quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

4310) Legendas de caricaturas (31.1.2018)



(by Bill Waterson)


Sempre fui um leitor voraz de humor, piadas, anedotas e tudo o mais nesse universo. Quando eu era menino havia revistinhas só de piadas,, que a gente comprava na banca. Coisas como Vamos rir!  Muitos anos depois, a editora Codecri, do Pasquim, publicou uma série de livretos de piadas, organizados por Ziraldo e outros, revivendo esta nobre tradição; houve uma série com o título magnífico de Tem aquela do....

Uma das minhas fontes era a revista Seleções do Reader’s Digest, da qual eu comprei uma coleção completa com meus primeiros salários no “Diário da Borborema” em 1965.

Seleções tinha várias seções de pequenas histórias cômicas enviadas pelos leitores: “Flagrantes da vida real”, “Piadas de caserna”, “Rir é o melhor remédio”, etc.

Uma delas dava o balanço nos cartuns e charges que saíam na imprensa norte-americana, e se intitulava: “Legendas de caricaturas”.

Essa seção criou um gênero de humor interessante: o humor visual que prescinde do visual. De certa forma, era um verdadeiro desaforo contra os desenhistas, porque transformava um cartum numa piada puramente verbal. Vou dar exemplos:

Mulher para o marido à janela, vendo cogumelo atômico sobre a cidade: -- Ainda bem que já fui ao cabeleireiro ontem.

Índio para outro, vendo à distância pessoas que recolhem apetrechos de piquenique embaixo de chuva: -- Precisamos estudar essa dança da chuva deles, sempre funciona.

Garoto com birra sentado à mesa, diante dos pais, com o prato cheio à frente.
Mãe: Se você não comer tudo, vamos jogar seu almoço para os cães.
Pai: Se você não comer tudo, vamos jogar você para os cães.

O que isto nos diz sobre o humor?

Ele diz de certa forma que esse tipo de piada consiste em dois elementos: contexto e frase. O contexto sozinho não é engraçado, e a frase sozinha não é engraçada. É a justaposição dos dois que cria a piada. E na nobre arte do cartum, o contexto é visual (desenho) e a frase é frase mesmo.

O que Seleções fazia era substituir o contexto desenhado por uma mera descrição. Era um processo de tradução, no sentido amplo. O desenho, mesmo que fosse o desenho de um mestre cartunista, podia ser traduzido. O leitor, decerto, perdia a fruição estética do traço de Fulano ou Sicrano; mas como a função do desenho era fornecer contexto, na maioria dos casos esse contexto podia ser fornecido  por uma descrição verbal.

O contexto (o desenho, ou a descrição do desenho) tem a função de (em termos de vôlei) levantar para a frase cortar.

("-- Não basta termos sucesso. Os gatos têm que fracassar!")

E nos melhores cartuns, eu diria, o leitor volta ao desenho, numa terceira etapa. Ele vê o desenho rapidamente e assimila o contexto, depois, lê a piada, percebe o humor, dá uma risada; volta ao desenho e (idealmente) reforça a impressão inicial, captando detalhes que na primeira olhada (impaciente para ler logo a legenda) ele não percebeu. A segunda olhada no desenho é o momento de ficar saboreando, degustando a piada após a descarga de riso.

Os norte-americanos transformaram esse cartum (desenho+frase) numa forma de arte específica, que bem mereceria um estudo aprofundado. (Besteira minha – a esta altura, já deve haver umas 200 monografias a respeito nas universidades de lá, desde a Johns Hopkins até a Bowling Green.)

Publicações como The New Yorker têm um espantoso arquivo de piadas de ótima qualidade, pequenas jóias deste subgênero.

("Está morno... está esquentando...")

A expressão usada nas edições brasileiras de Seleções, “Legendas de caricaturas”, é incorreta. O mais certo seria “Legendas de cartuns”. Esse tipo de piada que estou descrevendo chama-se cartum, “cartoon”. A palavra “caricatura” não designa uma piada do tipo imagem+texto: é um mero desenho, onde o humor é obtido por uma deformação expressionista de uma figura humana, aumentando ao máximo possível a distorção crítica (uma distorção visual que equivale a um comentário sobre a personalidade ou o contexto social do retratado) e a possibilidade de reconhecimento.

Na caricatura, deformação e reconhecimento são mutuamente excludentes. Quando aumenta um diminui o outro. A arte é equilibrar os dois. Há caricaturas (vejo muito as matérias sobre os premiados nos Salões de Humor) que são tecnicamente brilhantes  mas a gente tem que ver a identificação para perceber que o retratado é Quentin Tarantino ou Tite da Seleção.

Voltando à idéia inicial:

Curiosamente, conheci esses cartuns-sem-desenhos durante a década de 1950, que foi justamente quando floresceu um gênero literário híbrido: o filme recontado.

Revistas de cinema, naquela época, havia duas: Cinelândia e Filmelândia. A primeira, Cinelândia, era o que eu definia mentalmente como “revista para mocinhas”: fofocas da vida pessoal dos astros e estrelas de Hollywood, notícias sobre as produções em curso, comentários sobre os sucessos em cartaz, dicas de beleza, e fotos, muitas fotos.

Já a Filmelândia era a minha preferida. Nela a gente tinha novelizações de filmes: os filmes do momento, recontados em prosa, cena por cena, como se fosse um conto. Não era uma adaptação do roteiro (como temos hoje romances recontando filme de sucesso, mas com uma certa latitude de reinvenção própria): era o filme contado e pronto, em dez ou quinze páginas de texto corrido.


Filmelândia servia para divulgar os filmes em cartaz, contando sua história, e muitas vezes fiz questão de ver um filme porque tinha gostado de ler sua recontação na revista. Um exemplo aleatório que me vem à lembrança é O Irresistível Forasteiro, western meio cômico com Glenn Ford (uma espécie de avatar de Harrison Ford).

Era uma época em que pessoas contavam para as outras os filmes que tinham assistido, como Homero Fonseca inesquecivelmente descreveu em seu romance Roliúde (Ed. Record, Rio), sobre Bibiu, o matuto que via os clássicos do cinema e os recontava ao seu modo.



Tudo isto me conduz para a tese que defendo esta manhã:

Qualquer experiência estética visual (desenho, pintura, filme, encenação de palco, etc.) pode ser traduzida em palavras, de maneira a criar um substituto sofrivelmente satisfatório para um público meramente curioso.

Essas descrições nunca serão equivalentes, é claro, à obra original, mas no mesmo sentido em que a tradução de um livro para outro idioma também não o é.

Toda recriação verbal desse tipo implica numa perda, mas toda recriação verbal seja lá do que for implica numa perda.

