terça-feira, 31 de março de 2009

0936) A impotência da fala (17.3.2006)




(Augusto & Bilac)

Reza a lenda que Olavo Bilac, então nos píncaros da glória, esnobou Augusto dos Anjos, a quem sequer conhecia, quando circulou a notícia da morte do poeta paraibano. Ouvindo alguém lamentar o falecimento do autor do Eu, Bilac perguntou quem era ele. O interlocutor recitou-lhe um soneto de Augusto, e Bilac, dando de ombros, jogou sua pá-de-cal: “Se o que escrevia era isso, não se perdeu grande coisa”.

Parece difícil conceber dois poetas mais diferentes, mas ninguém é tão diferente que não-pegue-nem-uma-letra. Augusto era da geração pós-Bilac, e ávido leitor de poesia. Pelo menos um tema (e um tema íntimo, delicado) era comum aos dois: o tema da impotência da fala, da incapacidade de exprimir os pensamentos e sentimentos mais intensos. 

Um dos poemas mais famosos do Rei dos Parnasianos é o soneto “Inania Verba”: 

Ah! Quem há de exprimir, alma impotente e escrava 
o que a boca não diz, o que a mão não escreve? (...) 
O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava; 
a Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve... 

O jogo de polaridades e antíteses, um dos fortes de Bilac, poucas vezes foi tão belo quanto aqui. 

E ele próprio talvez lesse com perplexidade mas com respeito versos como os de Augusto em “A Idéia”, a qual vem, 

...tísica, tênue, mínima, raquítica; 
quebra a força centrípeta que a amarra 
mas de repente, e quase morta, esbarra 
no mulambo da língua paralítica!

Bilac era um czar da expressão, um mestre consumado da arte de dizer. Imagino uma cena em que ele e Augusto pudessem ter se encontrado, não sei se num café elegante (mas Augusto não os freqüentava), ou talvez no terraço da casa de um amigo comum. 

Num momento de descontração e cordialidade, talvez se pusessem a recitar. Bilac diria os versos de “Remorso”: 

Choro, neste começo de velhice, 
mártir da hipocrisia e da virtude, 
por timidez o que sofrer não pude 
e por pudor os versos que não disse!

Em Bilac, o travamento é moral e afetivo, é um travamento das emoções – o que condiz com o que se conta do poeta, ou que era um homossexual não-assumido, ou que amou sem esperanças, a vida inteira, a irmã de um amigo: 

E as palavras de fé que nunca foram ditas? 
E as confissões de amor que morrem na garganta?

Já o bloqueio de Augusto dos Anjos é um bloqueio conceitual, um bloqueio do intelecto, uma incapacidade de verbalizar visões que vão além das possibilidades da linguagem. O “Martírio do Artista” a lidar com a “arte ingrata”: 

Para falar, puxa e repuxa a língua 
e não lhe vem à boca uma palavra! 

Para Augusto, a complexidade do mundo material está além da capacidade de expressão da linguagem individual e coletiva. 

E este destino não é só do Homem. O próprio Universo material fracassa em sua auto-realização: é a “Natureza que parou chorando / no rudimentarismo do Desejo!” (“O Lamento das Coisas”), é a “sonoridade potencial dos seres / estrangulada dentro da matéria!” (“Monólogo de uma Sombra”).





0935) O elétron e o ventilador (16.3.2006)




(nuvens de probabilidade)

A Física clássica via o átomo como um núcleo (uma porção de bolinhas agrupadas num mini-cacho de uvas, chamadas “prótons” e “nêutrons”) em volta do qual giravam velozmente bolinhas menores, como grãos de chumbo, os “elétrons”, em várias camadas sucessivas. 

O átomo era tido como um sistema solar em miniatura, e quantas histórias de ficção científica foram escritos em torno desta idéia, com espaçonaves miniaturizadas descobrindo galáxias inteiras na perna de um personagem ou no interior de uma moeda.

No meu curso primário, repetíamos com a satisfação de cientistas mirins: “Matéria é tudo aquilo que ocupa lugar no espaço”. No modelo clássico, sabia-se com muita clareza o que era a matéria (as tais bolinhas) e o que era o espaço que as continha. 

Bastaram cem anos para que o conceito de matéria fosse para o espaço, e este último se visse transformado num aspecto de algo mais complexo chamado “o continuum espaço-tempo”.

O elétron é, em vez de um objeto, uma carga de energia que se movimenta em altíssima velocidade, atraída e ao mesmo tempo mantida à distância pela energia do núcleo. 

Para descrevê-lo, os físicos usam hoje termos como “nuvem de probabilidade”, porque não se pode propriamente dizer onde ele está, mas indicar as áreas ao longo das quais ele se move, e onde é mais provável encontrá-lo. 

Sempre achei que este conceito criava um curioso misto de matéria e espaço. A nuvem-de-probabilidade nos diz que o elétron provavelmente está ali, mas ele provavelmente está em outros lugares também. 

O físico Werner Heisenberg, que em 1927 formulou o “princípio da incerteza” onde este problema foi colocado pela primeira vez, escolheu para seu próprio epitáfio a frase em alemão “Er liegt irgendwo hier”, que significa “Ele está por aqui em algum lugar”.

Acho que a melhor maneira de visualizar isto (pode não ser cientificamente exata, mas ajuda pelo menos a encarar o problema) é pensar num ventilador. 

Meu ventilador está ligado aqui sobre a mesa, e as quatro pás que ele tem, em forma de uma espécie de cruz-de-Malta, estão girando a toda velocidade. Não vejo as pás: vejo no interior da grade de proteção uma espécie de disco acinzentado que parece estremecer um pouco, e do qual se projeta uma corrente de ar. 

Este disco é uma nuvem-de-probabilidade em relação às pás do aparelho. Em qualquer instante dado elas podem estar ou não estar ali. Se vejo o disco cinzento, é porque estão; mas se através dele vejo a parte traseira do ventilador e a parede do quarto, é porque em algum momento existe ali um espaço vazio.

Assim é o elétron, algo que está-e-não-está ali. Assim, ouso dizer, é toda a matéria do Universo: meu corpo, a mesa, o computador, a parede. As cargas elétricas entre as partículas dão solidez a objetos que não são mais do que uma tempestade de cargas elétricas girando no vazio. Somos feitos de matéria e de vazio, assim como este texto é feito de manchas negras e papel branco.




0934) Brokeback Mountain (15.3.2006)



Fui ver o filme de Ang Lee procurando não cultivar uma expectativa muito grande; vi-o no domingo do Oscar, quando ele ainda era considerado favorito para o prêmio de melhor filme. Eu já ouvira elogios ao filme, bem como as inevitáveis piadas machistas, gente se referindo ao filme dos “cowbóiolas”, gente dizendo que a tradução de “brokeback” é “lascado atrás”, e assim por diante. Não creio que essas piadas surjam por causa de um preconceito específico. Toda obra que faz muito sucesso atrai irreverências como o mel atrai as moscas. Basta lembrar o vasto folclore de piadas em torno de Titanic, O Senhor dos Anéis, Gladiador, etc.

Um sussurro de tensão, acompanhado por risos nervosos, percorre a sala na hora em que os cowboys se beijam. Não muito diferente, por certo, do sussurro que acompanhou o beijo de Peter Finch em Murray Head em Domingo Maldito (1971), cortado na versão brasileira, ou o de Michael Caine em Christopher Reeve em Armadilha Mortal (1982). Muita gente saúda Brokeback Mountain como o fim de um preconceito, mas, devagar com o andor, camaradinhas. Hollywood e suas platéias já foram mais conservadoras e também mais liberais do que hoje em dia. Não sei se cabe falar em evolução. Talvez tanto o preconceito quanto o liberalismo sejam apenas marés que avançam ou recuam de acordo com fatores mais complexos do que o simplismo do “está melhorando” ou “está piorando”.

