Este romance de meio século atrás é parte de uma série de
obras em que J. G. Ballard (1930-2009), no início de sua carreira, explorou
diferentes versões do fim do mundo em catástrofes planetárias: em The Wind From Nowhere (1962), tufões
arrasadores; em The Burning World
(1964), uma seca que transforma o mundo num deserto; em The Crystal World (1966), um fenômeno misterioso que se alastra,
cristalizando as florestas e os animais.
Em The Drowned
World (1962) é o aumento da radiação solar que derrete os pólos, alaga a
maior parte do mundo civilizado e aumenta insuportavelmente a temperatura das
zonas temperadas, obrigando o que resta da humanidade a migrar na direção dos
pólos, que agora são habitáveis.
E o mundo visualizado por Ballard não é meramente uma
superfície lisa de água onde despontam os andares superiores do que resta dos
antigos arranha-céus submersos. É um mundo de calor sufocante e de uma
proliferação grotesca da vida vegetal e animal. O que um dia foi a Inglaterra é
agora uma sucessão de lagoas e pântanos onde a vida fervilha e os seres humanos
tornaram-se insignificantes como insetos raros.
Alguns títulos de capítulos dão uma idéia do mundo que
Ballard (um autor visualista acima de tudo) descreve: “A Chegada dos Iguanas”, “A
Arca Submersa”, “Carnaval dos Aligátores”, “A Festa das Caveiras”.
Entre as inúmeras polarizações que a gente pode traçar
dentro da FC, existe uma que opõe uma tendência da FC norte-americana a uma
tendência da FC britânica.
Em uma parte da FC norte-americana há uma tendência triunfalista. Ela postula que o ser
humano (visto nela como uma mera extensão do americano médio) é uma criatura de
recursos inesgotáveis, capaz de enfrentar os maiores desafios e obstáculos,
para no fim, contra todas as probabilidades, sair vencedor, graças a sua
inteligência, astúcia e espírito de luta. Autores típicos seriam Robert
Heinlein, Isaac Asimov.
É uma ficção otimista, afirmativa, “pra cima”.
Já a FC britânica que se opõe a esta é sacrificialista. Ela reconhece que o
Universo precede o ser humano, e que é este que deve se adaptar àquele. O Universo
vai passar o rodo na humanidade mais cedo ou mais tarde, e haverá uma certa
grandeza, da parte de nossa espécie, em reconhecer e aceitar isso quando chegar
a hora, com a serenidade com que tantas pessoas aceitam sua morte individual. E
J. G. Ballard é um autor típico dessa tendência.
Como em toda generalização, as exceções são numerosas de
parte a pate. O pessimismo cósmico do norte-americano H. P. Lovecraft tem pouco
a ver com o seu país; e a Inglaterra tem todo um veio de space-operas tão triunfalistas quanto as dos EUA.
Em The Drowned
World, tão interessante quanto a transformação climática e biológica dos
continentes é o processo de regressão psíquica por que passam alguns
personagens, entre eles o biólogo Robert Kerans, o protagonista.
Kerans sente que a transformação do mundo à sua volta
deflagra uma transformação mental em si próprio. Sua consciência individual
começa a encolher, dando espaço a conteúdos inconscientes que emergem e o
arrebatam. Ele se sente voltar a um
tempo pré-histórico (“archeopsychic time”) em que o mundo era daquele jeito, e
sente a compulsão de se fundir a esse novo ambiente selvagem.
É um tempo em que o futuro projeta a humanidade no
passado, no Período Triássico, a última era geológica em que aquelas características
de temperatura vigoraram na Terra.
Ballard sempre gostou de jogar seus protagonistas em
contextos cósmicos hostis e inacessíveis. Muitos dos seus livros-catástrofes
são fantasias de impotência em que os heróis percebem desde cedo a inutilidade
de lutar contra o Universo e são forçados a se adaptar a ele.
O contraponto ao fatalismo estóico de Kerans cabe ao
Coronel Riggs, o comandante do posto militar que supervisiona a estação
científica. É o típico militar da pulp
fiction, resoluto, prático, incuravelmente otimista; um militar de filme B
norte-americano. Ballard não o ridiculariza, mas mostra o que há de patético na
luta de um homem que se opõe a uma catástrofe planetária tentando fazer cumprir
as tarefas e obedecer o regulamento.
Não que não haja alguma sátira, como neste trecho:
De fato, o dr. Bodkin, assistente de Kerans na estação, tinha preparado
às escondidas um documento que fingia ser o relatório de uma testemunha ocular,
um dos sargentos do Coronel Riggs, do avistamento de um enorme lagarto com
barbatana dorsal cruzando uma das lagoas, um monstro indistinguível, sob
qualquer critério, de um Pelicossauro, um réptil ancestral da Pensilvânia. Se
este relatório tivesse sido aceito como verdadeiro, anunciando a volta triunfal
da era dos répteis gigantes, um exército de ecologistas teria desembarcado ali
imediatamente, reforçado por uma unidade tática portando armas atômicas, e com
ordens para se dirigir rumo sul a uma velocidade constante de vinte nós. No
entanto, a não ser o registro rotineiro de “mensagem recebida”, nenhuma resposta
chegou. Talvez os especialistas em Camp Byrd estivessem cansados demais até
para dar risada. (p. 8-9)
Os filmes B de ficção científica dos anos 1950 mostravam
essas equipes conjuntas de cientistas, políticos e militares reunindo-se para
enfrentar tarântulas gigantes, louva-a-deuses gigantes, formigas gigantes,
sempre com um certo atrito interno mas com a euforia bélica de quem se sabe
dono do planeta. Ballard sempre tratou esse tipo pueril de FC com um desdém bem
humorado. Ele era da linha de aceitar a catástrofe, ou de ficar, como dizia
Buñuel, “contente com o extermínio”.
O futuro imaginado por Ballard é uma regressão brutal ao
passado pré-histórico, uma fusão vertical de camadas do Tempo que se misturam,
tanto na paisagem física quanto no ambiente psíquico dos personagens.
Quando mais devagar um relógio, mais ele está se aproximando da
progressão majestosa e infinitamente gradual do tempo cósmico – e na verdade,
ao fazermos um relógio andar para trás estamos criando um instrumento que se
move mais devagar do que o universo, e que consequentemente faz parte de um
sistema espaço-temporal ainda mais amplo.
O antirrelógio sugerido por Ballard, é claro, é meramente
metafórico: não estaria da verdade “andando às avessas” mas meramente
substituindo uma progressão de elementos por uma regressão, sem que isso o
projetasse num outro contínuo. Tão impossível quando a máquina do Tempo de H.
G. Wells, ele serve no entanto como um indicador da rebeldia do autor e de sua
determinação em andar na contramão da FC triunfalista de sua época.
Na coleção argonauta aparece o título Cataclismo Solar como tradução desse livro, realmente se trata do mesmo? Já que o título português não relaciona com nada aquático. A versão com título Mundo Submerso é impossível de achar no Brasil.
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