Negar que se possa recontar verbalmente um cartum ou um filme é negar que se possa fazer o mesmo com qualquer aspecto da vida real, a qual, por definição, é sempre muito mais complexa que a mais complexa obra de arte.

Mulher de camisola, para o marido desgrenhado diante da prancheta em branco: -- Se não teve nenhuma idéia para o cartum de amanhã, vamos fazer sexo. É sempre na metade disso que você sai correndo e gritando ‘heureca!’.








domingo, 28 de janeiro de 2018

4309) Um teste com tradutor automático (28.1.2018)




É cada vez mais generalizado o uso dos tradutores automáticos na Internet. Tempos atrás, passei uma tarde numa biblioteca pública, porque estava em outra cidade e precisei acessar a web. Todos os computadores de lá estavam programados para traduzir automaticamente todos os saites estrangeiros.

O resultado muitas vezes era bem razoável. Basta dizer que só vim me tocar depois de uns cinco minutos, quando acessei um saite bem obscuro e pensei: “Peraí. Esse saite tem versão em português?”.

Mas o fato é que continua vigorando o velho princípio de que a cada tradução se multiplica o “ruído informacional”, ou seja, as palavras não traduzíveis vão ficando como verdadeiros “caroços” no texto, enquanto outras são entendidas erradamente pelo robô e viram surrealismo puro.

Para comprovar (ou desprovar) esta minha opinião, vou pegar estes quatro parágrafos iniciais deste post e traduzi-los sucessivamente no seguinte percurso:

Português -> Inglês -> Francês -> Italiano -> Espanhol -> Alemão -> Português.

O resultado final em português, depois dessas passagens sucessivas, ficou assim:

O uso de tradutores automáticos pela Internet está se tornando mais generalizado. Há algum tempo passei uma tarde em uma biblioteca pública porque estava em outra cidade e tinha acesso à internet. Todos os computadores foram programados para traduzir automaticamente para todos os estrangeiros.
O resultado foi muitas vezes bastante razoável. Estou apenas dizendo que não posso jogar até depois de cerca de cinco minutos quando recebi um quarto muito escuro e pensei: "Aguarde, você tem uma versão em português?"
Mas o fato é que o antigo princípio continua a multiplicar que toda tradução do "ruído informacional", o que significa que as palavras não "core" reais são traduzidas no texto, outras incógnitas do robô e viram o puro surrealismo.
Para provar (ou refutar) essa visão, vou levar esses quatro primeiros parágrafos desta publicação e, em seguida, traduzir a próxima marcha (4 que vem diretamente abaixo dos parágrafos abaixo):


Como se vê acima, mesmo depois de passar por cinco traduções intermediárias, visitando dois grupos distintos de idiomas (inglês/alemão de um lado, e os latinos francês/italiano/espanhol do outro), dá para ter uma idéia muito boa do texto original, e metade das frases não parecem sequer ter sido traduzidas.

Agora, peguei esta última versão e fiz o seguinte percurso, saltando entre línguas de origem e estrutura muito diferentes:

Português / Árabe / Gaélico-escocês / Latim / Iorubá / Português.

E o texto final em Português ficou muito diferente:

Para o uso da tradução on-line tornou-se vantajoso. Mais uma vez, passei a tarde em uma biblioteca pública que estava em outros países e as capacidades da internet. Isso ocorre porque cada cartão de memória significa uma vez um estranho

Resultados positivos. Como sofremos cinco minutos depois, você pode jogar quando você tem um quarto muito escuro, e eu acho, 'versão em português sua manhã? "

Mas o princípio ainda é verdade que as classificações de tradução antigas têm o "ruído da mídia" duas vezes. Essas palavras são traduzidas para o texto não-core e sente que não é branco.

Pode (ou não) Primeiros quatro parágrafos e o processo enviado (imediatamente abaixo do parágrafo 4 abaixo)

Isso sugere que os tradutores automáticos – o que utilizei foi o Google Translator – estão avançando muito na questão do vocabulário, mas ainda patinam quando têm que transpor para línguas de estrutura sintática muito diferente.

É curioso que um trecho como “Todos os computadores de lá estavam programados para traduzir automaticamente todos os saites estrangeiros” acabe resultando em “Isso ocorre porque cada cartão de memória significa uma vez um estranho”.

Há também a questão de certas expressões idiomáticas que em línguas próximas têm equivalentes próximos, mas em línguas distantes acabam sendo traduzidas ao pé da letra e geram um “samba do crioulo doido”.

Uma expressão coloquial nossa como “só vim me tocar” (=só vim perceber) rapidamente perde o sentido depois de algumas transposições.

“E viram puro surrealismo” acabou resultando no surrealista “e sente que não é branco”. Nota-se que de salto em salto a frase passou por um dicionário onde “surrealismo”, um termo muito específico, provavelmente não estava registrado – digamos que tenha sido o Latim ou o Yorubá.

Tudo isto tem uma grande importância quando se torna cada vez maior o acesso a publicações de outras línguas com a possibilidade de filtrá-las através de um tradutor automático. Faço isso às vezes quando me deparo com links interessantes (cinema, FC, etc.) em japonês ou russo – mas só para ter uma idéia do que se aborda no saite. Nunca para saber "o que o texto está dizendo".

Mas já vi exemplos de livros em PDF totalmente traduzidos dessa maneira, obras literárias (romances, contos) cujo resultado está sendo lido com perplexidade por jovens leitores brasileiros, atônitos diante de livros de Philip K. Dick em PDF que parecem traduzidos por Zé Limeira.




quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

4308) Ursula K. Le Guin 1929-2018 (24.1.2018)



Ursula K. Le Guin surgiu na ficção científica norte-americana na década de 1960, com um impacto considerável tanto na FC quanto na Fantasia. Ao contrário de gerações inteiras de autores cuja escola literária foi a pulp fiction dos anos 1940-50, ela vinha de um ambiente acadêmico: seu pai era um antropólogo de renome, a mãe era escritora, o marido era professor de História.

Em seus numerosos ensaios (p. ex.: The Language of the Night, ed. Susan Wood, Berkley, 1979; Dancing at the Edge of the World, Grove Press, 1989) ela reconstitui seu aprendizado do gênero, sempre enfatizando que o que de início a afastou da FC foi o fato de até uma certa época enxergar no gênero, superficialmente, apenas uma literatura acintosamente masculina e bélica.