Para o escândalo que causou, o filme é de uma castidade exemplar (eu diria quase “eclesiástica”, mas não sei se cairia bem). Há uma cena inicial de sexo que é brusca, angustiada, frenética. Brota quase inesperadamente no meio da narrativa, mas a urgência de que os personagens estão possuídos sugere quilômetros de subtexto nas cenas anteriores. Depois disto, há uma cena de beijos (entrevistos à distância pela esposa de um deles), e o resto que aparece na tela é tão inocente quanto o que ocorre em qualquer acampamento de rapazes. Ou seja: não há exploração, erotismo, sensacionalismo. O que continua a ocorrer entre eles durante os vinte anos após aquela cena inicial não é mostrado. Mostra-se apenas o impasse, o beco-sem-saída emocional e moral dos dois homens, ambos casados e pais-de-família, mas encalhados numa situação afetiva que não anda nem desanda (e que em hipótese alguma pode despertar suspeitas, embora muita gente acabe desconfiando).

O filme de Ang Lee me lembra seu Razão e Sensibilidade, bem como A Idade da Inocência de Martin Scorsese: histórias de pessoas asfixiadas num código de comportamento que as proíbe de ser o que são. O crítico Roger Ebert observa que alguém pode chorar em Brokeback Mountain não por ser gay, mas por ter sido impedido de tornar-se o que sonhava em ser: marinheiro, artista, marceneiro... É a tragédia absurda de alguém que deseja muito alguma coisa, mas todos lhe dizem: “Isso não pode”. E quando ele ousa perguntar por quê, a voz responde: “Porque não pode, e acabou-se”.

0933) Rumo ao hexa (14.3.2006)



Em 2001, durante as eliminatórias sul-americanas, a Argentina era um time quase imbatível, que dava gosto ver jogar. Eu morria de inveja, porque nossa Seleção se arrastava em campo, pagando micos históricos e exibindo um futebol constrangedor. Só se classificou (acho) devido àquele gol de Marcelinho Paraíba no Paraguai. Em 2002, na Copa, foi o contrário, como todo mundo viu.

Agora, a coisa se inverte. Depois da Copa América, da Copa das Confederações e das eliminatórias, o Brasil entrou no clima do já-ganhou. A Argentina está lá embaixo, a Alemanha também (as ameaças, salvo as inevitáveis surpresas, são França, Itália, Inglaterra e Holanda). O problema é que na hora em que os times entram em campo, nada disso conta. Como dizia Guimarães Rosa, entre os jagunços o que conta “é o peso seco da pessoa”. Ou seja: a pessoa pelo que é, sem títulos, sem currículos, sem históricos, sem elogios da imprensa. Onze contra onze, como o futebol deveria ser.

Planejo escrever um conto de ficção científica ambientado num futuro próximo, quando a pressão da mídia e do comercialismo se tornam insuportáveis, e os times precisam dar um jeito para evitar que seus craques entrem em parafuso na véspera das competições. Vejam o que tem acontecido com Ronaldo, por exemplo. São as críticas da imprensa, a perseguição da torcida do Real Madrid, as críticas de gente importante como Platini ou Pelé... Na hora em que o juiz faz “pí” e a bola rola, é difícil tirar essas coisas todas da mente. Também não é fácil tirar da mente o valor dos contratos de publicidade (mais da metade do que um craque fatura), que dependem do desempenho, até mais do que os contratos esportivos.

Foi devido a isso que, no futuro, os grandes clubes desenvolveram um tratamento psicológico que mistura condicionamento neurolinguístico, hipnotismo e lavagem cerebral. Na manhã das partidas decisivas, a equipe inteira é submetida a uma varredura mental que lhes provoca uma amnésia parcial durante algumas horas. Durante esse período o atleta mantém uma memória seletiva. Ela continua a lembrar quem é, onde joga, quem é o adversário, as características dos seus companheiros de equipe e dos jogadores adversários. Mas ele esquece todos os “fatores extra-campo” citados acima. Ele entra para disputar o jogo pensando apenas no jogo.

Na hora em que a bola rolasse, Ronaldo e os demais saberiam apenas que era um jogo de Copa do Mundo, e que era preciso arrasar a Croácia, arrasar a Austrália, arrasar o Japão (mal saberiam quem era o técnico do Japão). O futebol se veria reduzido ao essencial, 22 jogadores e uma bola, sem Nike, sem Adidas, sem Tim, sem Ambev, sem os cartolas, sem as modelos, sem as capas de revista, sem a adulação interesseira da imprensa e dos políticos, sem milhões de euros ou de reais. Para isto serve a ficção científica: para sonhar sonhos que, tecnicamente, não são impossíveis de concretizar.

0932) Resumo do capítulo de hoje (12.3.2006)




Fernando diz a Jocélia que quer largar o seminário para casar com ela. Matilde descobre as fotos de Augusto com Selma na pousada em Ilhéus. Euclides segue Fábio para saber aonde ele vai todo sábado à noite. Selma é assediada no trabalho pelo Dr. Rubens, e a mãe lhe aconselha a “dar-lhe corda”.

Juca sonha que está numa ilha deserta com Jacqueline à sua mercê. Conrado e Hugo danificam os freios do carro de Eugênio, na véspera de sua ida a Petrópolis. Carla recebe mais uma carta anônima do misterioso admirador, marcando encontro com ela. Mateus desaparece na volta do colégio, deixando Carlos e Dora quase malucos. Fausto toma um pileque e diz a Maristela que sempre foi apaixonado por ela. “Seu” Alcides é demitido do Banco, procura e não acha o revólver, que Juca havia tirado às escondidas.

Augusto diz a Carlos que Matilde está ficando louca. Eugênio desiste de ir a Petrópolis ao saber que Jocélia está grávida. Fábio conta sua vida na reunião dos Neuróticos Anônimos. O Dr. Rubens diz a Dora que Seu Alcides deu um trambique. Mateus acorda amarrado num quarto, e um encapuçado lhe traz o lanche.

Fernando espera quer todos durmam e começa uma nova carta anônima para Carla. Conrado avisa a Jacqueline que o plano de matar Eugênio falhou. Euclides e Juca embebedam Fábio para descobrir seu segredo.

Hugo chega em casa e encontra Matilde bêbada e chorando. Seu Alcides chama Fausto, para uma reunião secreta no sábado à noite. Mateus se desamarra e vê que o encapuçado é Selma. Hugo é preso com drogas no carro e entrega Conrado. Euclides avista Fernando num terreiro de umbanda em Copacabana. Dora confessa a Carlos que teve um caso com Fábio no carnaval.

Conrado liga para Selma e diz que descobriu tudo. Matilde confessa a Hugo que teve um caso com o Dr. Rubens no carnaval. Fausto convida Jacqueline para um jantar a dois . Juca confessa a Carla que teve um caso com Selma no carnaval.

Euclides chega bêbado e bate em Maristela. Conrado revela o plano de Selma para seqüestrar Mateus. Jocélia confessa aos pais que espera um filho de Augusto. Carla diz a Juca que está apaixonada por Hugo. Carlos arromba a janela do cativeiro e liberta Mateus. Eugênio convence Jocélia de que o filho que espera é dele.

Maristela foge de casa e pede abrigo na casa de Seu Alcides. Dr. Rubens rasga o testamento. Hugo revela pertencer à Máfia. Seu Alcides morre de aneurisma. Jacqueline revela ser travesti. Maristela entra para um convento. Dora pula da pedra da Gávea. Fábio começa a usar heroína. Augusto e Conrado confessam ser espiões da Al-Qaeda. Fausto é desmascarado como andróide. Juca e Dora fazem um pacto de suicídio. Fausto morre por combustão espontânea. Carla desmaia e entra em estado vegetativo. O Dr. Rubens e Euclides trocam tiros e morrem. A polícia chega ao local, encontra Luís Washington na cena do crime, pergunta o que ele está fazendo ali, e ele diz que não tem a menor idéia.






