Existe uma grande semelhança de resultado entre o filme Com amor, Van Gogh (“Loving Vincent”) de
Dorota Kobiela e Hugh Welchman (em cartaz no Brasil) e os dois longas de animação
rotoscópica feitos anos atrás por Richard Linklater (Waking Life, 2001, e O Homem
Duplo, 2006). São filmes onde primeiro a câmera registra os atores falando
e agindo, e depois essas imagens são “pintadas por cima”.
No caso de Loving
Vincent, ao invés das técnicas costumeiras de estúdio foram usadas tela e
tinta a óleo, semelhantes às que Van Gogh usava para pintar. Isto dá a este
filme uma textura totalmente original.
Filmes rotoscópicos (total ou parcialmente) há muitos, mas
gosto muito dos dois de Linklater porque eles evocam (principalmente o segundo)
o universo de Philip K. Dick. O Homem
Duplo é baseado no romance A Scanner
Darkly, de Dick.
A primeira impressão produzida por Loving Vincent, um filme de “pintura animada”, como o chamou João
Batista de Brito, é de um senso permanente de irrealidade. Isso já estava
presente nos filmes de Linklater. Ambientes, corpos, rostos, objetos, tudo
parece se comportar como na “vida real”, mas tudo é recoberto por uma ficção
visual permanente, uma textura escandalosamente não-real que em momento algum
nos permite entrar numa zona-de-conforto perceptiva.
Vendo um filme assim, o “distanciamento brechtiano” é
inevitável: sabemos, o tempo inteiro, que é um filme, uma coisa construída a
poder de borrões, manchas, pinceladas coloridas.
Isto entra em choque com o tom naturalista dos gestos, movimentos,
expressões faciais, porque afinal de contas houve em algum momento um ator ou
um atriz sendo filmada. Cada cena tem
como base da imagem uma infraestrutura realista de aparência e de movimentos, e
sobre esta foi aplicada uma camada permanente de cores irreais e texturas
impossíveis.
O resultado – em mim, pelo menos – é semelhante ao que
temos nos sonhos, em que a intensa e falsa sensação de realidade (tem sonhos
que parecem mais reais que o Real) é contaminada o tempo inteiro por uma certa
incompletude, uma incoerência, um esgarçamento.
No sonho, a emoção
parece 100% autêntica, mas isso é comprometido por um ruído constante de percepção, porque vemos as coisas com
distorções, lacunas, falta de substância.
No filme de Van Gogh, isso fica ainda mais evidente em
certas cenas de transição em que uma parede torna-se em alguns segundos o céu
noturno, e só então percebemos o quanto o recurso técnico de fusão/superposição
de imagens, geralmente para passar de uma cena a outra, já está tão assimilado
pelo nosso cérebro que não percebemos o seu poder de desmobilizar nosso código
de visão. E a vemos aqui como os espectadores de 100, 120 anos atrás viam as
primeiras fusões de imagens fílmicas.
Loving Vincent
é dessa maneira um alucinação sob controle que dura 95 minutos. É curioso e
adequado que os filmes de Richard Linklater, que adotam esse processo técnico,
tenham tido como inspirador Philip K. Dick. Tanto Dick quanto Van Gogh tiveram
vidas alucinatórias. Drogas, loucura, imersão suicida na maginação criativa,
dificuldade de sobrevivência... tudo isto os dois tinham em comum. E um
descolamento contínuo do real, do banal, do feijão-com-arroz, para mergulhar
num universo perceptivo só seu.
Adequado também que tanto Scanner quanto Vincent
sejam histórias de investigações policiais, porque isto traz à tona o substrato
existencialista de todo whodunit: O
que é o real? O que foi que de fato aconteceu? O que existe de concreto por
trás das versões conflitantes, da alucinação privada de cada um, o idiokosmos, como Dick gostava de chamar?
Aldous Huxley foi um dos primeiros a traçar o paralelo
(em As Portas da Percepção, 1954)
entre drogas, loucura e a experiência visual de certos artistas.
A exuberância lisérgica de Vincent nos dá uma idéia do mundo tão deslumbrante quanto exaustivo
em que vivem os indivíduos mergulhados em estados alterados de consciência. As
portas da percepção, talvez, devam ficar apenas entreabertas, somente uma
rachadura deixando a luz entrar (como dizia Leonard Cohen), pois ninguém
suporta uma vida inteira experimentada assim.
A percepção fraturada da realidade dá-se de maneira
distinta no sonho, no uso de diferentes drogas, nas várias formas de loucura.
(Tem gente que prefere dizer “transtorno mental” ou equivalente, mas eu não
acho que loucura seja um termo
pejorativo ou uma ofensa. É uma experiência humana como tantas outras.)
Talvez nenhum outro meio possa, como o cinema, produzir
em nós essa impressão de estar vivendo algo que é real, palpável, indiscutível,
e ao mesmo tempo incompleto, descontínuo, cheio de solavancos mentais.
Loving Vincent
mostra essa contradição entre beleza e sofrimento. Agonia e Êxtase, título de um cinebiografia de Michelangelo,
serviria também a este filme, que nos induz a ver a vida de Van Gogh como uma
espécie de viagem-de-LSD permanente em seu misto de intensidade sensorial e
desorientação cognitiva.
Um mundo de beleza insuportável, onde os objetos e os
seres parecem perder sua historicidade e função para virar apenas uma série de
manchas coloridas, de camadas pastosas que se superpõem emitindo luz e cor. E
cabe a quem vive aquilo criar um sentido para tudo aquilo. Quem pode?
Lembrei de "Sonhos" de Akira Kurosawa. Tem uma cena com um rapaz numa galeria de arte olhando um quadro de Van Gogh. De repente ele aparece percorrendo as paisagens dos quadros do jeito como foram pintadas. Até que finalmente ele é mostrado nas paisagens originais, que serviram de modelo para as pinturas. A cena é uma bela representação do apreciador em sua imersão na obra.
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