Indo de encontro aos manuais-de-roteiro de hoje, para quem todo enredo se baseia em conflito, ela dizia:

Afirmar que a Narrativa depende a esse ponto do conflito é afirmar o Darwinismo Social em toda sua glória, desconfio eu com tristeza. A existência como uma luta, a vida como uma batalha, tudo sendo visto em termos de vitória e derrota: Homem vs Natureza, Homem vs Mulher, Negro vs Branco, Bem vs Mal, Deus vs Diabo – uma espécie de visão apartheid da existência, e da literatura. Que lamentável empobrecimento da complexidade de ambas!
(Dancing, p. 190)

Ursula se opunha a essa “visão gladiatorial da ficção” e trouxe para sua literatura um enfoque de maior complexidade e sutileza. Não que ela negue a existência de polaridades, mas sua visão é imbuída da polaridade do Taoísmo, o Yin e o Yang, em que cada polo traz em si a semente do polo oposto.

Recomendo, aliás, sua tradução do Tao Te King de Lao Tsé (Tao Te Ching, a Book about the Way and the Power of the Way, Shambhala, Boston, 1998.)

Sua literatura mostra a presença permanente de uma consciência pensante, uma lucidez serena e equilibrada que governa a construção dos enredos, a dinâmica dos entrechoques entre os personagens. A ponto de Peter Nicholls, na primeira edição da Encyclopedia of Science Fiction (Granada, Londres, 1978), afirmar:

Talvez UKLG tenha sido excessivamente elogiada; ainda é cedo para dizer que ela é a maior escritora de FC, como alguns críticos, pelo menos, parecem admitir. (...) Se existe uma fraqueza em sua obra é uma fraqueza paradoxal, uma espécie de certeza grave e recatada que poderia, talvez, receber com proveito o fermento de uma certa abertura para o aleatório e o imprevisível.
(Encyclopedia, p. 347-348)

Ou seja: na obra dela falta doidice, falta desequilíbrio, falta uma certa gratuidade que lembre a vida real. Le Guin é uma autora clássica em vários sentidos do termo, e na verdade foi este impacto positivo que ela trouxe para uma literatura onde as formas tecnológicas e populares do Romantismo (o New Romance a que William Gibson viria a aludir com Neuromancer) mandavam e desmandavam.

Tranquila e cortês, nem por isto Le Guin deixou de encarar com entusiasmo uma boa polêmica – com editores, com escritores, com críticos, com os fãs. Um dos seus ensaios mais conhecidos é “Science fiction and Mrs. Brown”, onde ela pergunta se há lugar para personagem encorpadamente literários numa ficção tão propensa ao rápido, ao vistoso, ao melodramático, ao meramente extraordinário.

A ficção científica se acomodou, em grande parte, com uma lista pseudo-objetiva de maravilhas e portentos e horrores que não iluminam nada além de si mesmos e na verdade carecem de ressonância moral: são apenas sonhos acordados, devaneios e pesadelos. Sua inventividade é esplêndida, mas fechada em si mesma e estéril. E a faceta mais excêntrica e pueril do fandom da FC, os grupinhos fanáticos e desconfiados, tanto alimentam esse tipo de trivialidade quanto são alimentados por ela, o que em si é algo inofensivo, mas contribui para degradar o gosto, porque mantém muito baixos os critérios dos editores, e as expectativas dos leitores e dos críticos.
(Language, p. 108-109)

Críticas desa natureza nunca caem bem num ambiente de oba-oba como muitas vezes se torna o dos fã-clubes. (Em favor destes, diga-se que o fandom da FC é muito mais crítico e tem muito mais bagagem de idéias do que outros, como o da música pop e o das estrelas de cinema.)

Embora outras escritoras de FC sejam muito mais identificadas como uma vanguarda feminista dentro do gênero (como Joanna Russ, “James Tiptree Jr.”, etc), Le Guin é uma referência permanente na discussão da questões de gênero, principalmente depois do romance A Mão Esquerda da Escuridão (título da edição brasileira pela Ed. Aleph, de São Paulo) onde ela imagina uma raça humana onde cada indivíduo é sexualmente neutro a maior parte do tempo, e uma vez por mês, na época do “cio”, torna-se ou homem ou mulher, de modo aleatório.

Quando seu conto “Nine Lives” foi publicado em novembro de 1969 na revista Playboy, os editores lhe pediram para abreviar seu nome para “U. K. Le Guin”, argumentando: “Muitos dos nossos leitores têm receio de ler histórias escritas por mulheres”, e ela irrefletidamente concordou. Disse depois:

Não pensei muito a respeito disso; diverti-me um pouco, senti uma certa ironia, e decidi, vagamente, que já que eles pagavam tão bem aos autores tinham direito a pequenas venetas. (...) A supressão desta única palavra, tão significativa, foi o único caso de Censura Mercadológica direta que já houve sobre minha obra.
(Language, p. 209)

Mesmo sendo tão culta, tão filosófica, Le Guin sempre foi uma escritora voltada para o pensamento concreto, por imagens, por enredos. Sua inclinação não é para a Teoria Literária, mas para a mitologia, a antropologia cultural, os mitos, as lendas. Ela lembra que seus filhos cresceram lendo a edição de 1959 das Fábulas Italianas de Ítalo Calvino.

O romance The Left Hand of Darkness, diz ela, nasceu de uma imagem:

Eram figuras pequenas, distantes, numa paisagem tremendamente deserta de gelo e de neve. Estavam puxando um trenó ou coisa parecida por cima do gelo, juntas, esforçando-se. Era tudo que eu via. Eu não sabiam quem eram, não sabia sequer qual era o seu sexo (devo confessar que fiquei surpresa quando descobri). Mas foi assim que meu romance teve início, e quando penso nesse livro é ainda nessa imagem que penso. Todo o resto dele, como todo o seu estranho re-arranjo de gênero e suas imagens de traição, solidão e frio, é o meu esforço para alcançar essa imagem, chegar perto dela, chegar àquele momento em que eu vi mentalmente aquelas duas pessoas na neve, isoladas e juntas.
(Language, p. 100-101)

Este pensamento por imagens, comum a tantos artistas criativos, puxa de dentro do inconsciente todos os conteúdos agarrados a essa imagem, tudo que a motivou, tudo que a evoca. Na elaboração dos enredos, surge eventualmente uma teoria, uma justificativa filosófica, mas não é isto que move a ficção. O que a move são essas imagens que nos perturbam e não nos deixam em paz enquanto não escrevemos a fábula que as comporta.








segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

4307) Como sinalizar a narrativa (22.1.2018)



Há um gancho narrativo dos mais elementares e que sempre funciona. Por isso mesmo, deve ser usado com parcimônia, porque depois da terceira vez o leitor pensa, meio sem pensar, “ih, lá vem isso de novo”.

Suponhamos o seguinte trecho de um romance:

“Smith deixou as coisas no hotel, lanchou num bar, assistiu um filme, e de noite foi para a orla da praia, onde pessoas caminhavam, andavam de bicicleta, passeavam com as crianças. Ele lembrou daquela vez, há mais de dez anos, em que ele e Marybelle tinham ido para a casa dos amigos na Flórida.