0931) Ariano Suassuna e Caetano Veloso (11.3.2006)




No Carnaval de Recife, vi, no show de Antonio Nóbrega, uma cena que me deixou matutando. Na lateral do enorme palco, sentados lado a lado em cadeiras fornecidas pela produção, assistiam o show Ariano Suassuna e Caetano Veloso. Ariano, um dos homenageados oficiais do carnaval (juntamente com o grande Claudionor Germano); Caetano, visitando o carnaval de Pernambuco pelo segundo ano consecutivo.

No final, Nóbrega chamou Ariano ao palco para cantarem juntos “Madeira do Rosarinho”; depois, chamou Caetano. Juntos, os três cantaram o grande frevo-de-bloco “Evocação no. 1”, aquele que todo nordestino sabe de cor: “Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon, cadê teus blocos famosos?...” 

E uma multidão incalculável (eu pelo menos não consegui calcular), que se espalhava pelo largo do Marco Zero e pelas ruas que convergem para lá, aplaudiu a presença conjunta do criador do Movimento Armorial e do criador do Tropicalismo.

Isto significa que algum dos dois, ou ambos, estariam abrindo mão de suas idéias, de suas posições? Duvido. O Brasil inteiro sabe o que pensam os dois. Seus seguidores muitas vezes se engalfinham metaforicamente, e têm uma tendência a ver o lado oposto de forma redutora, caricatural e empobrecida. 

Eu, que me vejo equidistante aos dois, tenho consciência do quanto eles estão afastados, e do quanto se parecem. Ariano e Caetano são dois brasileiros raros: têm uma fé ilimitada no Brasil, na sua força, na sua possibilidade de um destino glorioso. O “Brasil” de cada um reflete, é claro, a origem de cada um. 

Ariano pertence à estirpe ascética e rija dos sertanejos, Caetano pertence à cultura hedonista e malemolente dos mulatos litorâneos. Ariano é um defensor da Tradição, do eixo vertical de uma acumulação cultural de séculos; Caetano é um buscador insaciável da Novidade, do florescer contemporâneo de mil novas formas de sentir e de pensar. 

Os interesses dos dois são tão afastados que ambos se tornam indispensáveis. Sem um dos dois, o Brasil seria caolho.

O que os une é essa paixão pelo Brasil e essa fé no Brasil (paixão e fé que invejo, porque as sei superiores às que sinto). Vendo-os a cantar juntos, vejo-os unidos também pela lembrança de Felinto, de Pedro Salgado, dos velhos blocos de rua, do carnaval como fonte permanente e inesgotável da alegria e da criatividade do povo, e das belas canções que celebram nossa gente e nossa cultura. 

Não porque estas sejam ou pretendam ser superiores à gente ou à cultura de outras regiões; mas porque são nossas, e um povo que não gosta de si próprio e não vê valor em si próprio não pode esperar respeito da parte de seu-ninguém.

Caetano está com 63 anos, Ariano com 78; suas carreiras têm sido divergentes, mas o espírito que as anima é o mesmo. Quando daqui a 100 ou 200 anos os compositores fizerem novas “evocações”, seus nomes aparecerão lado a lado, como os de Felinto, Pedro Salgado, Guilherme ou Fenelon. O futuro lhes agradece.






0930) O duelo de honra (10.3.2006)



O duelo de honra é uma nobre instituição da civilização européia. Deve ter tido origem ali pela Idade Média mas avançou pela Renascença adentro e até pouco tempo atrás, nos anos 1800, era largamente praticado pelos homens mais esclarecidos do Continente. O duelo se baseia no conceito abstrato de que cada indivíduo é detentor de uma honra pessoal – um conjunto de atributos que, por assim dizer, determinam a cotação de sua masculinidade e da sua respeitabilidade no mercado das relações sociais. E quando essa honra é ofendida tem que ser lavada com sangue.

Quando eu era garoto, o guri que levasse uma tapa na cara e não reagisse é porque era “viado”. O cara levava uma tapa, reagia, e aí levava a surra completa; voltava do recreio com o nariz sangrando e alguns dentes moles, mas cercado do respeito (e ouso dizer da inveja) do resto da classe. Na aristocracia francesa não era muito diferente. Ser esbofeteado era a maior das ignomínias. (Já vi num romance uma bizantina discussão sobre que tipo de tapa era mais ofensivo: com a palma, ou com as costas da mão?) O sujeito que levasse uma tapa tinha uma única frase a dizer: “Em guarda, senhor!” – puxando a espada, e intimando o desafeto a fazer o mesmo.

O duelo passou a ter regras. A frase virou: “Minhas testemunhas o procurarão!” Porque o duelo não podia ser ali, no quente da hora. Ficava automaticamente marcado para a manhã seguinte, e cada duelista levava duas testemunhas para garantir a lisura do encontro e para depois explicar às autoridades o que tinha acontecido. (O sujeito sair de casa pra morrer já é ruim. Imagine ter que fazer isso à 5 da matina.) Como em tudo que envolve a violência, esse processo foi sendo diluído através de uma ritualização simbólica cada vez maior. Para se desafiar alguém a um duelo, não era mais preciso esbofeteá-lo: bastava descalçar a luva e arremessá-la em seu rosto. Depois, bastava atirar a luva aos pés do desafiado.

Paralelamente, a violência do próprio duelo foi sendo esvaziada. Em alguma época foi determinado que para “lavar a honra” não era preciso mais matar o adversário, e foi criado o conceito de “primeiro sangue”. Quando o primeiro sangue (ou seja, um ferimento leve) fosse derramado, o duelo era interrompido e as exigências da honra eram declaradas oficialmente satisfeitas. Já vi romances em que bastava o “cruzar ferros”, ou seja, bastava o primeiro choque entre as espadas, para que a honra estivesse satisfeita. Nesse processo parece ter predominado a tendência de ritualização da violência, que deixa de ser luta mortal e se transforma em mera coreografia (ver “O Sol de Austerlitz”, 15.12.2005). A forma mais civilizada de eliminar a violência não é reprimi-la. É esvaziá-la, transformá-la em ritual, em esporte (o duelo virou esgrima olímpica, a capoeira virou dança ou esporte). Quanto à honra... bem, um conceito apenas simbólico pode muito bem ser defendido por meios meramente retóricos, por que não?

sábado, 28 de março de 2009

0929) Uma boa livraria (9.3.2006)



O que faz um boa livraria? Duas coisas são óbvias: repertório e ambiente. A livraria tem que ter coisas que nos dêem vontade de comprar, e tem que ser um lugar agradável que nos dê vontade de ficar ali por muito tempo. (Observe que, em princípio, estas qualidades beneficiam tanto o livreiro quanto o cliente) Nos últimos anos as melhores livrarias daqui do Rio de Janeiro vêm ampliando seus serviços: são livrarias-café, livrarias com auditório para debates ou palestras, livrarias onde é possível pegar um livro, sentar numa poltrona e ler durante uma hora sem que um balconista ansioso venha nos perguntar “se queremos alguma coisa”, ou, pior ainda (caso que já sucedeu mais de uma vez comigo) para avisar que “se quiser ler vai ter que comprar”. Se isto lhe ocorrer um dia, leitor, recomendo-lhe: nunca mais passe sequer na calçada.

Uma livraria não vende apenas objetos, vende também a sensação de que o cliente está compartilhando um espaço mental com pessoas cuja presença ali é meramente simbólica. A livraria é um ponto de encontro de pessoas (como o foram durante tantos anos as saudosas Livraria Pedrosa, em Campina, e Livro-7, no Recife), um espaço de convivência, uma praça com estantes no lugar de árvores e balcões em vez de jardins. Um lugar onde conversamos sobre política, futebol, mulheres, religião, cinema, e, inevitavelmente, sobre livros.

