguma quadrilha que roubava jóias, e estava sondando as residências elegantes.”

Um dos primeiros contos de Ray Bradbury que li foi “O Pedestre” (1951), incluído no livro Os Frutos Dourados do Sol. Nele, um homem sai caminhando à noitinha, no ano de 2053, por uma cidade onde todo mundo está trancado em casa, vendo TV. Estão desertas as calçadas. Um carro da polícia o aborda.  Ele diz que não fez nada demais, está apenas caminhando.  A polícia ordena que ele entre, e o leva consigo. “Para onde?”, pergunta ele. E a resposta: “Para o Centro Psiquiátrico de Pesquisa de Tendências Regressivas”.

O que é a ficção científica?  É a literatura que prevê o futuro?  Não.  É a literatura que olha o presente, vê o presente em movimento, vê o presente como uma forma que se avoluma, cresce, toma conta do mundo.  Presente e futuro são pontos diferentes de uma única curva. A beleza da FC é quando ela, usando apenas dois pontos, nos faz sentir a força da curva, a grandeza da curva, a ameaça terrível guardada em cada curva que se ergue à nossa frente bela como um tsunami.




domingo, 25 de janeiro de 2015

3720) A primeira geladeira (25.1.2015)



A primeira geladeira lá de casa foi comprada quando eu teria uns sete anos; lembro a época porque foi quando a gente morava na rua Miguel Couto, em frente aos antigos armazéns de algodão de Araújo Rique, onde depois funcionou a Cavesa. (Nem sei o que existe ali agora.)  

Depois de um período de vacas magras, meu pai começou a se equilibrar financeiramente; acho que foi quando começou a trabalhar como secretário na Federação das Indústrias.  A geladeira foi anunciada aos quatro ventos, aguardada com avidez, festejada com algazarra quando foi desembarcada da camionete e carregada pelos brucutus para a sala, com todos nós pulando em volta.

A primeira epifania foi quando os carregadores se retiraram e minha mãe plugou a tomada na parede. Toquei aquela superfície externa e a senti vibrando, zumbindo, ronronando como um bicho vivo.  

A primeira decepção foi quando a abri e constatei que estava vazia.  Minha expectativa era abri-la e ver lá dentro tudo que eu via nas fotografias: bandejas de maçãs, pernis, tortas, pudins, saladas de frutas, e refrigerantes, muitos refrigerantes.  Minha mãe explicou que a loja vendia só a geladeira, e como sou um cara prático aceitei o argumento, mas, toda vez que eu abria aquela porta e olhava, ela me parecia uma boca sem dentes.

Tinham nos prometido que nunca mais teríamos que comprar picolé ao picolezeiro que passava na calçada, porque fabricaríamos nossos próprios picolés.  Nova decepção quando vi minha mãe preparando refresco de laranja e derramando naquelas caçambas de alumínio, porque eu figurava o picolé completo, comprido, enrolado num papel úmido e espetado num palito – e em vez disso o que era preparado diante dos meus olhos eram aqueles cubos tortos e pálidos, que pareciam com icterícia.  Sem falar na demora, que fazia Dona Cleuza ralhar: “Se você enfiar o dedo mais uma vez nessa caçamba eu tiro-lhe o couro com uma surra de chicote!” 


A luz interna era outro mistério, porque sempre que abríamos a porta ela estava acesa.  Dilema filosófico: a luz permanecia acesa quando a geladeira estava fechada?  Precisei de algumas dezenas de abridas-e-fechadas-de-porta (clandestinas, pra não ir dormir com o couro quente) para perceber o artifício do botãozinho interno que a porta pressionava ao se fechar.  

Mas os picolés eram picolés mesmo, daqueles de doer no dente quando mastigados.  E acima de tudo tínhamos aquela sensação orgulhosa de estar adentrando a Modernidade, de respirar o ar condicionado da civilização. Quando Brasília começou a ser construída, aquele projeto cibernético e ciência-ficcional me pareceu uma mera expansão da nossa geladeira, um eco distante da chegada triunfal do nosso Futuro.




sábado, 24 de janeiro de 2015

3719) Sim, General (24.1.2015)


“Se tem uma coisa que eu não suporto, seja em quartel, seja em campo de batalha, é aquele sujeito da mentalidade que eu chamo Sim General.  É o cara que você diz: “Vá lá no meu alojamento e traga meu sapato marrom com cadarço amarelo”, ele pergunta: “O esquerdo ou o direito, General?”.  Não adianta querer dar um tiro nele. Não resolve.  Diga: “Os dois” e vá cuidar da vida. O mundo onde vive esse pessoal todo cheio de pruridos de especificidade é um mundo de infinitas pulgas, infinitos carrapichos.  Um mundo de muito cabelo branco e pouco sossego.

“No começo da guerra, quando estávamos passando-no-rodo as democracias vizinhas, tudo eram flores, tudo cheirava a fumaça comemorativa. Mas agora não.  Cada telegrama que é rasgado, aberto, erguido e lido por doze pares de olhos traz uma notícia pior que a anterior. O inimigo fecha o cerco, com tropas que pontilham a silhueta da colina como um mostrador de relógio.

“Nem sei se estou operando dentro das minhas prerrogativas militares e jurídicas, mas espero que sim, porque é apenas o mais desinteressado dos ideais que me move.  Mas tomo a iniciativa de denunciar: Quem nos destinou a nós, para o sacrifício?  Foram os políticos, meros civis, ainda menos preparados do que nós militares, mesmo admitindo que a maioria de nós passou de ano em ano pelo-pau-do-canto. Graças ao protecionismo deste ou daquele grupo, passamos, estamos aqui, e de repente querem que justamente nós ganhemos a guerra que eles declararam e ficaram assoprando as unhas nos seus gabinetes.  Me parece uma grande injustiça contra nossa geração. Na verdade nunca quisemos invadir ninguém, bombardear ninguém, dominar o planeta. Queríamos apenas um emprego com plano de carreira bem estabelecido e aumentos acima da inflação.