Marybelle. Fazia tempos que não pensava nela. Onde estaria naquele momento, morando onde, fazendo o quê?  (Etc e tal).

O gancho consiste em mencionar o personagem, e usar o nome como uma espécie de crachá abrindo o parágrafo seguinte.

Esta manobra informa ao leitor que estão saindo do continuum de ação para o de digressão e memória.  

Abrir assim um parágrafo, anunciando um nome de pessoa, um lugar específico, um fato ou uma época (“Ah, aquelas férias na montanha com os primos!”). Basta isso para que o leitor ressete a bússola mental e acompanhe a narrativa sem nenhum percalço.

O leitor consegue acompanhar a mais absurdista das histórias, se a narração dela tiver um mínimo de sinalização narrativa coerente.

Aí estão Campos de Carvalho, Robert Sheckley, Ionesco, Jarry. Nesses livros acontecem somente coisas bizarras, mas o leitor não tem o menor problema em acompanhá-las.  Seu problema é quando a sinalização narrativa funciona de outra forma, como em Joyce ou como o Catatau de Paulo Leminski, que são fluxos de frases pouco consequenciais.

Quando não existe essa sinalização visível, o leitor tem a sensação de estar o tempo todo recomeçando do zero. Ele não armazena narrativa; cada frase lida desaparece sem criar uma continuidade, e ele se sente o tempo todo de mãos vazias.

Já vi leitor reclamar de certos livros vanguardistas: “O cara fica o tempo todo taxiando e não decola.”  É uma descrição perfeita. O “decolar” que o leitor espera é o arrebatamento de uma narrativa onde ele sinta que alguma coisa está acontecendo e que ele (leitor) está conseguindo acompanhar.

Leminski... Os dois romances publicados pelo poeta curitibano (Agora é que são elas, Catatau) são muito diferentes, e nenhum dos dois obedece a essa estilística.  Poderíamos chamar essa estilística mais convencional de  “estilística de best-seller”, se isso não passasse a idéia errônea de que livros assim vendem mais do que os outros. Não vendem. Apenas são livros mais fáceis de entender, porque o autor vai sinalizando o rumo para o leitor, usando artifícios assim.

Como aquelas bandeirolas que o pessoal finca nas trilhas entre terras pantanosas, avisando aos transeuntes: “venha por aqui”.

O leitor precisa de continuidade, precisa saber onde está pisando, mesmo que a paisagem em torno seja de árvores desconhecidas ou surreais.

Esse recurso de usar um termo para transferir o parágrafo seguinte se assemelha ao recurso que o cinema usava antigamente para introduzir um flashback, uma cena de rememoração.

O sujeito estava sentado num banco do calçadão da praia. Alguém ao lado dizia: “Você está tão pensativo...”  E ele dizia: “Estou lembrando de quando estive na Flórida com uma antiga namorada. Marybelle.”

A câmera se aproximava devagar do rosto dele, que ficava em silêncio, com o olhar perdido; a imagem começava a ondear, como se estivesse sendo vista através de uma água em movimento; e surgia em fusão a imagem de outra praia ensolarada ou enluarada (para fazer contraste com a praia do presente) e o personagem, mais jovem e com roupa mais jovem, andando de mãos dadas com uma moça.

Isso fez parte da gramática do cinema durante dez mil anos, mas a narrativa mais moderna, de cortes rápidos, transferiu esse recurso para a prateleira dos clichês com prazo vencido. Hoje o cara abre uma gaveta, pega uma foto de praia, a câmera mostra a foto, e no segundo seguinte já estamos na praia do passado – sem preparação, sem aviso. E o público entende. Por que? A sinalização mudou. No cinema, desde os filmes de Jean-Luc Godard.

Godard. Ele próprio, que era tão iconoclasta, sabia que nenhuma sinalização funciona para 100% das pessoas. Eu sou um leitor tarimbado e acho esse recurso do “parágrafo anunciado” o ó, mas sei também que para muitos leitores ele ajuda a transição entre duas faixas mentais.














quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

4306) "Com amor, Van Gogh" (18.1.2018)



Existe uma grande semelhança de resultado entre o filme Com amor, Van Gogh (“Loving Vincent”) de Dorota Kobiela e Hugh Welchman (em cartaz no Brasil) e os dois longas de animação rotoscópica feitos anos atrás por Richard Linklater (Waking Life, 2001, e O Homem Duplo, 2006). São filmes onde primeiro a câmera registra os atores falando e agindo, e depois essas imagens são “pintadas por cima”.

No caso de Loving Vincent, ao invés das técnicas costumeiras de estúdio foram usadas tela e tinta a óleo, semelhantes às que Van Gogh usava para pintar. Isto dá a este filme uma textura totalmente original.

Filmes rotoscópicos (total ou parcialmente) há muitos, mas gosto muito dos dois de Linklater porque eles evocam (principalmente o segundo) o universo de Philip K. Dick. O Homem Duplo é baseado no romance A Scanner Darkly, de Dick.

A primeira impressão produzida por Loving Vincent, um filme de “pintura animada”, como o chamou João Batista de Brito, é de um senso permanente de irrealidade. Isso já estava presente nos filmes de Linklater. Ambientes, corpos, rostos, objetos, tudo parece se comportar como na “vida real”, mas tudo é recoberto por uma ficção visual permanente, uma textura escandalosamente não-real que em momento algum nos permite entrar numa zona-de-conforto perceptiva.

Vendo um filme assim, o “distanciamento brechtiano” é inevitável: sabemos, o tempo inteiro, que é um filme, uma coisa construída a poder de borrões, manchas, pinceladas coloridas.

Isto entra em choque com o tom naturalista dos gestos, movimentos, expressões faciais, porque afinal de contas houve em algum momento um ator ou um  atriz sendo filmada. Cada cena tem como base da imagem uma infraestrutura realista de aparência e de movimentos, e sobre esta foi aplicada uma camada permanente de cores irreais e texturas impossíveis.


O resultado – em mim, pelo menos – é semelhante ao que temos nos sonhos, em que a intensa e falsa sensação de realidade (tem sonhos que parecem mais reais que o Real) é contaminada o tempo inteiro por uma certa incompletude, uma incoerência, um esgarçamento.

No sonho, a emoção parece 100% autêntica, mas isso é comprometido por um ruído constante de percepção, porque vemos as coisas com distorções, lacunas, falta de substância.

No filme de Van Gogh, isso fica ainda mais evidente em certas cenas de transição em que uma parede torna-se em alguns segundos o céu noturno, e só então percebemos o quanto o recurso técnico de fusão/superposição de imagens, geralmente para passar de uma cena a outra, já está tão assimilado pelo nosso cérebro que não percebemos o seu poder de desmobilizar nosso código de visão. E a vemos aqui como os espectadores de 100, 120 anos atrás viam as primeiras fusões de imagens fílmicas.