A livraria deve também atender encomendas. Já observei que na maioria delas o sujeito entra, procura o livro tal; não tem, ele agradece, e vai procurar em outra. Me admiro quando as pessoas se queixam de que não encontram meu livro na livraria. Ora, quando um leitor precisa de um livro e não o encontra, basta encomendá-lo. Leitores constantes costumam levar listas de livros às livrarias que freqüentam, e estas telefonam avisando quando o livro encomendado chegou. Esta, infelizmente, é uma relação pouco freqüente no Brasil. O leitor parece desconhecer que tem o direito de encomendar; e o livreiro não tem interesse em pedir um exemplar apenas.

Livrarias dos EUA costumam promover sessões de leitura com autores, e não entendo como é que essa moda não pegou aqui no Brasil, tão solícito em importar as jogadas-de-marketing alheias. Um escritor, ao lançar um novo título, programa juntamente com a editora uma turnê por 20 ou 30 cidades, e em cada uma delas comparece a uma livraria local, onde lê trechos do livro e depois debate com o público, responde perguntas, e por fim dá autógrafos. Aqui no Brasil, só assimilaram a parte mais boba – a do autógrafo.

Um bom ambiente faz com que o cliente se demore mais, volte mais vezes, traga outras pessoas. A livraria não é uma mera loja de vender livros como há lojas de vender parafusos ou sapatos. É como um bom restaurante, que não se limita a vender pratos de comida: ele faz da refeição um ritual de convivência, de bem estar, um ponto de encontro de amigos, uma oportunidade para conhecer novas pessoas.

0928) Ser famoso (8.3.2006)


(Norman Rockwell, "Auto-Retrato")

Por que é útil ser famoso? Porque as pessoas são vaidosas, egocêntricas, etc.? Pode ser, mas não é só isto. Tenho (adivinhem!) uma teoria. Existem quatro níveis de formação da realidade mental, e a Fama tem a ver com o quarto nível.

O primeiro nível é o que temos desde a pré-história: os contatos diretos que mantemos com outras pessoas, tudo que dizemos, ouvimos, presenciamos. O segundo nível é o das informações indiretas: o que aprendemos oralmente, o que ouvimos da boca de terceiros, relatos em segunda mão sobre o que existe ou o que aconteceu. É a famosa “cultura oral”. O terceiro nível é o dos meios de comunicação “civilizatórios”: documentos, livros, obras literárias ou pictóricas, escrituras sagradas, relatos. Até o século 19 o ser humano existiu nestes três níveis, sendo que a única “revolução” neles foi a invenção da imprensa no século 16.

O quarto nível surgiu no século 19 com a invenção da fotografia e do cinema, um imenso salto qualitativo em relação a técnicas milenares como pintura, desenho, gravura, etc.; e, depois, o surgimento das telecomunicações: rádio, telegrafia, telefone, telex, fax e TV. Esse quarto nível expandiu-se sob a forma de imprensa ilustrada, TV aberta, TV a cabo, Internet, celulares, e toda a parafernália visual que está explodindo por aí.

Devem existir centenas de teses sociológicas calculando a percentagem e a importância relativa desses níveis na formação das mentes individuais e dos padrões culturais. O mundo mental de um velho sertanejo depende 90% dos três primeiros níveis. Num adolescente de classe média urbana, esta proporção se inverte. O quarto nível é mais real que o resto.

Ser famoso é produzir clones virtuais de si próprio nesse quarto nível. É o nome no jornal, a foto na revista, o rosto na TV. No momento em que dizemos uma fala de dez segundos no “Jornal Nacional” esses dez segundos são multiplicados por 50 milhões de espectadores. Nossa existência terrena não fica mais longa – mas fica mais larga. Há mais de um século esse quarto nível, que se expande em progressão geométrica, é um referencial tão importante quanto (ou muito mais do que) nossas fontes de informação pessoais, diretas ou indiretas.

Edgar Morin chamou de “Os Olimpianos” àqueles que vivem nesse universo luminoso e deslumbrante da mídia. Nós os contemplamos diariamente, acompanhamos suas vidas, chegamos a conhecê-los melhor do que aos nossos vizinhos do lado. Recentemente, uma nutricionista chamada Ruth Lemos deu uma entrevista na TV e “pagou um mico” histórico porque estava com um ponto eletrônico no ouvido e começou a repetir o eco que ouvia. Virou piada. A imagem circulou na Net. Criaram 48 comunidades sobre ela no Orkut. Que foi chato, foi. Mas hoje ela é famosa. Num restaurante, num aeroporto, numa entrevista de emprego, basta-lhe dizer: “Eu sou Ruth Lemos, a moça que falou sanduíche-íche-íche na TV”. E as pessoas imediatamente acreditarão que ela existe.

0927) Política literária (7.3.2006)




(Ernest Hemingway & Fidel Castro)


Política literária é tratar cada leitor como um político trata um eleitor. 

Dar-lhe atenção, quando abordado, mesmo que não disponha de muito tempo. 

Ouvir o que o leitor tem a dizer. 

Procurar dizer-lhe algo em que ele possa ficar pensando, e que lhe seja útil. 

Tratar a imprensa com atenção, mas sem promiscuidade. 

Não misturar relações profissionais com relações pessoais. 

Tratar bem os concorrentes de hoje, que podem ser os aliados de amanhã, e vice-versa. 

Saber que tudo que se diz em público pode vir a ser lembrado e repetido (e será, com certeza, se for algo inconveniente).

Existem escritores de gênio que são péssimos políticos, e somente a genialidade faz com que sejam lembrados hoje. Em geral, quem suaviza sua escalada é um grupo de pessoas mais próximas (família, agentes literários, editores, amigos) que se encarregam de aparar arestas, administrar o cotidiano do artista, cuidar de sua imagem (porque ele não cuida), e de um modo geral fazer com que ele se dedique a fazer a única coisa que faz bem: escrever.

Outros são excelentes políticos. Guimarães Rosa, Garcia Márquez, Arthur C. Clarke, Machado de Assis, Octavio Paz, Jorge Amado, são exemplos que me ocorrem assim meio ao acaso. Indivíduos equilibrados, afáveis, bem falantes, hábeis no trato com o homem da rua, com a imprensa, com os poderosos. 

Praticaram, ao longo de suas carreiras, a difícil arte de andar no convés de um navio, em plena tempestade, sem derramar uma gota sequer do seu coquetel. Alguns foram malhados pela crítica ou perseguidos por polemistas profissionais; mas nunca sofreram sequer um “knock-down”. 

Há escritores que são assim, mas cuja obra não têm muita densidade. Estes, tipicamente, atingem o auge da glória quando em vida, mas uma vez sumidos, sumido seu charme, sumido o vigor impositivo de sua presença, some a obra também.

Fico pensando em auto-sabotadores contumazes como Edgar Allan Poe, Arthur Rimbaud, Lima Barreto... Pode-se fazer qualquer elogio a eles, menos dizer que eram hábeis na administração da própria carreira. 

Foram perseguidos por uma combinação nefasta: temperamento impulsivo, vícios, egocentrismo, ambiente preconceituoso, conflitos familiares... Sobre eles parecia pairar uma maldição cuja fórmula dizia: “Não serás popular. Conquistarás poucos admiradores, e mesmo estes acabarás afastando de ti. Muitos te admirarão; mas na hora H, ninguém estará do teu lado”.

Ser político é uma dimensão inevitável de qualquer sujeito, mesmo um pedreiro ou um balconista. Não ocorre só na literatura. 

Outras atividades nos mostram parelhas de talentos com diferentes destinos: Pelé x Garrincha, Luiz Gonzaga x Jackson do Pandeiro, Paulo Coelho x Raul Seixas. 

