sexta-feira, 27 de março de 2009

0917) Sineiro, viúva, microscopista (23.2.2006)




(Umberto D, de Vittorio de Sicca)

Uma das teorias poéticas mais úteis já defendidas é a de Fernando Pessoa, exposta por ele em numerosos textos, na qual ele afirma que toda poesia lírica é na verdade poesia dramática. 

Ou seja: o Eu poético que está dizendo aquelas coisas no poema não é necessariamente (e para ele, só o é raramente) o Eu civil do poeta Fulano, o tal que está rabiscando aquelas mal-traçadas linhas. É o Eu de um personagem imaginário que está sentindo e dizendo aquelas coisas, um personagem do qual às vezes nem o próprio poeta se dá conta, mas que surgiu em sua mente com a finalidade de sentir aquilo, dizer aquilo.

O poeta vira, então, uma espécie de dramaturgo de monólogos, escrevendo poemas onde esse Eu intuitivamente imaginado fala de si. Este esforço de imaginação não é muito diverso da sintonia mental que um ficcionista ou dramaturgo impõe a si próprio, compondo um tipo humano com tais e tais características, colocando-se “na sua pele” e tentando dizer o que ele diria caso existisse.

Carlos Drummond de Andrade nunca usou heterônimos, mas existe em muitos dos seus poemas essa dramatização de sentimentos alheios. Poemas que são na verdade pequenos contos ou peças, pequenas ficções onde o poeta se entrega por completo a seus personagens, e o Eu que fala obviamente não é ele próprio: “Caso do Vestido”, “Um boi vê os homens”, “Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte”... Há até pseudo-teatralizações explícitas, como “Noite na Repartição”. 

Ele se sente na obrigação de cantar as vidas alheias, representada numa tríade de personagens sem nome e sem rosto: 

Quando os corpos passarem 
eu ficarei sozinho 
desfiando a recordação 
do sineiro, da viúva e do microscopista 
que habitavam a barraca 
e não foram encontrados 
ao amanhecer.

É prematuro atribuir ao cidadão Drummond idéias, emoções ou traços supostamente autobiográficos que são enunciados por esses “Eus líricos” de seus poemas. Drummond atribuiu a si próprio um “sentimento do mundo” que para mim não se limita à percepção do que acontece “lá fora”, mas também envolve uma introjeção de corações e mentes alheias, e até da vida inanimada: 

Serei médico, faca de pão, remédio, toalha, 
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia, 
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais: 
tudo depende da hora 
e de certa inclinação feérica, 
viva em mim qual um inseto. 
(“Idade madura”).

O poeta se vê como alguém que fornece alma, voz, vida, energia àqueles que disto precisam: 

Toda a água que possuía 
irrigava jardins particulares 
de atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos. 

Estas duas tríades de personagens obscuros e humildes demarcam uma área importante na poesia de Drummond, uma área onde a voz individual e lírica do poeta se torna a voz coletiva e dramática de quem está contando uma história não apenas sua, mas de outras pessoas.












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