Loving Vincent é dessa maneira um alucinação sob controle que dura 95 minutos. É curioso e adequado que os filmes de Richard Linklater, que adotam esse processo técnico, tenham tido como inspirador Philip K. Dick. Tanto Dick quanto Van Gogh tiveram vidas alucinatórias. Drogas, loucura, imersão suicida na maginação criativa, dificuldade de sobrevivência... tudo isto os dois tinham em comum. E um descolamento contínuo do real, do banal, do feijão-com-arroz, para mergulhar num universo perceptivo só seu.

Adequado também que tanto Scanner quanto Vincent sejam histórias de investigações policiais, porque isto traz à tona o substrato existencialista de todo whodunit: O que é o real? O que foi que de fato aconteceu? O que existe de concreto por trás das versões conflitantes, da alucinação privada de cada um, o idiokosmos, como Dick gostava de chamar?

Aldous Huxley foi um dos primeiros a traçar o paralelo (em As Portas da Percepção, 1954) entre drogas, loucura e a experiência visual de certos artistas.

A exuberância lisérgica de Vincent nos dá uma idéia do mundo tão deslumbrante quanto exaustivo em que vivem os indivíduos mergulhados em estados alterados de consciência. As portas da percepção, talvez, devam ficar apenas entreabertas, somente uma rachadura deixando a luz entrar (como dizia Leonard Cohen), pois ninguém suporta uma vida inteira experimentada assim.



A percepção fraturada da realidade dá-se de maneira distinta no sonho, no uso de diferentes drogas, nas várias formas de loucura. (Tem gente que prefere dizer “transtorno mental” ou equivalente, mas eu não acho que loucura seja um termo pejorativo ou uma ofensa. É uma experiência humana como tantas outras.)

Talvez nenhum outro meio possa, como o cinema, produzir em nós essa impressão de estar vivendo algo que é real, palpável, indiscutível, e ao mesmo tempo incompleto, descontínuo, cheio de solavancos mentais.

Loving Vincent mostra essa contradição entre beleza e sofrimento. Agonia e Êxtase, título de um cinebiografia de Michelangelo, serviria também a este filme, que nos induz a ver a vida de Van Gogh como uma espécie de viagem-de-LSD permanente em seu misto de intensidade sensorial e desorientação cognitiva.

Um mundo de beleza insuportável, onde os objetos e os seres parecem perder sua historicidade e função para virar apenas uma série de manchas coloridas, de camadas pastosas que se superpõem emitindo luz e cor. E cabe a quem vive aquilo criar um sentido para tudo aquilo. Quem pode?






segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

4305) Oito acidentes de rotina (14.1.2018)



1
Suvrinda Amantchali, 48, agente imobiliária, moradora de Nova Delhi, estava sozinha em casa à noitinha quando houve um black-out.  Resolveu fazer um café, foi à cozinha no escuro com uma vela acesa em cima de um pires, ligou o gás, constatou que como se não bastasse a falta de luz o gás também tinha acabado, foi no quartinho dos fundos, trouxe o bujão de reserva, ligou-o com impaciência, sem perceber que tinha deixado o bico do fogão aberto, e a vela a meio metro de distância em cima da pia.

2
Paulo Alcides Monteiro, 27 anos, carioca, vinha andando pela rua quando percebeu que seu tênis direito estava com o cadarço solto.  Deu mais alguns passos e parou junto a um portão de chapas de metal, um tanto elevado em relação à calçada, e pousou ali o pé para amarrar o laço. O portão tinha uma brecha de uns quatro dedos em relação ao chão de cimento, e foi por ali que o doberman trancado abocanhou o pé dele.

3
Helmut Weissberg, 48 anos, morador de Munique, vinha voltando para casa de madrugada, numa estrada rural, ao volante de sua picape, após uma noitada numa cervejaria, quando ao entrar no povoado onde morava derrapou numa curva, desceu aos trambolhões pelo barranco, destruiu algums cercas e se chocou com o muro de uma casa, e como estava sem cinto de segurança foi arremessado no ar através de uma janela aberta onde aterrissou no quarto onde sua esposa, inadvertidamente, entregava-se a folguedos inconfessáveis com Mathias Brommberg, 51 anos, carteiro municipal.

4
Ananda Molinaro, 44 anos, manicure, residente em Palermo (Sicília), estava sozinha em casa à noite quando viu um escorpião sair de entre as pedras da parede e cruzar a sala. Lembrou-se da lenda a respeito de cercar o escorpião com um círculo de fogo para que ele se suicidasse, muniu-se de álcool e fósforos, e acabou ateando fogo ao animal, que disparou pela casa transferindo as chamas para o tapete, as cortinas, a toalha da mesa, o carrinho do bebê.

5
Barney Duclane, 48 anos, operário da construção civil em Baltimore, estava trabalhando no sexto andar de um edifício em construção quando, ao desferir uma martelada mais forte na tábua que estava pregando, viu a cabeça do martelo escapar do cabo e descrever um arco veloz cortando o espaço e terminando do outro lado da rua à altura da calçada, onde se chocou diretamente com a têmpora direita de James R. Martindale, 34 anos, corretor de seguros, cujo último pensamento foi a respeito da casa de praia que pretendia comprar dali a dois anos, quando recebesse uma promoção.

6
Damião Barbosa da Cunha, 31 anos, ambulante na praia de Ponta Negra (Natal), subiu num coqueiro para tirar um coco e vender a uma turista mas o coco escapou-lhe das mãos e caiu lá de cima sobre o fogareiro de uma barraca vizinha, ateando fogo ao plástico que a recobria e causando um corre-corre que foi causa de uma colisão envolvendo seis veículos, entre eles o Porsche de um deputado que quebrou o nariz e processou Damião por danos físicos e psicológicos.

7
Luzia Maria da Silva Oliveira, 23 anos, dona de casa, acordou sozinha em casa com o bebê chorando, deu-lhe uma aguinha, ligou o fogo e botou a mamadeira para escaldar, arrastou o tamborete para perto, agradeceu em silêncio pelo bebê ter se calado, pensou na vida, pensou no futuro, pensou quando o bebê já fosse grandinho e ela pudesse passear no parque, comprar sorvete, correr na grama atrás de um cachorro, fazer festinha temática de aniversário, as brincadeiras, as prendas, e de repente um cheiro acre no nariz e ela despertou para a realidade do dia claro, o bebê chorando e a fumaça preta se elevando da panela por entre o odor pungente de plástico derretido.