A diferença entre o que acontece a uns e a outros não é uma diferença de talento, mas uma diferença de habilidade política, de capacidade para administrar a si próprio. Para o público não faz muita diferença, mas para eles, fez, e muito.





0926) Rei Mídia, o Midas Digital (5.3.2006)


(zapatopi.net)

Lembram-se da história do Rei Midas, aquele que transformava em ouro tudo que tocava com o dedo? Pois estamos vivendo, depois da invenção do computador, do CD, do DVD, do CD-Rom, do gravador digital, a época de um milagre semelhante. É a era do Rei Mídia: tudo que ele toca com o dedo transforma-se num objeto idêntico ao anterior, ou seja, basta tocar numa coisa que ele cria instantaneamente uma cópia exata daquela coisa.

Assim como aconteceu com seu nobre antepassado lá da Frígia, o Rei Mídia deslumbrou-se com seu poder miraculoso e achou que isso lhe permitiria multiplicar suas riquezas. Começou a duplicar suas moedas de ouro, seus tesouros, seus rebanhos. Aí um dia teve a má idéia de duplicar a Rainha, que era muito bonita mas às vezes tinha dor-de-cabeça de noite, e ele achou que não custava nada ter uma clone ali, de sobreaviso. Fez isso, mas percebeu que a Rainha-ponto-1 tinha herdado o seu dom, ou seja, o de duplicar objetos. A princípio ele manteve a coisa sobre controle, mas ela foi dando um jeitinho e depois de algumas semanas tinha duplicado quatro irmãs, três irmãos, duas primas, vinte e oito amigas e (não explicou por que) quinze jovens soldados da guarda pessoal do Rei. Todos estes, está claro, herdaram também a capacidade duplicadora, e saíram duplicando quem lhes dava na telha. Reza a lenda que a ilha ficou tão cheia de gente que afundou antes do fim do ano, e a reação-em-cadeia, felizmente, morreu aí.

A maldição do Rei Mídia atingiu agora, nos tempos modernos, a indústria da música, a indústria do cinema e do vídeo. Tudo que existe nesse formato (músicas, livros, filmes) pode ser transformado em sinais eletrônicos e enviado instantaneamente para qualquer lugar do mundo, onde uma nova cópia, clone do original, surgirá num piscar de olhos. O mais irônico é que a própria indústria criou a tecnologia que está desvalorizando sua mercadoria principal. A partir de certo ponto, essas tecnologias voltadas para a produção em massa não puderam mais ser contidas nas mãos de um pequeno grupo. O barateamento da produção, buscado para gerar lucros, gerou máquinas duplicadoras cada vez mais simples e baratas, e chegou a tal ponto que o segredo escapou às mãos dos que o criaram. O tapete foi puxado de baixo de seus pés.

E encerro citando palavras de Cory Doctorow em seu blog “Boing Boing”: “Tudo que pode ser expresso em forma de bits será expresso em forma de bits. Bits irão se tornar cada vez mais fáceis de copiar. As empresas de entretenimento estão convencidas de que seus negócios dependem da introdução de bits à prova de cópia. É ridículo. Uma tal coisa não existe, e nunca poderá existir. Governos que tentam proteger empresas que exigem bits à prova de cópia são como governos que tentam proteger empresas instaladas na borda de um vulcão, as quais exigem leis imediatas proibindo essas erupções de lava que estão prejudicando seus negócios”.

0925) O cordel de Antonio Francisco (4.3.2006)




(poeta Antonio Francisco)

De uma viagem a Mossoró guardei como lembrança o livro Dez Cordéis num Cordel Só do poeta Antonio Francisco. Como o nome indica, são dez folhetos que haviam saído em separado e que o poeta juntou neste volume (Ed. Queima Bucha, Mossoró, 2003). 

Poeta de verbo fluente e ótimo recitador, Antonio Francisco tem outras obras publicadas, mas esta coletânea dá uma ótima medida de sua imaginação e de suas virtudes no trato com a palavra.

A maioria dos poemas deste livro têm uma visão crítica do mundo de hoje com seu materialismo, egocentrismo, apego ao dinheiro e desprezo ao meio ambiente. O poeta imagina diversas circunstâncias fantásticas em que o seu narrador é transportado para um ambiente que serve de espelho deformado do nosso mundo, ou então serve de Utopia às avessas que deixa à mostra os nossos erros. 

Em “Meu Sonho”, é um mundo onírico, voltado para o trabalho e a educação: 

As crianças daqui brincam 
com paquímetro de aço puro, 
esquadro, régua, compasso, 
martelo de ferro duro 
-- são brinquedos da infância 
e ganha pão do seu futuro. 

Em “Do Outro Lado do Véu”, é uma nave espacial que pega o narrador no roçado e o transporta para um lugar remoto onde se extraem, das almas humanas, suas emoções boas ou más, que servem de matéria-prima para os fenômenos da Natureza: 

Com dez gramas de orgulho 
e trinta de vaidade 
toda criança aqui faz 
uma grande tempestade 
capaz de riscar do mapa 
num minuto uma cidade.

Antonio Francisco tem uma enorme fluência de estilo, é um daqueles poetas que, sem forçar a mão, parecem rimar e metrificar espontaneamente. O que não é tão freqüente quanto parece, no mundo do cordel. 

Uma coisa que se encontra muito no cordel é uma sextilha onde a terceira rima parece enfiada “na marra”, como se somente ao chegar no fim da estrofe o poeta percebesse que a última linha precisa rimar com a segunda e a quarta; aí aparece uma palavra caída de paraquedas somente para fechar a sextilha. Nos versos de Antonio Francisco, isto raramente, ou nunca, acontece.

“A Oitava Maravilha” é a história divertida do deus mitológico Cafuné, que escavou sozinho o leito do Rio São Francisco. “A Arca de Noé” é uma alegoria do desmatamento do Brasil, comparando-o com a arca do patriarca bíblico, que se distraiu e levou para dentro dela um casal de cupins. 

Em “Os Sete Constituintes”, o narrador dorme em cima de uma árvore e testemunha às escondidas um encontro de diversos animais (o burro, o morcego, o rato, a cobra, etc.) que se queixam da brutalidade e da ignorância do Homem: 

O morcego abriu as asas 
deu uma grande risada 
e disse: Eu sou o único 
que não pode dizer nada 
porque o Homem pra nós 
tem sido até camarada. 

Constrói castelos enormes 
com torre, sino e altar 
põe cerâmica e azulejos 
e dão pra gente morar 
e deixam milhares deles 
nas ruas, sem ter um lar”. 

É uma voz nova e vigorosa, na tradição crítica e satírica do cordel clássico.





0924) Cinco razões para ter medo (3.3.2006)



(detalhe de foto de Gustavo Moura)

A primeira razão é que o medo é inevitável. É possível que alguém passe a vida inteira sem experimentar o amor, a saudade, o ódio. Mas – o medo? Duvido. Pense num bebê de um ou dois anos, no rosto assustado com que ele encara um desenho, uma imagem na TV. 

Amor e ódio precisam de um mínimo de justificativa; o medo não. É um sistema-de-alarma embutido em nossos neurônios há milhões de anos. Devemos em grande parte a esse sistema a nossa sobrevivência como espécie. Se não há como fugir dele, temos que experimentá-lo, saboreá-lo, medi-lo, conhecê-lo a fundo.

Em segundo lugar: o medo é uma revelação. Ele vem de um lugar oculto, e só vem quando quer, não quando nós queremos. Não sei de que modo alguém possa sentir medo voluntariamente. Isso não existe. O medo é algo que nos sobrevém, que nos envolve, queiramos ou não. 

Podemos gerá-lo artificialmente (e aqui entram os livros e filmes de terror, etc.), mas será sempre isto: um medo artificial, um medo de mentirinha. Não é o terror pânico, aquele que nos amolece as pernas e nos esvazia os intestinos. Quando experimentar este, caro leitor, agradeça, por mais que a experiência tenha sido humilhante ou constrangedora. Agora você está mais perto de saber quem realmente é.