“E eis-me cercados de tecnocratas. Digo: “Bem, então amanhã vamos desembarcar na praia deles.” E os sim-general querem saber detalhes, miudezas: a que horas, com quantos homens, por que lado...  Eu os despacho da tenda aos pontapés.  Sou um general! Os técnicos são eles!  Eles que decidam essas picuinhas!  Já não basta a responsabilidade nossa?  Quem é que presta contas ao Estado Maior, ao Chefe Supremo das Forças Armadas?  (Que de quatro em quatro anos periga ser uma mulher ou um negro, ainda por cima!) Somos nós.  Não me perguntem detalhes: hora do desembarque, alvos da artilharia, cobertura aérea.. São minúcias técnicas, não venham a mim, perguntem aos técnicos. Eu é que corro o risco maior de todos, o de entrar para a História como “o General que perdeu uma batalha praticamente ganha”. E tudo que eu queria era um pijama e meia dúzia de medalhas.”




sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

3718) Humberto Teixeira 100 anos (23.1.2015)



No dia 5 de janeiro passado foi comemorado o centenário de nascimento de Humberto Teixeira (1915-1979), o primeiro grande parceiro de Luiz Gonzaga, a quem coube criar o baião junto com o sanfoneiro do Exu.  

Humberto foi uma figura muito diferente de Gonzaga.  Trouxe para o baião o lado literário, urbano e culto, enquanto Gonzaga forneceu o talento telúrico. 

Nascido no Iguatu (CE), teve formação musical desde a infância, tocando flauta e bandolim.  

Ao contrário do que se imagina, não era apenas “o letrista de Gonzagão”. Também compunha melodias, e sem dúvida há muitas parcerias dos dois em que ele fez o principal da letra e da música, e Gonzaga contribuiu com arranjo, floreios, refrão, etc.  Em qualquer parceria musical existem diferentes proporções da participação de cada um, não é aquela coisa mecânica de “A faz a letra e B faz a música”.

Estudando em Fortaleza, Humberto participou de grupos musicais e chegou até a acompanhar filmes mudos ao vivo, como se fazia na época.  

Já no Rio, largou estudos de medicina e formou-se em Direito. Foi vendedor de óculos rayban, foi agente de restaurante, foi telefonista.  Enquanto isso, compunha por conta própria. 

Já tinha mais de 100 músicas editadas quando, através do seu cunhado Lauro Maia (também cearense e compositor), conheceu Gonzaga; a história da criação e do sucesso do baião já é conhecida de todos.

Humberto queixava-se da historiografia da MPB, que, passava direto das canções românticas dos anos 1940 para a Bossa Nova dos anos 1950 sem mencionar que nesse intervalo houve dez anos em que só tocava baião no Brasil. 

Foi deputado federal pelo Ceará, mas ele mesmo dizia: “Política é um negócio que você tem que usar de muitas éticas, e a minha ética é uma só”.  Trabalhou muito pela implantação dos direitos autorais e pela divulgação da música brasileira no exterior, criando caravanas que percorreram muitos países. 

A parceria com Gonzaga foi interrompida porque naquele tempo (vejam só) era proibido registrar músicas de parceiros que pertencessem a entidades arrecadadoras diferentes. Quando Gonzaga foi para a SBACEM, Humberto decidiu permanecer fiel à UBC e a dupla se desfez. 

Ainda assim, não saíram perdendo: Gonzaga engatou a parceria com Zédantas, e Humberto passou a assinar sozinho suas músicas, a começar pelo baião “Kalu”, gravado por Dalva de Oliveira, Yves Montand, Edith Piaf e mais umas 60 gravações mundo afora.  

Vale a pena procurar o filme O Homem Que Engarrafava Nuvens, de Lírio Ferreira e o livro Humberto Teixeira, voz e pensamento (Banco do Nordeste, Fortaleza, 2006) para conhecer melhor esse poeta que fez História.









quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

3717) A filosofia num gesto (22.1.2015)




(ilustração: Saul Steinberg)

“Quem quiser que fale em Isaque Nilton ou em Arquimedes, tá ligado? Pra mim o grande gênio da humanidade é o caba que sabe fazer uma coisa completa. O ruim é explicar, prum caba que não sabe, o que é uma coisa completa. Eu tive um professor, minto, uma professora, que falou uma vez sobre a importância da filosofia. Ela disse que a importância da filosofia era explicar cada coisa de uma maneira que nunca mais coubesse outra explicação. Aquilo bateu.

“Passou-se.  Anos depois estou eu na Europa, bolsista com bolsa atrasada, pagando aquele mico de pedir pra colega europeu pra ir jantar na casa deles.  Europeu é um povo travadão.  Todo europeu fala com a gente por trás duma parede de vidro à prova de bala. Se você diz que tá sem jantar há três dias ele subentende logo que é desde Cristóvão Colombo, manja como é? Aí entorta a boca e diz na língua dele: “Então bora lá”. Aí bota um prato só pra você e fica sentado ali, fumando e olhando como é que um brasileiro come, tá ligado?

“Por isso eu não esqueço minha lição de filosofia. Um nego véio que era porteiro do prédio da tal Faculdade. Era um cara de cabelo meio branco, de um daquele países subdesenvolvidos da África, um cara legal.  Quando rolou essa situação ele me levou lá no quartinho dele e providenciou uma macarronada.  Acendeu uma estaca do tamanho do meu braço e ficou baforando enquanto escorria o macarrão.  Ralou um queijo gelado, duro que só tijolo, deu uns sopapos no fundo dum ketchup do tempo de Colombo, sentou na mesa comigo e a gente começou a comer.

“Meu irmão, eu percebi, eu fiquei olhando o jeito como o cara cravava o garfo no macarrão, como ele erguia aquela moita enorme de macarrão, e de baixo dela subia aquela lufada de fumaça, e ele parava o braço com o garfo erguido, deixava aquilo se dissipar, aí abaixava a garfada de macarrão de volta no prato, largava ela ali, cravava outra garfada noutro ponto, voltava a erguê-la suspensa, e liberava outra nuvem de fumaça, esfriando o interior daquela espécie de turfa. 