8
Lourival Carmelo da Silveira, 51 anos, funcionário público, reuniu em casa, num domingo de sol, uma horda vociferante de torcedores uniformizados, para acompanhar pela TV um clássico qualquer, entre caipirinhas e tiragostos variados, e para tirar onda abriu com cuidado a tampa de uma garrafa de cachaça e depois a colocou de volta, deixando-a na mesa da sala, até que alguém ergueu a garrafa e pediu o abridor adrede surrupiado, e Lourival bazofiou, “isso eu abro é com o dente!”, ergueu a garrafa, encaixou com firmeza o dente na tampa já preparada, e com um gesto firme do pulso deu-lhe um sacolejo forte que fez voar pelos ares um canino sanguinolento.








quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

4304) O mundo submerso de J. G. Ballard (11.1.2018)



Este romance de meio século atrás é parte de uma série de obras em que J. G. Ballard (1930-2009), no início de sua carreira, explorou diferentes versões do fim do mundo em catástrofes planetárias: em The Wind From Nowhere (1962), tufões arrasadores; em The Burning World (1964), uma seca que transforma o mundo num deserto; em The Crystal World (1966), um fenômeno misterioso que se alastra, cristalizando as florestas e os animais.

Em The Drowned World (1962) é o aumento da radiação solar que derrete os pólos, alaga a maior parte do mundo civilizado e aumenta insuportavelmente a temperatura das zonas temperadas, obrigando o que resta da humanidade a migrar na direção dos pólos, que agora são habitáveis.

E o mundo visualizado por Ballard não é meramente uma superfície lisa de água onde despontam os andares superiores do que resta dos antigos arranha-céus submersos. É um mundo de calor sufocante e de uma proliferação grotesca da vida vegetal e animal. O que um dia foi a Inglaterra é agora uma sucessão de lagoas e pântanos onde a vida fervilha e os seres humanos tornaram-se insignificantes como insetos raros.

Alguns títulos de capítulos dão uma idéia do mundo que Ballard (um autor visualista acima de tudo) descreve: “A Chegada dos Iguanas”, “A Arca Submersa”, “Carnaval dos Aligátores”, “A Festa das Caveiras”.



Entre as inúmeras polarizações que a gente pode traçar dentro da FC, existe uma que opõe uma tendência da FC norte-americana a uma tendência da FC britânica.

Em uma parte da FC norte-americana há uma tendência triunfalista. Ela postula que o ser humano (visto nela como uma mera extensão do americano médio) é uma criatura de recursos inesgotáveis, capaz de enfrentar os maiores desafios e obstáculos, para no fim, contra todas as probabilidades, sair vencedor, graças a sua inteligência, astúcia e espírito de luta. Autores típicos seriam Robert Heinlein, Isaac Asimov.

É uma ficção otimista, afirmativa, “pra cima”.

Já a FC britânica que se opõe a esta é sacrificialista. Ela reconhece que o Universo precede o ser humano, e que é este que deve se adaptar àquele. O Universo vai passar o rodo na humanidade mais cedo ou mais tarde, e haverá uma certa grandeza, da parte de nossa espécie, em reconhecer e aceitar isso quando chegar a hora, com a serenidade com que tantas pessoas aceitam sua morte individual. E J. G. Ballard é um autor típico dessa tendência.

Como em toda generalização, as exceções são numerosas de parte a pate. O pessimismo cósmico do norte-americano H. P. Lovecraft tem pouco a ver com o seu país; e a Inglaterra tem todo um veio de space-operas tão triunfalistas quanto as dos EUA.

Em The Drowned World, tão interessante quanto a transformação climática e biológica dos continentes é o processo de regressão psíquica por que passam alguns personagens, entre eles o biólogo Robert Kerans, o protagonista.

Kerans sente que a transformação do mundo à sua volta deflagra uma transformação mental em si próprio. Sua consciência individual começa a encolher, dando espaço a conteúdos inconscientes que emergem e o arrebatam.  Ele se sente voltar a um tempo pré-histórico (“archeopsychic time”) em que o mundo era daquele jeito, e sente a compulsão de se fundir a esse novo ambiente selvagem.



É um tempo em que o futuro projeta a humanidade no passado, no Período Triássico, a última era geológica em que aquelas características de temperatura vigoraram na Terra.

Ballard sempre gostou de jogar seus protagonistas em contextos cósmicos hostis e inacessíveis. Muitos dos seus livros-catástrofes são fantasias de impotência em que os heróis percebem desde cedo a inutilidade de lutar contra o Universo e são forçados a se adaptar a ele.

O contraponto ao fatalismo estóico de Kerans cabe ao Coronel Riggs, o comandante do posto militar que supervisiona a estação científica. É o típico militar da pulp fiction, resoluto, prático, incuravelmente otimista; um militar de filme B norte-americano. Ballard não o ridiculariza, mas mostra o que há de patético na luta de um homem que se opõe a uma catástrofe planetária tentando fazer cumprir as tarefas e obedecer o regulamento.

Não que não haja alguma sátira, como neste trecho:

De fato, o dr. Bodkin, assistente de Kerans na estação, tinha preparado às escondidas um documento que fingia ser o relatório de uma testemunha ocular, um dos sargentos do Coronel Riggs, do avistamento de um enorme lagarto com barbatana dorsal cruzando uma das lagoas, um monstro indistinguível, sob qualquer critério, de um Pelicossauro, um réptil ancestral da Pensilvânia. Se este relatório tivesse sido aceito como verdadeiro, anunciando a volta triunfal da era dos répteis gigantes, um exército de ecologistas teria desembarcado ali imediatamente, reforçado por uma unidade tática portando armas atômicas, e com ordens para se dirigir rumo sul a uma velocidade constante de vinte nós. No entanto, a não ser o registro rotineiro de “mensagem recebida”, nenhuma resposta chegou. Talvez os especialistas em Camp Byrd estivessem cansados demais até para dar risada. (p. 8-9)

Os filmes B de ficção científica dos anos 1950 mostravam essas equipes conjuntas de cientistas, políticos e militares reunindo-se para enfrentar tarântulas gigantes, louva-a-deuses gigantes, formigas gigantes, sempre com um certo atrito interno mas com a euforia bélica de quem se sabe dono do planeta. Ballard sempre tratou esse tipo pueril de FC com um desdém bem humorado. Ele era da linha de aceitar a catástrofe, ou de ficar, como dizia Buñuel, “contente com o extermínio”.

O futuro imaginado por Ballard é uma regressão brutal ao passado pré-histórico, uma fusão vertical de camadas do Tempo que se misturam, tanto na paisagem física quanto no ambiente psíquico dos personagens.