Terceiro: o medo nos faz manter os pés no chão. E neste caso em particular estou me referindo não ao medroso contumaz, mas ao sujeito metido a valente, ao ousado, ao aventureiro, ao que gosta de enfrentar desafios. Se ele tem a cabeça no lugar, ele sabe que o medo é um bom conselheiro. O conselho que o medo nos dá não é “Bora correr!” 

Quando sentimos medo, algo está nos dizendo que finalmente estamos diante de uma coisa que pode nos servir de peso e de medida. Já disse algum filósofo que sujeito corajoso não é o que não sente o Medo, mas o que sabe mantê-lo sob controle e continuar fazendo o que tem pra fazer.

O quarto motivo é que o medo é um ativador aleatório de sistemas. Não sabemos quais são os sistemas de reflexos físicos e mentais que ele vai ativar em nós, mas só saberemos se o experimentarmos. O campo de batalha já mostrou valentões que se encolhem apavorados e sujeitos lesos que se transformam em heróis. A experiência-limite que desencadeia o medo desencadeia também outras reações correlatas que variam de caso para caso.

Em quinto lugar (e esta é uma razão para convencer os mais cínicos) o medo dá dinheiro. Vejam a imensa indústria atual do filme de terror, do romance de terror. (Curiosamente, não se cultiva mais hoje em dia um teatro de terror, a não ser como sátira ou paródia; foram-se os dias do Grand Guignol francês) 

É um medo de mentirinha, como afirmei acima, mas pessoas sensatas argumentarão que se é pra sentir medo é melhor divertir-se sentindo um medo inofensivo e sob controle (aí estão os parques de diversão com suas montanhas-russas e o escambau) do que o medo de alguma coisa hostil que nos ameaça pra valer.





sexta-feira, 27 de março de 2009

0923) Ver filme na moviola (2.3.2006)



Nos meus tempos de cineclubista, quando nos deparávamos com um filme muito difícil, ou muito bom, dizíamos: “Eita, isso aí é filme pra se ver na moviola!” A moviola é a mesa de montagem para os filmes feitos em celulóide. Uma mesa cheia de engrenagens de tração para acelerar, retardar, ver de trás pra frente, imobilizar uma imagem, etc. Ver um filme na moviola significava ter o poder de examinar o filme em seus menores detalhes, do jeito que nos conviesse. Uma vez passei uma tarde inteira analisando uma cena curta de O Encouraçado Potemkin, em que um marinheiro, revoltado com a má qualidade da comida do navio, ergue um prato no ar e o espatifa contra a quina da mesa. Um primor de montagem, onze planos diferentes em menos de dez segundos. Mas só se percebe na moviola.

Na moviola, deixamos de ser o espectador passivo, que só faz receber e assimilar. Assumimos uma posição ativa, de quem encosta o filme na parede, vasculha seus bolsos, checa suas credenciais, pergunta suas intenções. Podemos entrar na intimidade do filme, reconstituir o pensamento criativo do diretor. Quando fazemos isto com um filme que julgávamos conhecer bem é que percebemos o quanto a primeira visão de um filme é superficial, quanta coisa deixamos de perceber, quanta coisa nos enganou. (Tenho uma admiração enorme pela falecida Pauline Kael, que escrevia críticas notáveis sem jamais rever o filme)

Quando inventaram o videocassete e agora o DVD, ficou muito mais fácil ver um filme assim. O DVD é nossa moviolazinha doméstica, que nos permite brincar com as imagens, analisar uma cena, dissecar um trecho de edição, acelerar ou retardar o fluxo para sentir melhor o ritmo daquele trecho. Mal termino de ver um filme já estou com vontade de voltar para o começo para vê-lo “como se deve”.

E aí percebo que a moviola, o VHS e o DVD não fazem mais do que proporcionar a nós, os escravos do tempo cinematográfico, daquele fluxo de imagens que nunca pára e que nos arrasta consigo, a experiência de imensa liberdade e de imenso poder que tem o leitor de um livro. Este, sim, determina ele próprio o tempo de duração e os vetores de direção de sua experiência estética. Vai para onde quer, pára quando lhe dá na telha, salta para adiante, volta, compara com algo que tinha visto atrás, relê a mesma passagem cinco ou dez vezes até extrair-lhe todo o sumo. O leitor é e sempre foi o dono do livro, capaz de desmontar o texto escrito com seus dedos e seus olhos. Só muito recentemente o espectador de cinema (do cinema doméstico, no caso, diante do DVD-player) passou a conhecer esse grau de autoridade, de autonomia, de poder. Como é bom poder ver e rever um filme de Welles ou de Truffaut com a mesma liberdade de movimentos com que lemos um poema longo de Jorge de Lima, um conto de Cortázar, um romance de Ellery Queen. Vê-lo em profundidade, conhecê-lo em raio-X, até a medula de seu esqueleto.

0922) A liberdade de expressão (1.3.2006)


(Cox & Forkum)

Salman Rushdie, autor dos Versículos Satânicos, sabia do que estava falando quando afirmou: “Sem a liberdade de ofender alguém, não existe liberdade de expressão”. Ele se referia, gato-escaldadamente, à perseguição que sofreu durante anos por parte de muçulmanos radicais, por ter feito um personagem de seu livro dizer e pensar coisas desrespeitosas sobre o Profeta Maomé. O assunto volta aos jornais hoje devido aos protestos dos muçulmanos contra as charges publicadas em jornais da Dinamarca, onde Maomé é tratado com zombaria.

Não sei se o caro leitor já se deparou com um paradoxo científico que volta e meia aparece nas revistas. Coloca-se a seguinte questão: “Se criarmos um líquido que seja o Solvente Perfeito, ou seja, capaz de dissolver qualquer substância, e o colocarmos num Recipiente Invulnerável, que não pode ser afetado nem pelo ácido mais forte... o que acontece?” O problema não admite resposta, porque tem uma contradição interna. Estamos postulando a existência de duas coisas (Solvente Perfeito, Recipiente Invulnerável) que, por definição, se excluem mutuamente. No Universo em que exista uma delas, a outra, obviamente, não pode existir.

Algo de parecido se dá com dois valores abstratos de nossa sociedade: a Liberdade de Expressão e o Respeito Mútuo. O aumento excessivo de um deles será sempre uma ameaça de diminuição do outro (toquei no assunto em “Liberdade versus Segurança”, 17.12.2005). Onde exista total liberdade de expressão, não pode existir respeito; e onde o Respeito seja absoluto, a liberdade de expressão cai a zero. A convivência democrática exige jogo-de-cintura para alcançar um ponto intermediário, onde ambos os índices sejam satisfatórios.

Sou jornalista mas nunca me iludi com essa conversa de “a liberdade de expressão é intocável”. Bobagem. Por um lado, o que escrevemos ou falamos depende da aprovação de quem nos emprega e nos paga, e trabalhar dentro destes limites não é vergonhoso para ninguém. Por outro lado, nossa liberdade de expressão, até como simples cidadãos, é limitada pelo nosso bom-senso, nossa educação, nossa civilidade. Creio que nenhum de nós diz tudo que pensa em qualquer circunstância. Freqüentemente somos obrigados a engolir sapos porque custa menos engolir um sapo do que provocar uma briga generalizada num restaurante. Ninguém é totalmente livre para dizer o que pensa.

O caso dos cartunistas dinamarqueses me parece um caso típico de provocação deliberada. Vi na TV que o jornal onde saíram os cartuns é ligado a um partido político que combate a emigração estrangeira para a Dinamarca. O crescimento da direita xenófoba na Europa (vide fatos recentes na Holanda, França, etc.) favorece esse tipo de provocação, que não tem a menor semelhança com o episódio de Salman Rushdie, a não ser pelo objeto da ofensa (Maomé). Os cartuns dinamarqueses são instrumento do preconceito étnico, não da liberdade de imprensa.