“E nesse instante, véio, foi muito, muito maneiro! Eu percebi que um cara pode ser negão e proleta, outro pode ser doidão e drogadaço, outro retardado e bugado de nascença, mas esse cara pode saber o que está fazendo, e fazer com arte.  Só de olhar o cara fazendo aquilo eu entendi a natureza da filosofia e isso redefiniu minha vida.  Parei de pensar em tudo e comecei a pensar somente na coisa de cada instante, aprendi a deixar o mundo lá fora. Não sei se foi o tamãe da fome, mas a filosofia desembarcou em mim naquela hora.  Larguei o curso naquela noite.  Minto: meu curso aconteceu naquela noite. O resto foi aeroporto e correr pro abraço.”





quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

3716) As Duas Éticas (21.1.2015)



(manuscrito de Max Weber)

Entre tantas discussões sobre fatos recentes, encontrei neste blog (http://tinyurl.com/mhqodkc) uma menção muito útil a dois conceitos de ética propostos por Max Weber, um velho conhecido dos meus tempos de Ciências Sociais na universidade (curso que nunca concluí: falaram mais alto o cinema, a cantoria de viola e a boemia). 

Weber distinguia dois tipos de ética, que ele chamava de “Ética da Convicção” e “Ética da Responsabilidade”. 

Na Ética da Convicção, o indivíduo se disciplina a agir de acordo com suas convicções, não importa quais as consequências. Suas convicções (ou princípios) são o que ele tem de mais importante, aquilo que o define, e é preciso sempre agir de forma coerente com eles. 

Os humoristas do Charlie Hebdo, por exemplo, comportavam-se dessa forma, mesmo sabendo que estavam há tempos ameaçados de morte.  Não transigiam.  Essa ética comporta uma boa medida de coragem pessoal, e também uma certa medida de desdém pela própria sorte.  O sujeito movido por ela é geralmente o tipo que “dá murro em ponta de faca” (para permanecer fiel aos seus ideais), é o cara que “não abre nem prum trem carregado de pólvora com um doido fumando em cima” (como diz Zelito Nunes).

Na Ética da Responsabilidade, por outro lado, o sujeito considera as consequências dos seus atos e admite desobedecer aos próprios princípios se for para evitar um mal maior.  O valor de suas ações não é medido em função da coerência íntima de suas idéias, mas do resultado objetivo de suas escolhas, ou seja, o que vai acontecer se ele agir assim ou assado. 

Quem se guia por essa ética costuma ser é um negociador mais flexível, que em circunstâncias diferentes pode assumir posições diferentes, mesmo ao preço de ser taxado de incoerente ou de infiel aos seus próprios valores.  É o caso, por exemplo, do indivíduo que admite mentir para salvar uma vida, ou sacrificar sua honra pessoal visando um benefício coletivo. Para esses, “fazer a coisa certa” importa mais do que ser impecavelmente fiel a si mesmo.

Weber dizia que “a vida é uma série de decisões cruciais através das quais a alma escolhe seu próprio destino”, e achava que a distância entre as duas posturas não é tão abismal quanto parece; que talvez seja possível conciliar as duas atitudes num comportamento único e coerente. 

É a velha dicotomia entre o comportamento Técnico (seguir inflexivelmente a letra-da-lei) e o comportamento Político (fazer arranjos, jeitinhos e conchambranças desde que para uma finalidade nobre).  Não existe fórmula mágica, mas ao analisar as ações de alguém vale a pena indagar qual dessas éticas ele tinha mente ao tomar suas decisões.





terça-feira, 20 de janeiro de 2015

3715) "No Sertão onde eu vivia" (20.1.2015)



Diz-se que a crônica é um gênero literário tipicamente brasileiro e sempre são invocados os nomes de Rubem Braga, Fernando Sabino, Luís Fernando Verissimo, além de outros, hoje menos lidos, como Carlos Eduardo Novaes ou Henrique Pongetti.  O que nem sempre se comenta é que dentro do gênero crônica existem subgêneros, e um deles é a crônica rural, que se confunde com a anedota e o “cáuso”.

No Sertão Onde Eu Vivia de Zelito Nunes (Recife, editora do autor, 2014) é um bom exemplo da crônica que, ao invés de descrever os mil e um aspectos da rica e multiforme vida urbana descreve os mil e um aspectos da rica e multiforme vida rural.  Digo assim para combater o conceito equivocado de que a vida urbana é de uma multiplicidade inesgotável de tipos humanos, interações sociais, formas de comportamento, demonstrações de humor, inteligência, presença de espírito, etc., e que a vida rural é uma pasmaceira uniforme ao som de mugidos de gado.

Ledo engano. Sem falar em Leonardo Mota etc., aqui mesmo na Paraíba tivemos o inesgotável José Cavalcanti e seus livrinhos recheados de tipos populares e linguagem pitoresca. A vida nos sítios, fazendas e vilarejos do interior pode, sim, ser tão rica e variada quanto a vida que fervilha em torno do Mercado Modelo ou na Praia de Copacabana. Precisa apenas de gente com olhos e ouvidos atentos, excelente memória, e capacidade para colocar no papel esses episódios que, também no interior, mal cabem no estreito espaço das 24 horas de um dia.