Quando mais devagar um relógio, mais ele está se aproximando da progressão majestosa e infinitamente gradual do tempo cósmico – e na verdade, ao fazermos um relógio andar para trás estamos criando um instrumento que se move mais devagar do que o universo, e que consequentemente faz parte de um sistema espaço-temporal ainda mais amplo.

O antirrelógio sugerido por Ballard, é claro, é meramente metafórico: não estaria da verdade “andando às avessas” mas meramente substituindo uma progressão de elementos por uma regressão, sem que isso o projetasse num outro contínuo. Tão impossível quando a máquina do Tempo de H. G. Wells, ele serve no entanto como um indicador da rebeldia do autor e de sua determinação em andar na contramão da FC triunfalista de sua época.












quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

4303) Dias de poesia e festa (9.1.2018)




Este ano, a tradicional festa dos cantadores em São José do Egito teve, como mote de homenagem, “103 anos de Louro / 100 anos de Zé Catota”. Louro é o famoso Lourival Batista, um dos grandes cantadores do Pajeú, nascido em 1915 e falecido em 1992; Zé Catota (José Lopes Neto) era um poeta local menos famoso, mas igualmente querido, e foi bonito ver no último dia um neto e quatro netas dele subirem ao palco para recitar e agradecer a homenagem.

Tenho ido à festa nos últimos cinco anos, meio que tentando tirar o atraso. Desde os idos dos anos 1970 que meus amigos violeiros me chamavam para ir lá, curtir dois ou três dias de versos e de libação, que eram ainda mais animados no tempo em que Louro era vivo, com sua hospitalidade, sua verve trocadilhesca, seu senso de humor ferino.

Convivi com Louro durante alguns anos, viajei com ele, vi-o cantar em uma dúzia de Estados brasileiros. Nunca o vi em São José do Egito, que era sua fonte e seu castelo. Mas é assim mesmo; toda história é tecida de fios e vazios.

Desta vez, o pretexto profissional da minha ida foi duplo. Fui lançar meu romance Bandeira Sobrinho – uma vida e alguns versos (Editora Imeph, Fortaleza), história de um cantador da geração de Louro, poeta fictício onde tentei reunir traços humanos de muitos poetas cinqüentões ou sessentões com quem convivi quando tinha vinte-e-poucos.



O segundo pretexto foi mediar uma mesa-redonda de estudiosos e amantes da poesia, cada qual com seu foco de interesse e seu estilo de abordagem.

Gilmar Leite, filho de São José do Egito, apresentou seu livro Corpo e Poesia – para uma Educação do Sensível, resultado de sua tese de mestrado. Um debate freqüente entre nós, admiradores da Cantoria de Viola e da Literatura de Cordel, é sobre a distinção entre palavra (e poesia) falada e palavra (e poesia) escrita. Gilmar lembrou a importância da fala para a inspiração poética, e puxou uma recordação de Zeto, poeta da região, genro de Louro, que quando cantava ou recitava mobilizava o corpo inteiro e parecia entrar em transe.

A fala de Gilmar me trouxe à memória uma resposta de Allen Ginsberg, o poeta beatnik de Nova York. Perguntaram a ele por que tinha usado versos livres tão extensos em seu famoso poema “Uivo” (“Howl”), e ele disse: “Cada verso tem a medida exata do ar dos pulmões; eu vou dizendo em voz alta o verso, e quando o ar acaba eu corto e começo a linha seguinte.”  O corpo (o pulmão) usado como régua da métrica.

Em seguida veio Antonio José de Lima, “Tõe Zé”, outra figura muito querida do Pajeú, que lançou o livro Legado Filosófico de Poetas e Repentistas Semianalfabetos, onde ele compara trechos e frases de filósofos e poetas, desde a Antiguidade até a era moderna, com os versos dos cantadores humildes do Nordeste, que por vias transversas e heranças orais acabam chegando a reflexões semelhantes.

Tõe Zé se fez acompanhar por uma dupla de violeiros jovens, Bondoso e Silvano. No livro ele, “apologista” de muitos anos, recorre à extensa memória para trazer versos antigos e esquecidos, mas também cita versos de João do Vale, Patativa do Assaré e outros. O termo “semianalfabeto” sempre gera alguma discussão, porque algumas pessoas o acham um tanto ofensivo. Todo mundo lembrou a resposta famosa de Pinto do Monteiro, quando um jornalista começou a dizer algo tipo: “Seus versos são incríveis, o senhor, semianalfabeto...” e Pinto interrompeu: “Não, eu sou analfabeto mesmo. Semianalfabeto é você.”

Finalmente, Antonio Nóbrega trouxe uma pesquisa longa e bem documentada com exemplos sobre as origens da décima, a estrofe mais cultivada pelos cantadores, seja para glosar motes, seja para fornecer o esquema de rimas para gêneros como o martelo agalopado, o galope beira-mar, o martelo alagoano e outros. As rimas da décima se organizam no esquema ABBAACCDDC, usado por Gregório de Matos no século 17, e que ainda está vivo no Nordeste, e ecoa diariamente no vale do Pajeú.

Tudo isso sem falar nos quatro dias de shows e recitações. A família Passos cantando e recitando versos em lembrança ao seu patriarca, falecido em agosto; um show inesquecível de Cátia de França, roqueira e baiãozeira vigorosa no esplendor dos 70 anos; Silvério Pessoa lembrando canções de Ivan Santos e Rosil Cavalcanti. 

Uma boa mesa de glosas comandada por Jorge Filó (sempre com presença feminina acentuada), e baiões de viola com Valdir Teles e Diomedes Mariano.  Vi uma banda de coco azeitadíssima de Triunfo (PE), com uma vocalista de rapidez e precisão impressionantes, e que se apresenta em versão eletrônica como “Radiola Serra Alta” e em versão acústico-percussiva como A Cristaleira.

Vi a bela voz de Aline Paes acompanhada pelo pandeiro de Bernardo Aguiar e pelo violão onipresente de Greg Marinho. Os shows da família Marinho, filhos e netos de Louro que (com a “Página 21”, do Recife) produzem o evento: desde Tonfil cantando MPB até Val Patriota cantando dor de cotovelo, Bia Marinho desfiando um belo repertório de canções suas e de outros, e seus filhos Antonio, Greg e Miguel Marinho liderando a banda Em Canto e Poesia, em cuja apresentação Nóbrega deu uma bela canja e me chamou para cantar estrofes (inclusive não-gravadas) de nossa ciranda “Carrossel do Destino”).

A festa de Louro é como a Lua: cresce agora, diminui mais tarde, depois volta a crescer, e se mantém há cerca de meio século abrindo com poesia o ano civil do Pajeú. Hoje são seus netos que tomam a frente, amanhã serão seus bisnetos. As crises políticas e econômicas vêm e passam, e a poesia continua firme e leve, fotografando a alma do tempo.