0921) U-2 (28.2.2006)



Dois dias depois do show dos Rolling Stones no Rio, vi pela TV a transmissão do show do U-2 em São Paulo. São duas gerações sucessivas do rock, se considerarmos que quando o U-2 lançou seu primeiro álbum em 1980 os Stones já deviam estar na terceira hemodiálise. Musicalmente, vê-se a que estrato geológico cada banda pertence. Os Stones fazem um rock básico, quadrado, mesmo assimilando aqui-acolá influências do soul, da música latina, do gospel. No fundo, contudo, é a formatação harmônica, melódica e rítmica do blues rural, da música country eletrificada, do rhythm-and-blues urbano.

O U-2 é outra coisa. Para descobrir a presença dos elementos acima nas canções do U-2 é preciso raspar sua superfície sonora com o mesmo cuidado com que um arqueólogo raspa a areia de uma ossada. O U-2 ouviu os Stones ao mesmo tempo em que ouvia o heavy-metal britânico, as enormes massas sonoras do rock progressivo, e depois a inesgotável paleta de timbres e texturas da música eletrônica em todas as suas subdivisões. Embora a banda também seja conhecida por suas posições políticas, por seu livre trânsito (ou pelo menos de Bono) entre chefes de Estado, e por uma permanente ligação com suas origens irlandesas, o que mais a caracteriza não é o conteúdo, e sim a sonoridade.

Num show do U-2 todo mundo enxerga Bono, mas, assim como num show dos Stones todo mundo só vê Mick Jagger e eu não tiro os olhos de Keith Richards, quando o U-2 está na tela o centro geométrico de tudo aquilo, pra mim, está na guitarra de The Edge. Não vi muitos guitarristas capazes de tirar tão sons diferentes ao longo de uma mesma canção, sem interferir com o cantor, e sem parecer estar se matando de trabalhar. The Edge faz arpejos (se se pode arpejar com palheta) minuciosos, percussões abafadas nos bordões, “lapadas” violentas quando é preciso, mas seu ataque mais característico são as rápidas e fortes palhetadas, subindo e descendo, que, com a super-amplificação e as distorções, criam uma massa de harmônicos que brotam de toda a extensão do espectro sonoro. A voz de Bono surge cercada pelo que parece uma orquestra de guitarras em círculo à sua volta.

Essa sonoridade é a assinatura da banda, fazendo-nos fechar os olhos e pensar que não são quatro caras, são o dobro. Bono é um bom letrista, embora nada excepcional, tem uma voz extensa, presença carismática; o baixo e a bateria são de uma solidez rara. No show de São Paulo vimos uma tela de 12 mil pixels pixels gigantescos (vide “Os 360 graus do rock”, 20.11.2005) que revela a fascinação high-tech da banda. No show, Bono usa um lenço com a palavra “CoeXisT” (reproduzida em português no telão), onde o C é o crescente muçulmano, o X a estrela-de-Davi judaica e o T a cruz cristã. A mensagem de coexistência pacífica pode servir também para a coexistência musical entre o punk rock das origens da banda, a sofisticação do progressivo, o peso do heavy-metal, o infinito menu da eletrônica.

0920) “Trigal com Corvos” (26.2.2006)




W. J. Solha já produziu romances, contos, textos teatrais, libretos de ópera; é artista plástico, ator, o escambau. 

Seu primeiro livro de poesia é este Trigal com Corvos (Ed. Palimage, em Viseu, Portugal), que para mim, pelo menos, é um abençoado retorno à poesia com palavras, com frases, com idéias, com substância mental. 

A poesia de Solha é uma cachoeira de idéias, borbotões de pensamentos sobre arte, vida e mundo, e usa como instrumento o verso longo e flexível de Walt Whitman e Fernando Pessoa “Álvaro de Campos”.

Solha faz uma poesia cuja atitude diante do mundo mistura perplexidade, desespero pela própria pequenez, deslumbramento, prazer infantil na descoberta de pequenas harmonias e belezas. 

“O mais longe que pude ir foi aqui mesmo”, diz o poeta, sentindo “essa impaciência feroz de quem martela um parafuso”. 

O livro poderia intitular-se História Universal da Perplexidade e do Deslumbramento. Solha registra pequenas sincronicidades e coincidências na História, na Natureza, na Arte, na Linguagem, fazendo o papel daqueles rastreadores sertanejos que percorrem a caatinga em busca de sinais que indiquem: “foi por aqui que a caça passou”. 

A caça que o poeta rastreia é o Sentido, o Significado, aquele instante-centelha fugaz em que vislumbramos uma rima entre o mundo das Idéias e o mundo das Coisas.

Existe uma convenção tácita na poesia lírica de que cabe aos poetas procurar as manifestações da Beleza no mundo. Tradicionalmente essas manifestações eram encontradas na Mulher e na Natureza. 

Talvez tenha sido Álvaro de Campos (em nosso idioma) o primeiro a descobri-la (e a defini-la como manifestação legítima de Beleza) nos produtos do engenho humano: as máquinas, as cidades, o fervilhar cosmopolita das multidões. 

O catálogo aleatório de pequenas descobertas pessoais feitas por Solha o convencem (e ao leitor) de que existe uma inteligência coletiva na nossa espécie, a que chamamos Cultura, um projeto ou desígnio cujo plano geral é inacessível a nós, indivíduos; um projeto de criação de um sentido universal das coisas, que deixa pistas nos lugares menos prováveis.

A busca poética de Solha é uma busca do intelecto. É curioso como esta palavra sofre, hoje em dia, uma verdadeira Inquisição, numa cultura-de-massas onde queima-se um incenso incessante no altar das Emoções. 

A poesia de Solha me reafirma algo que sempre percebi intuitivamente: que o intelecto é nossa verdadeira interface com o mundo, e a emoção um mero resultado de quando fazemos contato com ele. É através da mente que percebemos e compreendemos tudo – e que nos emocionamos, quando descobrimos pegadas deixadas pela Verdade ou pela Beleza. 

Trigal com Corvos é o diário-de-bordo de uma jornada mental que nos produz a mais refinada e a menos egoísta das sensações: a de perceber que as belezas do mundo existem independentemente de nós, mas que o mundo, que as produz, não as percebe – e nós, sim.






0919) C. S. Lewis e o mistério do tempo (25.2.2006)





(C. S. Lewis)

C. S. Lewis, autor das Crônicas de Narnia era um persuasivo defensor da fé cristã, com argumentos que com freqüência lembram os de G. K. Chesterton, outro convertido na idade adulta. Numa carta a seu amigo Sheldon Vanauken, em 1950, Lewis escreveu: 

“Por que os peixes não se queixam de o mar ser úmido? E, caso o fizessem, isso não seria um forte indício de que eles não tinham sido, ou não seriam para sempre, criaturas aquáticas? Vejam como nós nos surpreendemos o tempo inteiro com a passagem do tempo. ‘Como o tempo voa! Olhem só, Harry já ficou adulto, e se casou! Parece incrível!’ Meu Deus, porque agimos assim? Talvez, sem dúvida, pelo fato de que existe em nós alguma coisa que não pertence ao domínio do Tempo”.

Essa coisa a que Lewis se refere é sem dúvida a alma imortal, postulada pela fé. Sendo do domínio espíritual, nossa alma talvez partilhe da ubiqüidade cronológica da Divindade, da sua capacidade de ver a Eternidade inteira à sua frente, sem fluir, sem passar. 

Nosso corpo está sujeito aos processos de crescimento, amadurecimento, velhice, morte e dissolução; mas a alma está fora do tempo, intacta, inatingível.

O mesmo argumento, no entanto, pode ser usado para distinguir o mundo do Corpo e o mundo da Mente (em vez do mundo da Alma). Não discutirei aqui a existência da Alma, grave problema filosófico que não foi solucionado até hoje e não serei eu a fazê-lo num artigo de três mil toques. Mas acho que nosso conceito de Tempo é contraditório e cheio de paradoxos porque experimentamos a cada instante duas faixas de Tempo totalmente diversas: o tempo do corpo, e o tempo da mente.

O tempo do corpo é irremediavelmente cronológico (perdoem a redundância). Flui numa única direção, do passado para o futuro, e está submetido aos mesmos processos físicos e químicos que governam os animais, as plantas, a matéria inorgânica, os planetas. O tempo do corpo é uma seta que aponta e se alonga sempre na mesma direção.

O tempo da mente, no entanto, como a memória RAM dos computadores, uma memória de acesso aleatório. Numa fração de segundo podemos reconstituir imagens de um passado remoto ou conjurar imagens irrealistas e fantásticas de algo não-existente e nunca-antes-imaginado. 

É como se o nosso corpo fosse um transatlântico singrando o oceano em linha reta, mas dentro dele a nossa mente fosse um indivíduo que vai de um convés a outro, corre para a popa e depois para a proa, desce aos porões, sobe ao mastro mais alto... 

Ou seja: mesmo presa ao trajeto retilíneo do corpo que a abriga, a mente parece desfrutar de uma aparente liberdade em relação ao tempo, movendo-se, de acordo com sua vontade, para a frente, para trás ou para os lados. 

Se isto é um mero processo eletroquímico que ocorre nas células ou se é sinal da presença de uma alma, eu não sei. Perguntem a C. S. Lewis, pois a esta altura ele já viu a resposta.




0917) Sineiro, viúva, microscopista (23.2.2006)




(Umberto D, de Vittorio de Sicca)

Uma das teorias poéticas mais úteis já defendidas é a de Fernando Pessoa, exposta por ele em numerosos textos, na qual ele afirma que toda poesia lírica é na verdade poesia dramática. 

Ou seja: o Eu poético que está dizendo aquelas coisas no poema não é necessariamente (e para ele, só o é raramente) o Eu civil do poeta Fulano, o tal que está rabiscando aquelas mal-traçadas linhas. É o Eu de um personagem imaginário que está sentindo e dizendo aquelas coisas, um personagem do qual às vezes nem o próprio poeta se dá conta, mas que surgiu em sua mente com a finalidade de sentir aquilo, dizer aquilo.

O poeta vira, então, uma espécie de dramaturgo de monólogos, escrevendo poemas onde esse Eu intuitivamente imaginado fala de si. Este esforço de imaginação não é muito diverso da sintonia mental que um ficcionista ou dramaturgo impõe a si próprio, compondo um tipo humano com tais e tais características, colocando-se “na sua pele” e tentando dizer o que ele diria caso existisse.

Carlos Drummond de Andrade nunca usou heterônimos, mas existe em muitos dos seus poemas essa dramatização de sentimentos alheios. Poemas que são na verdade pequenos contos ou peças, pequenas ficções onde o poeta se entrega por completo a seus personagens, e o Eu que fala obviamente não é ele próprio: “Caso do Vestido”, “Um boi vê os homens”, “Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte”... Há até pseudo-teatralizações explícitas, como “Noite na Repartição”. 

Ele se sente na obrigação de cantar as vidas alheias, representada numa tríade de personagens sem nome e sem rosto: 

Quando os corpos passarem 
eu ficarei sozinho 
desfiando a recordação 
do sineiro, da viúva e do microscopista 
que habitavam a barraca 
e não foram encontrados 
ao amanhecer.

É prematuro atribuir ao cidadão Drummond idéias, emoções ou traços supostamente autobiográficos que são enunciados por esses “Eus líricos” de seus poemas. Drummond atribuiu a si próprio um “sentimento do mundo” que para mim não se limita à percepção do que acontece “lá fora”, mas também envolve uma introjeção de corações e mentes alheias, e até da vida inanimada: 

Serei médico, faca de pão, remédio, toalha, 
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia, 
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais: 
tudo depende da hora 
e de certa inclinação feérica, 
viva em mim qual um inseto. 
(“Idade madura”).

O poeta se vê como alguém que fornece alma, voz, vida, energia àqueles que disto precisam: 

Toda a água que possuía 
irrigava jardins particulares 
de atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos. 

Estas duas tríades de personagens obscuros e humildes demarcam uma área importante na poesia de Drummond, uma área onde a voz individual e lírica do poeta se torna a voz coletiva e dramática de quem está contando uma história não apenas sua, mas de outras pessoas.












0918) Canções de Estrada (24.2.2006)




(Easy Rider)

A Canção de Estrada é diferente da Canção de Migrante, na qual predomina a saudade da terra natal e a descoberta da nova cidade. Já a Canção de Estrada glorifica a estrada em si, o seu simbolismo de liberdade e disponibilidade. 

A estrada nos dá uma sensação juvenil de ser livre e ter toda a vida pela frente, e ao mesmo tempo a promessa de maturidade e experiência (vejam como é revelador este sinônimo: “Fulano tem muita estrada”).

Quem viveu na estrada, como Luiz Gonzaga, sabe registrar sua beleza, como em “Estrada do Canindé” (“Ai ai, que bom que é, uma estrada e uma cabocla, com a gente andando a pé...”) ou sua dureza, como em “Légua Tirana” (“Ô que estrada mais comprida, ô que légua tão tirana...”). 

E que beleza de “flash” da vida rural é o “Menino de Braçanã” de Luiz Vieira, recuperado há alguns anos por Zizi Possi: “Vou-me embora, vou sem medo nessa escuridão / quem anda com Deus não tem medo de assombração / e eu ando com Jesus Cristo no meu coração”.

A geração da Contracultura celebrou a estrada dos motoqueiros, com Dave Dudley (“Seis dias na estrada, mas esta noite eu vou dormir em casa”), com Bruce Springsteen (“A rodovia está atravancada de heróis em pedaços, num canto-do-cisne feito de motores”), Steppenwolf (“Gosto de fumaça e raios, o trovão do metal pesado, apostar corrida com o vento e a sensação que me envolve”). 

Era a viagem kamikaze de uma geração motorizada, que viu na estrada um outro tipo de droga, um outro tipo de vertigem, êxtase e auto-extinção. 

Bob Dylan, que também teve lá seus problemas como moto e asfalto, preferiu celebrar o lado filosófico (“Quantas estradas um homem deve trilhar, até poder ser considerado um homem?”).

Na MPB canta-se mais a estrada de modo abstrato, romântico, como em “Travessia”, “Nada Será Como Antes” ou “Fé Cega, Faca Amolada” do repertório de Milton Nascimento, ou na “Andança” interpretada por Beth Carvalho. 

Como exceção, “Mano a Mano”, ao que eu saiba a única parceria entre Chico Buarque e João Bosco, mostra a estrada dos caminhoneiros (“Eu e meu irmão / era porreta / carreta parelha a carreta / dançando na reta / meu irmão...”), os quais acabam brigando por causa de uma mulher que é descrita com nomes de cidades: “Mas ela era nova / viçosa, matriz / era diamantina / era imperatriz / era só uma menina / de três corações...” 

São numerosas as canções que celebram a estrada do ponto de vista do automóvel (“As curvas da estrada de Santos”, de Roberto, é o exemplo mais típico), mas, curiosamente, o caminhoneiro tem sido tema de poucas canções, se pensarmos na sua importância, até mesmo como circulador de informação musical no Brasil. Temos “O Caminhoneiro” de Roberto Carlos, “Ventania” de Vandré e mais algumas. 

Para um país tão vasto, com tanta circulação de gente e veículos, com tantas correntes migratórias, a Canção de Estrada continua sendo um gênero sub-utilizado na MPB, apesar das belas canções que já inspirou.