A primeira geladeira lá de casa foi comprada quando eu teria uns sete anos; lembro a época porque foi quando a gente morava na rua Miguel Couto, em frente aos antigos armazéns de algodão de Araújo Rique, onde depois funcionou a Cavesa. (Nem sei o que existe ali agora.)
Depois de um período de vacas magras, meu pai começou a se
equilibrar financeiramente; acho que foi quando começou a trabalhar como
secretário na Federação das Indústrias.
A geladeira foi anunciada aos quatro ventos, aguardada com avidez,
festejada com algazarra quando foi desembarcada da camionete e carregada pelos
brucutus para a sala, com todos nós pulando em volta.
A primeira epifania foi quando os carregadores se retiraram
e minha mãe plugou a tomada na parede. Toquei aquela superfície externa e a
senti vibrando, zumbindo, ronronando como um bicho vivo.
A primeira decepção foi quando a abri e
constatei que estava vazia. Minha
expectativa era abri-la e ver lá dentro tudo que eu via nas fotografias:
bandejas de maçãs, pernis, tortas, pudins, saladas de frutas, e refrigerantes,
muitos refrigerantes. Minha mãe
explicou que a loja vendia só a geladeira, e como sou um cara prático aceitei o
argumento, mas, toda vez que eu abria aquela porta e olhava, ela me parecia uma
boca sem dentes.
Tinham nos prometido que nunca mais teríamos que comprar
picolé ao picolezeiro que passava na calçada, porque fabricaríamos nossos
próprios picolés. Nova decepção quando
vi minha mãe preparando refresco de laranja e derramando naquelas caçambas de
alumínio, porque eu figurava o picolé completo, comprido, enrolado num papel
úmido e espetado num palito – e em vez disso o que era preparado diante dos
meus olhos eram aqueles cubos tortos e pálidos, que pareciam com
icterícia. Sem falar na demora, que
fazia Dona Cleuza ralhar: “Se você enfiar o dedo mais uma vez nessa caçamba eu
tiro-lhe o couro com uma surra de chicote!”
A luz interna era outro mistério, porque sempre que abríamos
a porta ela estava acesa. Dilema
filosófico: a luz permanecia acesa quando a geladeira estava fechada? Precisei de algumas dezenas de
abridas-e-fechadas-de-porta (clandestinas, pra não ir dormir com o couro
quente) para perceber o artifício do botãozinho interno que a porta pressionava
ao se fechar.
Mas os picolés eram
picolés mesmo, daqueles de doer no dente quando mastigados. E acima de tudo tínhamos aquela sensação
orgulhosa de estar adentrando a Modernidade, de respirar o ar condicionado da
civilização. Quando Brasília começou a ser construída, aquele projeto
cibernético e ciência-ficcional me pareceu uma mera expansão da nossa
geladeira, um eco distante da chegada triunfal do nosso Futuro.
Lá em casa houve reunião familiar para decidir qual aparelho deveria ser comprado, geladeira ou televisão, já que o dinheiro não chegava para os dois. Fomos convencidos, o meu irmão e eu, que a geladeira era mais necessária que a TV (como se os nossos votos contassem realmente...) Depois fomos proibidos de pronunciar a palavra "geladeira" em tom muito alto, para não constranger os vizinhos cujas casas ainda não possuíam tão maravilhoso tesouro.
ResponderExcluirFinal de texto que deixa um sorriso na cara da gente. :-)
ResponderExcluirA minha lebrança similar, foi quando chegou o primeiro vídeo-cassete, trazido de Recife por Ricardo Matias. (Ali ainda funciona a Cavesa)
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