Zelito Nunes, nascido em Monteiro e radicado no Recife, tem uma série de coletâneas de crônicas nessa veia (uma delas, Folha de Boldo: Notícias de Cachaceiros, em parceria com Jessier Quirino), retratando a vida do Cariri e do Pajeú.  Seria, mal comparando, a mesma riqueza de tipos (só que no meio rural) que encontramos na Zona Norte carioca da Rua dos Artistas e Transversais de Aldir Blanc. Além dos versos de cantadores que anota há décadas, Zelito Nunes conta histórias de camelôs, fazendeiros, vaqueiros, confusões entre bêbos e donos de bodegas, soldados de polícia, arruaceiros.  Aventuras mirabolantes ou desastradas vividas por gente com um parafuso a menos na cabeça e uma vida mais interessante do que a nossa. Sem falar nas recordações de uma infância vivida na fazenda, como a história da cabra com medo de lanterna elétrica ou o dia em que ele fugiu de casa e ninguém da família percebeu.  São memórias de uma vida rústica e aventurosa, evocada nesta sextilha de Manoel Filó: “Namorar em Mundo Novo / todas as noites eu ia / voltava de madrugada / quando o sono me tangia / molhando a barra da calça / na rama da melancia.”




domingo, 18 de janeiro de 2015

3714) Dicas de literatos (18.1.2015)



(Susan Sontag)

Parece que cada escritor deixa, antes de morrer, um documento em que repassa para as gerações futuras as lições que aprendeu durante a vida. Sou um leitor atento de qualquer matéria que se intitule “Dicas Literárias” ou “Conselhos de um Escritor Profissional”. Não porque imagine descobrir ali a meia dúzia de fórmulas mágicas que irão me tirar dos meus próprios atoleiros: por definição, um atoleiro literário é um lugar de onde só se sai sozinho.  Mas me consola pensar que os lamaçais onde encalho já foram visitados por gente melhor do que eu.

Nem todo conselho de escritor se refere a sintaxe ou estilo.  Um dos mais úteis que conheço é o da desconhecida (para mim) Helen Dunmore: “Um problema num texto geralmente fica mais claro se você faz uma longa caminhada.”  É uma grande verdade, embora estilisticamente confusa, pois ela devia ter dito: “Sua mente fica mais apta a resolver problemas de texto se estiver recebendo a irrigação sanguínea e os hormônios positivos que uma boa caminhada costuma produzir.”  Chico Buarque diz que costuma compor suas letras cantarolando mentalmente enquanto caminha, e a prova é que as letras dele são tão boas quanto as minhas.

Escrever é na verdade uma tarefa complexa, que levou Susan Sontag a dizer que ela é exercida por quatro “pessoinhas” que temos dentro de nós: 1) o maluco ou obcecado; 2) o idiota; 3) o estilista; 4) o crítico. Segundo ela, o maluco fornece o material, o idiota o executa, o estilista fornece o bom gosto e o crítico fornece a inteligência.  Ela chega a aduzir que, na falta do 3 e do 4, mesmos os dois primeiros são capazes de produzir um texto publicável.

Samuel Delany diz: “A boa escrita é clara. A escrita talentosa é energética.  A boa escrita evita os erros. A escrita talentosa faz com que aconteçam coisas na mente do leitor, coisa vívidas, poderosas, coisas que a escrita meramente boa, que se detém nos aspectos de claridade e de lógica, não consegue produzir.” 

Ou seja: não basta a correção, o “seguir o Manual”.  É preciso injetar na escrita uma energia extra, uma descarga além-da-conta de força criativa. Isso não significa, de modo algum, uma superabundância de palavras ou de efeitos. Às vezes, basta uma frase com grande concentração de sentido para produzir um efeito que seria diluído, por um escritor menos hábil, em um parágrafo inteiro de redundâncias. A escrita energética brota muitas vezes de conflitos entre as palavras, de um texto cheio de elementos contraditórios ou inusitados, que faça o leitor pensar, que obrigue o leitor a uma parceria, que produza na mente do leitor um efeito de excitação semelhante ao que ele teria fazendo uma longa caminhada.




sábado, 17 de janeiro de 2015

3713) Revolucionários (17.1.2015)




(ilustração: Pierre-Adrien Sollier)

Eu tenho um amigo meu que é contra a Revolução Francesa.  Seu propósito na vida é provar que aquilo foi um equívoco gigantesco, uma catástrofe.  Está com uns 45 anos e dedica todas as horas vagas (é bancário) ao estudo da RF e à publicação de textos minuciosos, cheios de notas de rodapé, provando por a+b que... O que ele prova?  Não entendi até hoje, porque tudo que sei daquela conflagração aprendi no curso ginasial.  Depois, só me lembrei dela no filme Scaramouche e nos romances do Pimpinela Escarlate.

Nada pode demover Danilo (nome dele) da sua campanha.  Ontem estávamos em turma, tomando cerveja, falando de França e de humorismo, e no primeiro remanso da conversa ele se virou pra mim e disse: “Você já leu A História da Guilhotina, de Kershaw?”.  Eu não sou homem de dar o braço a torcer, e driblei a questão: “Tenho, mas não li ainda.”  Ele agarrou o mote como quem agarra uma bola de beisebol tacada rumo à torcida: “Este é o problema, as pessoas não se informam.  Ficam repetindo clichês feito papagaios, e não vão às fontes primárias.”

Aí entrou no discurso de sempre, que todo revolucionário na verdade só quer derrubar o rei pra sentar no trono, que todas as revoluções terminam do mesmo jeito, Robespierre era um paranóico, Danton um bunda-mole, e que isso que aquilo; nem Lecomte de Lisle escapava, porque para ele a Marselhesa era “um dos poemas mais sanguinolentos e totalitários já escritos”, só se salvava por causa da melodia, e olhe lá, porque o Hino Nacional Brasileiro, visivelmente plagiado dela, a tinha estragado para sempre.

Diga-se, por justiça, que ele também condenava com veemência a Revolução Americana (“Thomas Jefferson era um escravocrata, um demagogo, pior do que Joaquim Nabuco!”), a Revolução Russa (“uma quadrilha de barbudos fedendo a vodka, invadindo os palácios mais bonitos da Europa!”) e a Revolução Mexicana (“essa nem intelectuais teve, era só povo e carnificina”).  Mas a nêmese dela era a Francesa, e todo este relato é para chegar num dos seus axiomas.

