quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

4303) Dias de poesia e festa (9.1.2018)




Este ano, a tradicional festa dos cantadores em São José do Egito teve, como mote de homenagem, “103 anos de Louro / 100 anos de Zé Catota”. Louro é o famoso Lourival Batista, um dos grandes cantadores do Pajeú, nascido em 1915 e falecido em 1992; Zé Catota (José Lopes Neto) era um poeta local menos famoso, mas igualmente querido, e foi bonito ver no último dia um neto e quatro netas dele subirem ao palco para recitar e agradecer a homenagem.

Tenho ido à festa nos últimos cinco anos, meio que tentando tirar o atraso. Desde os idos dos anos 1970 que meus amigos violeiros me chamavam para ir lá, curtir dois ou três dias de versos e de libação, que eram ainda mais animados no tempo em que Louro era vivo, com sua hospitalidade, sua verve trocadilhesca, seu senso de humor ferino.

Convivi com Louro durante alguns anos, viajei com ele, vi-o cantar em uma dúzia de Estados brasileiros. Nunca o vi em São José do Egito, que era sua fonte e seu castelo. Mas é assim mesmo; toda história é tecida de fios e vazios.

Desta vez, o pretexto profissional da minha ida foi duplo. Fui lançar meu romance Bandeira Sobrinho – uma vida e alguns versos (Editora Imeph, Fortaleza), história de um cantador da geração de Louro, poeta fictício onde tentei reunir traços humanos de muitos poetas cinqüentões ou sessentões com quem convivi quando tinha vinte-e-poucos.



O segundo pretexto foi mediar uma mesa-redonda de estudiosos e amantes da poesia, cada qual com seu foco de interesse e seu estilo de abordagem.

Gilmar Leite, filho de São José do Egito, apresentou seu livro Corpo e Poesia – para uma Educação do Sensível, resultado de sua tese de mestrado. Um debate freqüente entre nós, admiradores da Cantoria de Viola e da Literatura de Cordel, é sobre a distinção entre palavra (e poesia) falada e palavra (e poesia) escrita. Gilmar lembrou a importância da fala para a inspiração poética, e puxou uma recordação de Zeto, poeta da região, genro de Louro, que quando cantava ou recitava mobilizava o corpo inteiro e parecia entrar em transe.

A fala de Gilmar me trouxe à memória uma resposta de Allen Ginsberg, o poeta beatnik de Nova York. Perguntaram a ele por que tinha usado versos livres tão extensos em seu famoso poema “Uivo” (“Howl”), e ele disse: “Cada verso tem a medida exata do ar dos pulmões; eu vou dizendo em voz alta o verso, e quando o ar acaba eu corto e começo a linha seguinte.”  O corpo (o pulmão) usado como régua da métrica.

Em seguida veio Antonio José de Lima, “Tõe Zé”, outra figura muito querida do Pajeú, que lançou o livro Legado Filosófico de Poetas e Repentistas Semianalfabetos, onde ele compara trechos e frases de filósofos e poetas, desde a Antiguidade até a era moderna, com os versos dos cantadores humildes do Nordeste, que por vias transversas e heranças orais acabam chegando a reflexões semelhantes.

Tõe Zé se fez acompanhar por uma dupla de violeiros jovens, Bondoso e Silvano. No livro ele, “apologista” de muitos anos, recorre à extensa memória para trazer versos antigos e esquecidos, mas também cita versos de João do Vale, Patativa do Assaré e outros. O termo “semianalfabeto” sempre gera alguma discussão, porque algumas pessoas o acham um tanto ofensivo. Todo mundo lembrou a resposta famosa de Pinto do Monteiro, quando um jornalista começou a dizer algo tipo: “Seus versos são incríveis, o senhor, semianalfabeto...” e Pinto interrompeu: “Não, eu sou analfabeto mesmo. Semianalfabeto é você.”

Finalmente, Antonio Nóbrega trouxe uma pesquisa longa e bem documentada com exemplos sobre as origens da décima, a estrofe mais cultivada pelos cantadores, seja para glosar motes, seja para fornecer o esquema de rimas para gêneros como o martelo agalopado, o galope beira-mar, o martelo alagoano e outros. As rimas da décima se organizam no esquema ABBAACCDDC, usado por Gregório de Matos no século 17, e que ainda está vivo no Nordeste, e ecoa diariamente no vale do Pajeú.

Tudo isso sem falar nos quatro dias de shows e recitações. A família Passos cantando e recitando versos em lembrança ao seu patriarca, falecido em agosto; um show inesquecível de Cátia de França, roqueira e baiãozeira vigorosa no esplendor dos 70 anos; Silvério Pessoa lembrando canções de Ivan Santos e Rosil Cavalcanti. 

Uma boa mesa de glosas comandada por Jorge Filó (sempre com presença feminina acentuada), e baiões de viola com Valdir Teles e Diomedes Mariano.  Vi uma banda de coco azeitadíssima de Triunfo (PE), com uma vocalista de rapidez e precisão impressionantes, e que se apresenta em versão eletrônica como “Radiola Serra Alta” e em versão acústico-percussiva como A Cristaleira.

Vi a bela voz de Aline Paes acompanhada pelo pandeiro de Bernardo Aguiar e pelo violão onipresente de Greg Marinho. Os shows da família Marinho, filhos e netos de Louro que (com a “Página 21”, do Recife) produzem o evento: desde Tonfil cantando MPB até Val Patriota cantando dor de cotovelo, Bia Marinho desfiando um belo repertório de canções suas e de outros, e seus filhos Antonio, Greg e Miguel Marinho liderando a banda Em Canto e Poesia, em cuja apresentação Nóbrega deu uma bela canja e me chamou para cantar estrofes (inclusive não-gravadas) de nossa ciranda “Carrossel do Destino”).

A festa de Louro é como a Lua: cresce agora, diminui mais tarde, depois volta a crescer, e se mantém há cerca de meio século abrindo com poesia o ano civil do Pajeú. Hoje são seus netos que tomam a frente, amanhã serão seus bisnetos. As crises políticas e econômicas vêm e passam, e a poesia continua firme e leve, fotografando a alma do tempo.

Um dia eu ainda vou recortar todos esses dias que passo na Festa de Louro, sair juntando todos os trechos e depois emendar o último no primeiro pra fazer um loop. Aí resolve tudo.

Quero deixar de ser eu
porque ser eu é ser muitos;
eu sou tantos outros juntos
que nenhum prevaleceu.
Eu tenho um lado judeu
tenho outro palestino
um lado novaiorquino
e outro de Kandahar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do Destino.









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