Um dia eu ainda vou recortar todos esses dias que passo na Festa de Louro, sair juntando todos os trechos e depois emendar o último no primeiro pra fazer um loop. Aí resolve tudo.

Quero deixar de ser eu
porque ser eu é ser muitos;
eu sou tantos outros juntos
que nenhum prevaleceu.
Eu tenho um lado judeu
tenho outro palestino
um lado novaiorquino
e outro de Kandahar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do Destino.









segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

4302) "Martín Fierro": um romance de cordel (8.1.2018)



(ilustração: Molina Campos)

É curioso que o livro considerado pelos argentinos como a epopéia nacional argentina, a obra canônica que define a nação de Julio Cortázar, Ricardo Piglia e Jorge Luís Borges, seja uma espécie de romance de cordel.

O Martín Fierro (1872, 1879) de José Hernández é descrito em geral como um poema épico, pela sua longa extensão e temática guerreira. Borges, num ensaio famoso (El “Martín Fierro”, 1953, com Margarita Guerrero) acrescenta que isso só se dá porque alguém convencionou que todo povo precisa ter um Ilíada ou uma Eneida.

Diz Borges que a tradição homérica cria um senso de obrigação de tal peso que no século 18 Voltaire se obrigou a escrever a Henriade para que não faltasse um epopéia à literatura francesa.

Não faltou à argentina. O Martín Fierro foi um enorme sucesso popular desde 1872, quando foi publicada aquela que é hoje sua primeira parte, intitulada El gaucho Martín Fierro. A vendagem impressionante do livro fez o autor publicar sete anos depois A volta de Martín Fierro.

Desde então as duas partes são editadas em conjunto. O livro de Hernández tornou-se um desses clássicos compostos de duas partes lançadas com um longo intervalo, como ocorreu com o Dom Quixote de Cervantes, o Fausto de Goethe e os livros da Alice de Lewis Carroll.


O Martín Fierro é uma história de aventuras e desgraças ambientada no pampa argentino. Fierro é um pequeno agricultor com mulher, filhos e um ranchinho. É recrutado na marra pelo exército, para combater os índios. Daí em diante, sua vida nunca mais se apruma. Vira desertor, comete crimes, é preso pelos índios e passa anos como cativo. Quando volta, muitos anos depois, a mulher morreu e os filhos contam os problemas por que passaram.

Chamei o livro de Hernández de “romance de cordel” pelo fato de que esse épico argentino não foi escrito nos hexâmetros de Homero nem organizado nas oitavas de Camões. É um poema em sextilhas, basicamente, com raras interpolações de outras estrofes, como a quadra.

A sextilha de Hernández é diferente da nossa sextilha cordelesca. Ambas são estrofes de seis versos com sete sílabas. (Os argentinos dizem que esse verso é octossílabo, mas eles contam a última sílaba átona, e nós não.) Nossa sextilha nordestina tem o esquema de rimas ABCBDB, com o segundo, o quarto e o sexto verso rimando entre si. A sextilha de Hernández segue quase sempre o modelo abaixo (traduzo a estrofe inicial do poema):

Aqui me ponho a cantar
ao compasso da viola,
que o homem a quem assola
uma pena extraordinária
como a ave solitária
com o cantar se consola.

Seria portanto um esquema ABBCCB, mas não é preciso muito exame para perceber que esse curioso formato não passa de uma décima decapitada, uma décima tipo ABBAACCDDC da qual foram cortados os quatro primeiros versos. Não faço idéia da origem desse formato.

(ilustração: Molina Campos)

Em todo caso, é curioso que esse poema de tema rústico seja aceito pelos eurófilos argentinos como um retrato fiel de sua nação. Talvez seja a eterna ilusão do Bom Selvagem tornado mau pelo atrito com a civilização. Ou aquela dívida atávica de toda cultura urbanóide para com o mundo rural que lhe mata a fome. Ou o fascínio milenar dos versos contendo o que Ariano Suassuna chamava de espírito cavalariano e aventuroso.

Em todo caso, Borges, no seu livrinho, propõe uma discussão importante sobre o gênero da obra. Diz ele que não se pode confundir a natureza do poema com as epopéias genuínas, que são outro tipo de literatura; mas que o MF tem, sim, uma faceta épica, porque parece mais com as sagas nórdicas e com a Odisséia do que com os versos de Verlaine.

Ou seja: quem lê o poema o lê para conhecer as peripécias da história, não para admirar a beleza do fraseado. O MF é épico porque é narrativo, é aventuroso, é de prender a respiração e de arregalar os olhos.



E Borges esclarece:

Além disso, a palavra [epopéia] pode nos prestar outro serviço. O prazer que proporcionavam as epopéias aos primitivos ouvintes era o que hoje proporcionam os romances: o de ouvir que aconteceram tais coisas a tal homem. A epopéia foi uma pré-forma do romance. Assim, descontado o acidente do verso, caberia definir Martín Fierro como um romance. Esta definição é a única que pode transmitir com exatidão o tipo de prazer que nos dá e que coincide, sem causar espécie, com sua data, que foi – quem não o sabe? – a do século novelístico por excelência: o de Dickens, o de Dostoiévski, o de Flaubert. A épica exige a perfeição dos personagens; o romance vive de sua imperfeição e complexidade.
(p. 94-95, trad. Carmem Vera Cirne Lima)

Daí minha afirmação, lá no início, de que o poema nacional argentino é um cordel. Não é por acaso que chamamos de “romances” os cordéis longos, de histórias aventurosas. Isso nada tem a ver com o nosso conceito de romance em prosa (Guerra e Paz, Menino de Engenho, etc.). Tem a ver com os romances em versos da cultura ibérica, o famoso Romanceiro Popular.

O Martín Fierro é uma dessas narrativas em verso com começo, meio e fim, ricas de episódios intermediários, narrativas que não têm a ambição realista, e sim a volúpia da imaginação e da aventura. São realistas por reflexo, porque revelam de forma quase inconsciente a realidade física e mental das pessoas que escrevem e leem essas histórias.

José Hernández fez com as sextilhas dos payadores do pampa o que um seu contemporâneo, igualmente erudito, como José de Alencar, poderia ter feito caso dominasse as formas poéticas de outros contemporâneos de ambos, como os poetas da Escola do Teixeira – Francisco Romano, Silvino Pirauá e outros.

Talvez uma das razões para a celebridade e o sucesso perene do Martín Fierro seja o fato de que o povo argentino reencontra ali, entre tantas outras coisas, a sua poesia oral, inclusive com a realização, na II Parte, de um desafio de viola, ou payada en contrapunto, entre Martín Fierro e outro payador.

Aqui, o texto completo original, com comentários, glossários e ilustrações: