quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

4308) Ursula K. Le Guin 1929-2018 (24.1.2018)



Ursula K. Le Guin surgiu na ficção científica norte-americana na década de 1960, com um impacto considerável tanto na FC quanto na Fantasia. Ao contrário de gerações inteiras de autores cuja escola literária foi a pulp fiction dos anos 1940-50, ela vinha de um ambiente acadêmico: seu pai era um antropólogo de renome, a mãe era escritora, o marido era professor de História.

Em seus numerosos ensaios (p. ex.: The Language of the Night, ed. Susan Wood, Berkley, 1979; Dancing at the Edge of the World, Grove Press, 1989) ela reconstitui seu aprendizado do gênero, sempre enfatizando que o que de início a afastou da FC foi o fato de até uma certa época enxergar no gênero, superficialmente, apenas uma literatura acintosamente masculina e bélica.

Indo de encontro aos manuais-de-roteiro de hoje, para quem todo enredo se baseia em conflito, ela dizia:

Afirmar que a Narrativa depende a esse ponto do conflito é afirmar o Darwinismo Social em toda sua glória, desconfio eu com tristeza. A existência como uma luta, a vida como uma batalha, tudo sendo visto em termos de vitória e derrota: Homem vs Natureza, Homem vs Mulher, Negro vs Branco, Bem vs Mal, Deus vs Diabo – uma espécie de visão apartheid da existência, e da literatura. Que lamentável empobrecimento da complexidade de ambas!
(Dancing, p. 190)

Ursula se opunha a essa “visão gladiatorial da ficção” e trouxe para sua literatura um enfoque de maior complexidade e sutileza. Não que ela negue a existência de polaridades, mas sua visão é imbuída da polaridade do Taoísmo, o Yin e o Yang, em que cada polo traz em si a semente do polo oposto.

Recomendo, aliás, sua tradução do Tao Te King de Lao Tsé (Tao Te Ching, a Book about the Way and the Power of the Way, Shambhala, Boston, 1998.)

Sua literatura mostra a presença permanente de uma consciência pensante, uma lucidez serena e equilibrada que governa a construção dos enredos, a dinâmica dos entrechoques entre os personagens. A ponto de Peter Nicholls, na primeira edição da Encyclopedia of Science Fiction (Granada, Londres, 1978), afirmar:

Talvez UKLG tenha sido excessivamente elogiada; ainda é cedo para dizer que ela é a maior escritora de FC, como alguns críticos, pelo menos, parecem admitir. (...) Se existe uma fraqueza em sua obra é uma fraqueza paradoxal, uma espécie de certeza grave e recatada que poderia, talvez, receber com proveito o fermento de uma certa abertura para o aleatório e o imprevisível.
(Encyclopedia, p. 347-348)

Ou seja: na obra dela falta doidice, falta desequilíbrio, falta uma certa gratuidade que lembre a vida real. Le Guin é uma autora clássica em vários sentidos do termo, e na verdade foi este impacto positivo que ela trouxe para uma literatura onde as formas tecnológicas e populares do Romantismo (o New Romance a que William Gibson viria a aludir com Neuromancer) mandavam e desmandavam.

Tranquila e cortês, nem por isto Le Guin deixou de encarar com entusiasmo uma boa polêmica – com editores, com escritores, com críticos, com os fãs. Um dos seus ensaios mais conhecidos é “Science fiction and Mrs. Brown”, onde ela pergunta se há lugar para personagem encorpadamente literários numa ficção tão propensa ao rápido, ao vistoso, ao melodramático, ao meramente extraordinário.

A ficção científica se acomodou, em grande parte, com uma lista pseudo-objetiva de maravilhas e portentos e horrores que não iluminam nada além de si mesmos e na verdade carecem de ressonância moral: são apenas sonhos acordados, devaneios e pesadelos. Sua inventividade é esplêndida, mas fechada em si mesma e estéril. E a faceta mais excêntrica e pueril do fandom da FC, os grupinhos fanáticos e desconfiados, tanto alimentam esse tipo de trivialidade quanto são alimentados por ela, o que em si é algo inofensivo, mas contribui para degradar o gosto, porque mantém muito baixos os critérios dos editores, e as expectativas dos leitores e dos críticos.
(Language, p. 108-109)

Críticas desa natureza nunca caem bem num ambiente de oba-oba como muitas vezes se torna o dos fã-clubes. (Em favor destes, diga-se que o fandom da FC é muito mais crítico e tem muito mais bagagem de idéias do que outros, como o da música pop e o das estrelas de cinema.)

Embora outras escritoras de FC sejam muito mais identificadas como uma vanguarda feminista dentro do gênero (como Joanna Russ, “James Tiptree Jr.”, etc), Le Guin é uma referência permanente na discussão da questões de gênero, principalmente depois do romance A Mão Esquerda da Escuridão (título da edição brasileira pela Ed. Aleph, de São Paulo) onde ela imagina uma raça humana onde cada indivíduo é sexualmente neutro a maior parte do tempo, e uma vez por mês, na época do “cio”, torna-se ou homem ou mulher, de modo aleatório.

Quando seu conto “Nine Lives” foi publicado em novembro de 1969 na revista Playboy, os editores lhe pediram para abreviar seu nome para “U. K. Le Guin”, argumentando: “Muitos dos nossos leitores têm receio de ler histórias escritas por mulheres”, e ela irrefletidamente concordou. Disse depois:

Não pensei muito a respeito disso; diverti-me um pouco, senti uma certa ironia, e decidi, vagamente, que já que eles pagavam tão bem aos autores tinham direito a pequenas venetas. (...) A supressão desta única palavra, tão significativa, foi o único caso de Censura Mercadológica direta que já houve sobre minha obra.
(Language, p. 209)

Mesmo sendo tão culta, tão filosófica, Le Guin sempre foi uma escritora voltada para o pensamento concreto, por imagens, por enredos. Sua inclinação não é para a Teoria Literária, mas para a mitologia, a antropologia cultural, os mitos, as lendas. Ela lembra que seus filhos cresceram lendo a edição de 1959 das Fábulas Italianas de Ítalo Calvino.

O romance The Left Hand of Darkness, diz ela, nasceu de uma imagem:

Eram figuras pequenas, distantes, numa paisagem tremendamente deserta de gelo e de neve. Estavam puxando um trenó ou coisa parecida por cima do gelo, juntas, esforçando-se. Era tudo que eu via. Eu não sabiam quem eram, não sabia sequer qual era o seu sexo (devo confessar que fiquei surpresa quando descobri). Mas foi assim que meu romance teve início, e quando penso nesse livro é ainda nessa imagem que penso. Todo o resto dele, como todo o seu estranho re-arranjo de gênero e suas imagens de traição, solidão e frio, é o meu esforço para alcançar essa imagem, chegar perto dela, chegar àquele momento em que eu vi mentalmente aquelas duas pessoas na neve, isoladas e juntas.
(Language, p. 100-101)

Este pensamento por imagens, comum a tantos artistas criativos, puxa de dentro do inconsciente todos os conteúdos agarrados a essa imagem, tudo que a motivou, tudo que a evoca. Na elaboração dos enredos, surge eventualmente uma teoria, uma justificativa filosófica, mas não é isto que move a ficção. O que a move são essas imagens que nos perturbam e não nos deixam em paz enquanto não escrevemos a fábula que as comporta.








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