Diz Danilo que quem sobe ao Poder pelo sangue só pode ser apeado dele pelo sangue. E que a conquista sangrenta mancha indelevelmente esse Poder, porque o ser humano é como aqueles tigres mansos criados em cativeiro, alimentados com uma chã-de-dentro qualquer, e que quando sentem o cheiro de sangue humano eriçam os bigodes e espetam as orelhas.  Políticos e militares são como tigres, diz ele. Subir ao trono matando desperta neles uma memória primordial de quando nossos tataravôs cortavam gargantas sem prestar contas ao Judiciário. Sentem-se não apenas capazes de tudo, mas dispostos a tudo para se manter ali. “Son jour de gloire est arrivé.”


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

3712) "Leandro, Vida e Obra" (16.1.2015)



Já me bati muito aqui nesta coluna por biografias de autores importantes, não para saber fofocas da vida pessoal deles, mas para entender melhor seu processo de formação literária, suas leituras e assimilações (prefiro este termo a “influências”), o ambiente cultural onde viveram, as idéias com que interagiram.  

E também o modo como passaram (quando foi o caso) de autor diletante para autor profissional.  Como lidaram com as reações (boas ou más) de editores e leitores, da crítica, da censura, dos colegas.  Como encararam seu eventual sucesso ou fracasso.  

Uma biografia criteriosa e bem pesquisada nos ajuda a ver como os acidentes de percurso foram dando forma ao jorro de criação do autor, assim como o terreno e as pedras dão forma à correnteza de um rio.

Arievaldo Vianna produziu agora a biografia Leandro Gomes de Barros – vida e obra, publicação conjunta das editoras Queima-Bucha (Mossoró) e Fundação Sintaf (Fortaleza). 

Pode não ser a primeira biografia do criador da Literatura de Cordel, mas é a primeira que encontro, e seu grande mérito é o levantamento de dados pessoais de Leandro, através de documentação bem fundamentada.  O trabalho solitário e por-conta-própria do autor o levou aos descendentes do poeta, principalmente a sua sobrinha-bisneta Cristina Nóbrega, que deu acesso a uma documentação preciosa.

Arievaldo traça a cronologia básica da vida de Leandro, nascido em Pombal (1865), criado em Teixeira até os 15 anos, e depois indo para o Grande Recife, onde ficou até sua morte em 1918. Sem forçar a barra, ele mostra os aspectos autobiográficos dos seus folhetos, inclusive um interessante paralelo entre o anti-clericalismo do seu personagem mais famoso, Cancão de Fogo, e a difícil relação de Leandro, garoto, com seu tutor e tio pelo lado materno, o padre Vicente Xavier de Farias.

O livro tem fotos e reproduções de documentos, citações precisas dos versos de Leandro, e aborda suas relações com outros criadores do cordel como Chagas Batista e João Martins de Athayde.  

A história editorial dos seus folhetos (que Ruth Terra havia abordado em Memórias de Lutas, Ed. Global, 1983) é um tema fascinante, e difícil de reconstituir depois de mais de um século.  

O livro de Arievaldo tem tudo para ser encorpado com novas informações e análises em edições futuras, visto que pesquisas dessa natureza nunca se esgotam. No ano do sesquicentenário do nascimento de Leandro, este livro dá o pontapé inicial para as comemorações de uma explosão da cultura nordestina que só teria paralelo meio século depois, nos anos 1940, com a criação do baião por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.




quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

3711) A Vida e os Tempos de King Mariola (15.1.2015)



Cap. 1 – De como a professora da creche deu um grito agudíssimo de terror que fez todas as crianças começarem a chorar ao mesmo tempo, numa tarde pacífica de abril, na cidade de Vila Irmã, quando Anistaldo Setúbal, de oito anos, bradou, de pé em cima de uma carteira da sala, empunhando o extintor de incêndio que acabara de arrancar da parede do corredor: “Meu nome é King Mariola!  King Mariola, nessa butina!  Quem me chamar desse outro nome horroroso eu torrarei com este meu lança-chamas!” – após o que, constatando o deslize retórico, ele próprio se dobrou na gargalhada.

Cap. 2 – De como o time de vôlei do 2º. grau do colégio Paulo VI, antes do jogo decisivo contra o colégio Pio XII, se quedou perplexo quando, na hora da fala motivacional antes de entrar em quadra, momento em que o entusiasmo guerreiro inspira frases como “Bora lá, moçada!”, o levantador King Mariola provou por a+b que o Papa Pio XII tinha sido colaborador dos nazistas, e bradou: “Bora lá, galera, vamos esmagar os subterrâneos do Vaticano, desmascarar os títeres do Reichstag, repensar o Ocidente!”, uma chamada-na-chincha com tal poder persuasivo que o time ganhou por 3 sets a zero, coisa que jamais acontecera em sua história.

Cap. 3 – De como rapidamente nos transportamos para dez anos à frente, numa reunião na Universidade Metodista do município  de Coronel Valdano (Tocantins), onde King Mariola se tornara o mais jovem chefe do Departamento de Artes, e ao questionar a escassez de verbas remetidas por um relutante Ministério da Educação ele deu um murro na mesa e propôs: “Pois então vamos mandar pro Ministério o relatório dizendo o que eles querem ouvir, e vamos fazer na vida real aquilo que a gente quer fazer, e pronto, eles nunca vão ficar sabendo, até porque eles estão todos naquele cu-do-mundo que é Brasília e não têm tempo de vigiar esse vice-cu-do-mundo que é o município de Coronel Valdano!”—e não é que deu certo?!

Cap. 4 – De como em seguida King Mariola deitou e rolou nos cifrões federais, e o Delegado local se achegou pensando em faturar alguns trocados, mas logo considerou que se fosse pêgo não teria tal poder de argumentação para se safar. 

Cap. 5 – De como talvez se encontre, um dia, um equilíbrio ameno, uma interligação sem imposição hierárquica, entre o impulso criativo de uma figuraça como King Mariola e o interesse coletivo da comunidade, mas isto não aconteceu ainda, então sua cidade que se cuide, amigo velho, ainda mais depois que ele encheu o saco desse ridículo apelido de King Mariola (onde já se viu?!) e está hoje agindo, sob um outro nome, bastante civil e comum, em algum ponto deste imenso Brasil.



quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

3710) 13 coisas que eu vi (14.1.2015)



Eu era pequeno e vinha chegando de ônibus em João Pessoa e naquela pontezinha do rio Sanhauá vi uma menina se equilibrando na passarela de uma palafita, e ela escorregou sem querer e caiu com tudo dentro da água.

Num hotel em Campos (RJ), eu esperava no estacionamento o carro que vinha me buscar, quando vi um hóspede parar junto de um carro todo empoeirado e escrever no vidro com o dedo: LAVA-ME POR FAVOR.

No metrô de Paris eu vi uma mulher de seus 75 anos de pé, vestindo roupas surradas, com o braço estendido e a mão em concha. Quando alguém lhe dava uma moeda, ela fechava os olhos de vergonha, e abaixava a cabeça.

Eu estava na rua olhando uma construção, e um pedreiro, do chão, jogava tijolos para outro no segundo andar, ambos ocultos por paredes, de modo que eu só via os tijolos se elevando no ar e sumindo dentro do prédio.

No ônibus para ir à rodoviária de Salvador eu passava por um campo de pelada onde bem no meio tinha um toco de árvore com um metro de diâmetro, a galera inclusive tabelava a bola no toco pra driblar os adversários.

Eu estava mexendo nos livros na estante de nossa casa na Rua Padre Ibiapina e vi uma lagartixa morta, ressecada. Ela ficou presa embaixo de um livro e morreu de fome, e o livro era a Bíblia Sagrada.

Numa rua do Flamengo eu vi, da janela do ônibus, dois caras discutindo na calçada. Um deles, mais alto, segurava pela mão o filhinho de 3 ou 4 anos. O outro era quem gritava mais, e a certa altura esbofeteou o mais alto no rosto. O cara não reagiu, e o filho não olhava para o agressor, olhava apenas para o rosto do pai.

Num lago congelado no centro de Amsterdam, vi a queda estrondosa de um patinador que devia pesar uns 200 quilos, e só depois criei coragem para atravessar o lago a pé.

Voltando de uma viagem ao Vale do Jequitinhonha, o ônibus parou para o almoço num restaurante de beira de estrada, e eu vi no quintal um papagaio, amarrado por uma correntinha a um bujão de gás no terreiro.

Vi na porta de um banheiro da Universidade Católica de BH a frase escrita a caneta, “Che Guevara não morreu”, e logo abaixo: “Deve estar comendo sua mãe agora.”

Perto de Triunfo (PE) eu vi um sítio cuja cerca de arame estava cheia de CDs pendurados, talvez para refletir o sol e afugentar os bichos.

No interior da Paraíba eu atravessei uma ponte sobre um rio seco, em cujo leito se via uma porteira, pois tinha virado caminho de gado.

Em Campina, perto da Faculdade de Filosofia atrás da catedral, eu ia andando com Leopoldo, um datilógrafo, e ele viu o salto de um sapato emergindo da terra e o arrancou, aí disse que sempre que via aquilo pensava que tinha um cara enterrado ali de cabeça pra baixo.



terça-feira, 13 de janeiro de 2015

3709) Benjamin Black (13.1.2015)



“Benjamin Black” é o pseudônimo adotado por John Banville para assinar uma série de romances policiais iniciada em 2006 com Christine Falls, e que nestes oito anos já produziu sete romances.  Fiquei prestando atenção em Banville quando vi uma palestra dele na Flip 2013 e Sérgio Flaksman (que já o traduziu) me disse que ele estava escrevendo um romance com Philip Marlowe, autorizado pelos herdeiros de Raymond Chandler.  Banville já ganhou um caminhão de prêmios literários, inclusive o Booker Prize, o mais importante da Grã-Bretanha.  Já comentei aqui o outro livro dele que li, o ótimo The Book of Evidence: http://tinyurl.com/pmepokg.

Christine Falls (2006) é o primeiro dos romances centrados em Quirke, um patologista de Dublin que depois de anos dissecando cadáveres começa a querer saber o que os trouxe ali. É uma Dublin dos anos 1950, chuvosa, depressiva, cheia de gente religiosa e inflexível. Já ia dizer que parece um “filme noir”, mas não são os altos contrastes entre preto e branco que dão o clima ao livro. Seria um “filme gray”, porque tudo é cinzento: a chuva, os prédios, os sobretudos, a moral das famílias tradicionais em cuja medula acontecem crimes inomináveis. Investigando a morte casual de uma moça, Quirke começa a descobrir uma rede de tráfico de bebês sob a proteção de organizações religiosas.

Banville tem uma prosa rica, concentrada, extrato literário puro para se tomar em gotas; Benjamin Black tem o mesmo extrato diluído numa prosa narrativa mais convencional.  Banville já declarou que se sente mais realizado com seus “thrillers” sob pseudônimo do que com os livros “sérios”, pois estes são obras de arte frustradas (como toda obra de arte), e os romances policiais acabam chegando mais perto do que queriam.  Christine Falls é um livro cruel, uma dessas histórias onde no fim todo mundo saiu perdendo alguma coisa.

“Black” descreve com conhecimento de causa a banalidade do Mal, como nessa cena em que Quirke é espancado à noite por capangas: “Quando os dois caíram sobre ele, com seus sapatos de bico de metal, parecia-lhe agora que agiam como trabalhadores comuns, carregadores de carvão, por exemplo, ou açougueiros manobrando uma carcaça desajeitada, ambos vingativamente ressentidos daquela tarefa, grunhindo, suando, atrapalhando um ao outro e doidos para que aquilo acabasse logo”.  Quirke bebe e fuma sem parar, vive sozinho (é viúvo) num apartamento minúsculo, é sarcástico, antissocial, um Philip Marlowe desencantado com o mundo. “Quando gente ruim,” diz um personagem, “acha que tem o dever de praticar o que se diz ser o Bem, a gente começa a sentir um cheiro de enxofre.”

domingo, 11 de janeiro de 2015

3708) A Gréia e a Zuêra (11.1.2015)



(foto: Christopher McKenney)

Todo humorista que trabalha e publica num país sob ditadura sabe que se falar mal do Grande Irmão pode ir para a cadeia, o hospital ou o cemitério.  Mesmo assim, humoristas do mundo inteiro topam correr esses riscos, e muitos se dão mal.  Tiro o chapéu para esses caras, porque se eu vivesse (como já vivi) num país sob ditadura eu provavelmente iria sair pela tangente e satirizar Nabucodonosor ou Calígula. 

E não me refiro apenas às ditaduras convencionais. O massacre do Charlie Hebdo em Paris, onde morreram vários desenhistas e funcionários do jornal, foi realizado por um tipo especial de ditadura que está crescendo no mundo.  Não é mais o ditador cuja estátua e efigie estão por toda parte, é o ditador oculto e às vezes anônimo, que quase ninguém ouviu falar. Não é a ditadura dos tanques de guerra na rua, é a ditadura de bomba na mochila.  Uma não é menos ditadura do que a outra.

Que o diga Salman Rushdie, perseguido durante anos por ordem de um aiatolá. O simples fato dele ainda estar vivo mereceria ser comemorado diariamente (inclusive porque é um ótimo escritor). A ditadura terrorista não é menos cruel nem menos absurda do que a Ditadura de Estado.  Não é onipresente como ela, mas por ser invisível parece estar a ponto de brotar em qualquer canto.

Todos devemos ter direito à Gréia (a deusa grega da Galhofa e da Esculhambação) e à Zuêra (a deusa africana da Gozação e do Escárnio). Sem elas, não poderíamos viver. Saber aguentar uma piada sem perder o sorriso e a pose é uma prova de traquejo social e de segurança íntima.  Quando o camarada reage com violência a uma piada, revela de pronto seu calcanhar de Aquiles.

Sendo o mundo o que é, porém, a piada é vista (e às vezes é feita) como mera ofensa sem humor, desaforo gratuito.  Humoristas vêm catucando onças com varas curtas desde que o mundo é mundo. Os humoristas deviam ser mortos, pelo que diziam?  Não. Deveriam ser proibidos de dizê-lo?  Não.  Mas todo humorista sabe que caminha em terreno minado; aceita o risco como o soldado que vai pra guerra está aceitando o seu. Que um cara tenha a coragem suicida de fazer isso é uma coisa admirável. Extremismos e fanatismos estão recrudescendo por toda parte. Esse humor demolidor e de escracho com símbolos alheios está sendo feito num contexto de guerra, mesmo uma guerra declarada unilateralmente, como a dos terroristas. Nosso verniz de democracia é tênue; às vezes basta o peso de um cartum para rachá-lo, e aí a verdadeira natureza do Poder se revela. Porque o país pode até ser uma democracia formal, mas o mundo, como um todo, continua sujeito à Ditadura do Terror.





sábado, 10 de janeiro de 2015

3707) Wolinski (10.1.2015)



E os extremistas mataram Wolinski, o único cartunista francês cujo nome e cujo traço eu sabia de cor.  Conheci a obra dele lá por 1980, em Olinda, quando eu me asilava na casa de Paulo Santos de Oliveira, perto do Alto da Sé.  Paulo era cartunista (hoje é romancista: A Noiva da Revolução) e junto à sua prancheta havia uma estante cheia de álbuns trazidos das andanças européias. Wolinski tinha aquele traço minimalista e acelerado que Henfil, entre nós, levou aos píncaros mais delirantes. Seu personagem típico era um cara careca de nariz batatudo, queixo noel-rosa, sempre cercado por sereias vulcânicas que ou se recusavam ao sexo com ele ou se ofereciam sem que ele percebesse. A sacanagem de Wolinski nada tinha da nossa sacanagem moreno-tropical, era o mundo daqueles magrelos e branquelos franceses, discutindo Godard ou Sartre mas pensando o tempo todo naquilo.  Me identifiquei no ato.

Depois saíram álbuns dele aqui, pela Editora Três, se não me engano. Foi um alívio, porque o francês daqueles baluns era um dialeto críptico muito diferente do francês do “Cahiers do Cinéma”, que eu conseguia decifrar às apalpadelas. O humor era escrachado, e, pro meu temperamento cauteloso, ousado demais.  Nem a turma do Pasquim pegava tão pesado quanto o daquelas publicações, o Charlie Hebdo, o Canard Enchainé, o Echo des Savanes, outros nomes que agora me vêm brotando na memória, por entre a fuzilaria.

Quando o sujeito passa 50 anos satirizando Deus e o Mundo, um destes dois acaba reagindo. Em geral não é Deus.  Vi uma piada ótima na esteira do massacre, um twitter em inglês dizendo: “Eu sou Deus Todo Poderoso, sou Onisciente e Onipresente, o criador dos Tempos e dos Espaços, e posso muito bem aguentar uma porra duma piada”. Já o Mundo, infelizmente, não tem o mesmo senso de humor do Pai Eterno. Não sei ainda (alguém chegará um dia a saber?) se os assassinos são fanáticos ressentidos ou se são paus-mandados para apimentar uma crise geopolítica. Ou uma terceira coisa, ainda pior que estas duas. Mas é no meu artista que penso, o artista cujo rosto só vi, pela primeira vez, nos necrológios.

Disseram os sobreviventes que os Ninja-do-Mal entraram de rifles em punho na redação e “fizeram a chamada”, mandando que todos se identificassem para serem abatidos. Nas linhas que a tinta da História deixa em branco, todo mundo é capaz de rabiscar a lápis a lenda que mais lhe agrada. Criei para mim a fantasia consolatória de que ao ouvir seu nome, pronunciado com ódio pelos enviados do ódio, Wolinski, 80 anos, uma vida plena, uma vida ganha, ligou o “foda-se”, ficou de pé e disse: “Wolinski sou eu.  Algum problema?”




sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

3706) Tudo que reluz é Louro (9.1.2015)



(Instituto Lourival Batista, na antiga residência de Louro)

Acabo de chegar do Vale do Pajeú, onde passei cinco dias que pareceram durar cinco minutos mas valeram por um curso de cinco meses. A festa do Centenário de Lourival Batista (1915-1992), o velho e querido Louro do Pajeú, juntou centenas de poetas, cantadores, glosadores, cordelistas, pesquisadores, apologistas e estudiosos da poesia para comemorar os cem anos de um dos cantadores de viola mais amados, pelo cara talentoso, paternal, boêmio e inteligentíssimo que era.

Foram cinco dias de festa, com shows de numerosos artistas e grupos locais, além de Ednardo, Xangai, Maciel Melo, Vital Farias. A família de Louro também subiu ao palco com sua filha Bia Marinho e seus netos Tonfil e os integrantes do grupo Em Canto e Poesia. Tivemos lançamentos de livros sobre poesia popular, shows de MPB e forró, mesa de glosas (a primeira que vi ao vivo, uma coisa fascinante), e apresentações de violeiros. Tive a alegria de reencontrar cantadores amigos meus há quatro décadas, como Severino Feitosa, Moacir Laurentino e João Furiba (lúcido e alegre com mais de 90 anos).

“Tudo que reluz é Louro”, o lema do evento, foi criado por Ésio Rafael e imediatamente adotado por Antonio Marinho, organizador-chefe, motor de mil cilindradas, que bate o escanteio e faz o gol de cabeça. Louro reluz na memória de todos, pelas muitas qualidades como pessoa e como poeta.  Rei do trocadilho na poesia popular, aplicou nela seu talento de charadista capaz de desmontar e remontar uma palavra em questão de segundos, sem esforço aparente.  Dono de uma língua ferina muito temida pelos adversários, era ao mesmo tempo incapaz de uma maldade.  Boêmio inveterado, passava três dias seguidos na farra, cantando, bebendo, despranaviando, e há quem diga que (como fez o sol com o bíblico Josué) a lua passava três dias e três noites sem se mexer no céu, para acompanhá-lo na farra.

Essa poesia é a poesia que brotou na Serra do Teixeira por volta de 1850 e meio século depois começou a se derramar pelo verde do vale do Pajeú, unindo Paraíba e Pernambuco num país acima das fronteiras, onde a palavra “poeta” é forma de tratamento, e onde, se um menino de pés descalços se aproxima da gente na rua, não é para pedir dinheiro, é para oferecer um verso. Durante o evento desta semana, no centro da cidade uma multidão três vezes maior assistia shows de Pablo, Harry Estigado e Calcinha Preta. São dois Brasis, duas cidades que enxergam mundos diferentes, convivendo no mesmo espaço urbano, na mesma rede de relações civis. A gente não precisa combater a cidade dos outros. Basta fazer com que a nossa continue assim: viva, alegre, forte e reluzindo, chamando a atenção dos satélites da NASA.




3705) As multidões de Zoza (8.1.2015)



(ilustração: Inferno The Royal)

Fosse Zoza um caba fraco, já tinha dado um tiro na cabeça. Porque não sei não, mas é multidão demais pruma cabeça só.  Não é todo mundo que aguenta passar o dia argumentando com tanta gente. Por exemplo. Zoza acorda às três da tarde, tem um boleto que vence hoje, e tem que pegar o Banco aberto antes das quatro.  Na verdade, ele nem sequer “lembra”. Já acorda com dois ou três gritando: “Zoza! Vagabundo! Isso é lá hora! Toma um banho, veste uma roupa decente, a conta venceu!  Bora, campeão, sejas foda, corre lá senão é mais dez por cento!”  Zoza cambaleia, esfrega água fria, derrama água fervendo, beberica sem açúcar enquanto se veste. A vinte metros do banco brota-lhe do íntimo outra multidão que o insulta. “Lacaio do capital!” Todos exigem dele uma moral, uma Ética, uma teoria verossímil do homem hodierno.  Zoza explica: o boleto etc.  Não o perdoam. O banco fecha. Olha aí Zoza, parado na calçada, olhando o muro e pesando os prós e os contras de admitir que tudo aquilo aconteceu.

Zoza mora numa pensão onde a dona, paga em dia, nem se interessa. Para ela nada está além da imaginação. Se alguém desembarcar seu galeão no continente virgem da alma dela, vai encontrar a dez metros da costa um posto de gasolina, uma borracharia, uma lanchonete-bar  e um puteiro, todos da mesma dona.  Ela não quer nem saber.  Não liga se você responde com outra voz, se seu olho faísca, porque ela inclusive é uma pessoa de mentalidade moderna, aberta.  Você pagando, e pagando em dia, pode ser, ter, fazer – o que bem quiser. Para a dona da pensão, um esquizofrênico em dia é melhor do que um sadio atrasado.

Zoza era expulso das pensões. Grupos revoltados o conduziam mentalmente aos arrastos, com ele gritando: “Não!  Não pago um centavo!  A humanidade me deve isto!”  Zoza se espantava com o próprio atrevimento, mas cedo descobriu que algumas donas de pensão não só acreditavam na sua conversa de “Diálogo Psico-Astral com uma Raça Superior”, como davam a isso um valor maior que ele próprio. A única raça superior em que Zoza acreditava era pegar, e cráu! 

E ele vive assim, senhoras e senhores, desorientado com tantas ordens peremptórias, com tantas voracidades normativas, com tantos imperativos categóricos, com tantos palpites na vida dele, pitacos sem noção, cutucadas, alfinetadas, todo mundo querendo botar voz e voto no derivar da sua vida.  Zoza tinha essa cara enfarruscada e não era para menos. É difícil se fazer ouvir por cima de uma gritaria mental tão grande, é difícil manejar um navio que cada vela puxa para um rumo diferente, é difícil fazer jus às multidões de si mesmo, tão cobradoras, sempre em busca de mais e mais.