quarta-feira, 30 de setembro de 2015

3932) Cinco perdidos (30.9.2015)





(ilustração: Rodney Allan Greenblat)


Elisha Nelbroy III, de Cincinatti (Ohio), 36 anos, perdeu a aliança numa briga de bar e acabou separando da esposa que nunca acreditou que foi mesmo uma briga. Ele era arriado dos quatro pneus por ela. Vivia suplicando uma chance. Dois anos depois a garçonete do bar, que o conhecia, achou a aliança numa fenda da madeira sob o balcão, e a devolveu a Elisha. Ele botou a aliança no bolso, a moça no carro, foi até o trabalho da esposa (era na redação do jornal da cidade) e exibiu a prova diante de todo mundo. Hoje vive a esposa pedindo perdão e ele nem aí, anda saindo adivinha com quem.

A família Dambroa, do Cariri paraibano, perdeu um tesouro enterrado por um antepassado seu, em coordenadas que foram decoradas por seus três filhos, só que depois da morte do pai cada um deles as transmitiu para os seus descendentes com erros de interpretação, de sorte que até hoje ninguém chegou a um acordo sobre os dizeres da fórmula e todos brigam sem parar atribuindo-se culpas, enquanto o tesouro continua esperando que brilhe no clã alguma fagulha de inteligência, porque esperar por sensatez é tempo perdido.

Amalic Tangrau, de Istambul (Turquia), 45 anos, perdeu um gato ao se mudar de sua antiga casa em Cihangir, para um novo condomínio do outro lado da cidade. No segundo dia após a mudança o gato sumiu. Os amigos e vizinhos o aconselharam a procurar o gato no antigo endereço, mas ele recusa-se, dizendo que é impossível o gato ter voltado, uma vez que durante a mudança foi transportado numa caixa, sem ver por onde estava passando.

Jean-Claude Soubiroux, de Paris, 33 anos, perdeu uma frase lida na adolescência num livro aberto ao acaso, de cujo título não se recorda, e cujo autor não conhecia; gravou na memória essa frase de cerca de vinte palavras, e dedicou toda sua vida adulta a tentar recuperá-la, na escola, na Sorbonne, nas rodas literárias, nas bibliotecas, sempre em vão, até mesmo depois do advento do Google, onde ele já a digitou com todas as variantes imagináveis em todas as línguas que pôde, mas continua sem saber de quem é e onde a encontrou.

Joaquim Lúcio Quintães, do Crato (CE), 41 anos, fazendeiro e dono de frigorífico, foi jogar uma pelada na fazenda de um vizinho e perdeu no gramado uma volta de ouro que trazia ao pescoço, e que tinha sido o último presente de sua mãe, “in extremis”. Dois dias depois, sem ninguém achar a coisa apesar da polpuda recompensa, Joaquim comprou o campo ao vizinho, bem como uma faixa de dez metros em torno do perímetro, passou o pente fino ali durante dois meses e quando um morador achou a correntinha ele a tomou de volta e mandou dar uma surra no rapaz quando ele falou em dinheiro.



terça-feira, 29 de setembro de 2015

3931) O enigma nas letras (29.9.2015)




Em Arsène Lupin, Ladrão de Casaca, a primeira coletânea de contos do gentleman-assaltante-detetive criado por Maurice Leblanc, grande sucesso do romance policial entre 1905-1935, há um conto em que o mistério repousa numa fórmula antiga, preservada através das gerações.

Convidados importantes estão no castelo de Georges Devanne, admirando “as incomparáveis riquezas acumuladas através dos séculos pelos senhores de Thibermesnil.” Numa das torres, Devanne mostra a todos o frontão da estante, onde o nome do castelo está soletrado com sólidas letras de ouro.

Vou omitir a aventura, subsequente, porque me interessa a frase da fórmula antiga. Ela diz, no original francês: “La hache tournoie dans l’air qui frémit, mais l’aile s’ouvre, et l’on va jusqu’à Dieu.”  Mais ou menos: “O machado gira no ar que treme, mas a asa se abre e vai-se até Deus.”  Durante séculos essa indicação do tesouro da família passou de geração em geração, transmitida com fervor por pessoas que já as receberam de quem não as compreendia. Eram as coordenadas do tesouro. Esperava-se que um dia algum descendente da família descobrisse o seu sentido.

Arsène Lupin percebe que os objetos citados na frase estão ali mascarando três letras, porque em francês é muito parecida a pronúncia de “hache” e H, “air” e R, “aile” e L.  Ele descobre que entre as sólidas letras de ouro por cima do frontão da estante monumental, dizendo THIBERMESNIL, existem três que são móveis: o H gira e o R treme e o L se abre. “E vai-se até Deus.”  Executando esses movimentos nas respectivas letras, abre-se a porta ancestral da passagem secreta, e vai-se até a capela do castelo por um subterrâneo. (Que Lupin utiliza para saquear as riquezas do castelo, no primeiro movimento dessa trama.)

O mistério vinha pelo menos desde o reinado de Henri IV (morto em 1610). A pessoa que cifrou a senha de abertura do mecanismo usou premeditadamente letras cujos nomes, ditos em voz alta, evocavam substantivos variados: machado, ar, asa. Era fácil construir uma estrutura memorizável em torno desses três substantivos, sem dar a entender que eles estavam ali apenas para representar três letras.

É um enigma engenhoso, porque se vale da superposição entre linguagem oral e linguagem escrita, usando uma para preservar pistas em outra. Neste conto, Lupin mede forças com Sherlock Holmes (no livro chamado Herlock Sholmes, por querelas autorais). O conto de Leblanc (1906) lembra “O Ritual Musgrave” (1893) de Conan Doyle, também sobre uma fórmula preservada mas não compreendida. Mas Leblanc vai um passo além de Doyle, como bom discípulo, e introduz uma criptografia de natureza mais original.



domingo, 27 de setembro de 2015

3930) Ser fã (27.9.2015)




Era um coquetel de lançamento. A certa altura fui à longa mesa coberta de toalhas brancas para devolver ao garçom um morto e receber um vivo. 

Um cara que eu conhecia de vista aproximou-se. Brindamos, lustramos algumas frases polidas encontradas nos bolsos, e daí a pouco ele me veio com essa: “Estou até lhe devendo um pedido de desculpas. Uma vez fiz um mau juízo do seu caráter.”  

Era um cara corajoso, porque na minha terra dizer isso é motivo para execução sem reza. Ainda bem que a barbárie da metrópole me civilizou.

“Mas, por que?!”, exclamei, misturando surpresa e bom humor. Ele disse: “Um amigo nosso me mostrou uma crônica sua em que você escarnece de Borges. Ora, escarnecer do maior escritor do século XX é uma coisa inadmissível, não acha?”  

“Eu, escarneci de Borges?”. Meu espanto não tinha limites. Eu faço piadas até com a minha falecida mãe, quanto mais com Jorge Luís Borges.

“Devo ter dito alguma ironia,” falei, “mas não houve intenção de ofender, eu sou um grande fã de Borges.”  Pensei que isso era o bastante, mas ele voltou à carga: “Não, você não é fã de Borges. Você é um leitor casual. Se fosse fã estava vestido como eu.”  

Só então reparei que, sob o casaco de couro, ele estava usando uma camiseta com a imagem do autor do “Aleph”, uma daquelas fotos dele sentado, com as mãos pousadas sobre o castão da bengala.

Alguém já disse que um fanático é um sujeito que não muda de opinião nem de assunto. O impulso de ser fã – de ter uma admiração incondicional e permanente por algo ou alguém – não está somente em quem gosta de “Star Trek” ou do “Senhor dos Anéis”. Existe também entre os admiradores da arte erudita. 

Basta ver as cerimônias que os fãs de James Joyce realizam todo ano no “Bloomsday”, 16 de junho, o famoso dia em que transcorrem os acontecimentos do livro “Ulisses”. No mundo inteiro o pessoal se fantasia, se reúne em pubs, toma cerveja Guiness, recita e canta coisas relativas a Joyce e à Irlanda. Muitos são eruditos, PhDs, críticos vetustos, autores premiados; mas nesse dia adolescem todos, todos se tornam tão fãs quanto um guri fantasiado com os óculos e a vassoura de Harry Potter.

Já escrevi aqui sobre um depoimento de Antonio Cândido confessando as brincadeiras de fãs que eles e seus colegas, jovens, faziam tendo por tema os romances de Eça de Queiroz. Temos uma tendência a achar que a instituição do “fandom” foi criada por Hollywood, a qual apenas a industrializou e reexportou. 

Fãs, nesse sentido, já eram os estudantes paulistanos que em 1886 foram aplaudir Sarah Bernhardt no Teatro São José, e desatrelaram os cavalos de sua charrete, puxando-a eles mesmos até o Grande Hotel, com a diva dentro.



sexta-feira, 25 de setembro de 2015

3929) Otacílio Batista Patriota (26.9.2015)




Acontece hoje em João Pessoa o “XIII Tributo a Otacílio Batista – a Poesia Vive.” Será no Sindicato dos Bancários, às 20 horas, com a presença de poetas e artistas e admiradores da poesia e da grande figura que foi o mestre Otacílio. Será lançado o CD Nas Asas do Uirapuru – Sílvia Patriota canta Otacílio Batista. Eu tentarei me fazer presente com o que vem a seguir.

Um poeta não tem obrigação de ter um nome metrificado. O registro civil vem muito antes de ele se definir como poeta. Acontece às vezes, porém, que os pais são amantes da poesia, e sabem o valor de um verso bom. O nome do poeta já nasce cantando, ele vê a si mesmo entoando uma melopéia, cadenciando as sílabas: “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”. É um verso alexandrino de doze sílabas, a fórmula mágica do Parnasianismo, do Simbolismo. O verso que um dia faria Bilac famoso.

Do mesmo modo, há poetas na cantoria de viola que têm seu nome na cadência inconfundível no martelo – como é o caso de Otacílio Batista Patriota. Seu nome é um verso de martelo, o decassílabo com acento forte na terceira, sexta e décima. Lembro de ler pela primeira vez esse nome justamente como um verso de martelo, fechando com chave de ouro a estrofe famosa de José Nunes Filho, que encontrei nas páginas de F. Coutinho Filho:

“Eu conheço José Alves Sobrinho / Pedra Azul, João Severo e Maranhão; / escrevendo poesia tem Cancão, / um nativo da terra de Marinho. /  Zé Soares, Catota, Canhotinho / Louro e Pinto, que nesses ninguém bota; / tem José Bernardino em minha nota / tem Amaro, Dalvino e outros seres, / Generino Francisco dos Prazeres, / Otacílio Batista Patriota.”

Desses, fui amigo de José Alves, de Louro e de Otacílio. Viajamos juntos, fui a muitas cantorias dele, de pé de parede, na Paraíba e em Pernambuco. Acompanhei-o em festivais e congressos. Ria com seus versos irreverentes. Admirava sua voz clara, precisa, de sílabas bem marcadas, dicção impecável. Uma vez, numa praça numa capital brasileira, após a noitada de repentes, vi Otacílio atrás do palco, cercado por uma multidão de fãs querendo comprar os folhetos e os livros. Entre tantos abraços e fotografias, ele parecia um Carlos Gardel, elegante, sorridente, atarefado, atendendo a todos.

Sempre fui perguntador, e Otacílio era mais receptivo do que outros. Louro, por exemplo, muitas vezes levava tudo na piada, mas Otacílio, ao ser indagado, fazia uma longa e articulada explanação, dizendo exatamente a informação que a gente precisava, fosse de métrica, rima ou oração. Sempre bem vestido, distinto, com uma piada maliciosa na ponta da língua, e um improviso veloz mudando a direção de um verso.



quinta-feira, 24 de setembro de 2015

3928) Treze doenças novas (25.9.2015)




Optite: inflamação dos olhos que distorce sutilmente as palavras lidas pelo paciente. Nos casos mais brandos, faz confundir “alegria” com “alegoria”, ou “marítimo” com “maremoto”. Nos casos mais graves, faz o paciente abrir um livro de Pablo Neruda e ler um soneto de J. G. de Araújo Jorge. 

Lissoidismo: a produção, por excesso de cálcio, de minúsculas pedrinhas (excretadas pelo organismo) com grande variedade de formas e cores, e muito disputadas por artesãos para a confecção de brincos e de anéis.

Beiromania: compulsão irresistível da pessoa para manter-se sob espaços cobertos, na crença irracional de que no momento em que sair ao ar livre se precipitará verticalmente rumo ao céu, como se caísse de grande altura.

Calpsúria: excesso de sensibilidade localizada, em trechos isolados da pele exposta, o que obriga o doente a cobri-los com pequenos retalhos de tecido, embebidos regularmente em soro fisiológico para hidratação.

Ambilismo: tendência do indivíduo a, quando está em público, assumir sempre as mesmas posições ou produzir os mesmos gestos maquinais quando pensa em determinados assuntos.

Óstium: ciclos irregulares de pessimismo infundado e de otimismo imprudente, que, se bem compreendidos e administrados pela família, não causam tragédias irreparáveis para a vida de ninguém.

Carmesão: violenta urticária que certos indivíduos desenvolvem em questão de minutos, sempre que passam por um momento de constrangimento ou de angústia, o que torna muito fácil perceber quando estão mentindo.

Bisnítrio: compulsão psicológica, em adultos, de atirar objetos frágeis no chão, na crença injustificada de que são inquebráveis, e desesperar-se depois.

Carmantite: hábito de contar mentalmente tudo em volta, os móveis de uma sala, os objetos de uma estante, as pessoas num recinto, os carros na rua, as letras de um cartaz, os minutos que restam.

Arcarílis: fome inexplicável que acomete algumas pessoas durante a madrugada, e que geralmente é saciada misturando alimentos incompatíveis, como carne moída e doce de leite.

Manustele: hábito compulsivo de respirar aceleradamente para oxigenar o cérebro, provocando uma falsa euforia que leva o indivíduo a dizer coisas impensadas.

Homungos: distorção da percepção em que um indivíduo se acha de estatura menor que a verdadeira, o que o leva a bater frequentemente com a cabeça em portais, etc., esbarrar em móveis, machucar sem querer crianças e animais.

Dipsite: acesso de bocejos e de soluços simultâneos, como resultado de estresse, que costuma depauperar bastante o doente, pela dificuldade que acarreta à respiração e à ingestão de alimentos.





3927) O olhar que lê (24.9.2015)




Toda linguagem é metalinguagem, porque qualquer frase, inclusive esta, ou o “bom dia” que damos ao porteiro do prédio, traz embutida uma reflexão prévia ou simultânea sobre significantes e significados. Não existe enunciação da linguagem que não contenha uma crítica ou uma estética da linguagem. Dependendo de quem estiver na portaria eu posso dizer “Bom dia” ou “Fala, Rodrigo, tudo bom?”. A crítica da linguagem e a escolha da linguagem vêm embutidas em cada opção. Toda linguagem impõe hierarquias, prioridades e critérios de escolha. Magritte compreendeu que a melhor maneira de indicar o que é um cachimbo é desenhar um cachimbo e dizer: “Isto não é um cachimbo”.  Vale para praticamente tudo.

O século 20 foi o apogeu dessa vertigem, e tudo adquiriu foros de linguagem própria: a propaganda, a moda, a culinária, a produção industrial, o trânsito, as posições sexuais, a espessura da espuma do chope. Uma doença é uma linguagem com que nosso corpo, esse ser alienígena, tenta nos comunicar algo. Há uma linguagem inconsciente no modo como na praia entramos no mar: tibungando, andando, aos pulinhos... O planejamento urbano é um texto cifrado, e também o jeito de aparar a barba, o modo de forrar a cama, a postura corporal. Tudo é leitura, como nos advertem os comentaristas de futebol: “Neymar leu a jogada corretamente e se posicionou no lugar certo na hora certa”.

A mídia ambiente é toda ela de linguagem, mas não é uma linguagem única nem concebida por uma mente única. É tão diversificada quanto uma floresta tropical, e as linguagens lutam por espaço, lutam por sol, lutam por água – em termos práticos, lutam por um olhar que as leia e as recolha na memória a ponto de deixar seu comportamento ser moldado por elas. Uma empresa espalha dez mil cartazes “Beba Punk-Cola!” pela cidade e começa a medir o consumo nas semanas seguintes. Se aquela enunciação não está produzindo resultado, ela definha como um arbusto sem água. É a única maneira de saber se uma mensagem assim está sendo lida. Lemos sem perceber. Um cardápio, um jardim, um ritual, tudo é uma frase de uma espécie de língua.

Tudo é linguagem. Um detetive chega ao local do crime e lê os objetos, os sinais de presença humana, as coisas que estão fora do lugar. Médico lê sinais nos olhos, na pele e na respiração de um cliente. O mecânico de oficina lê os ruídos e a fluidez de movimentos de um carro que acabou de chegar. Não são linguagens produzidas por uma inteligência humana, são mil linguagens secundárias criadas inadvertidamente por mil ações humanas. Talvez não tenham sido propriamente “escritas”, mas podem ser propriamente lidas.



terça-feira, 22 de setembro de 2015

3926) Machado e a ciência (23.9.2015)





(Selton Mello, no filme A Erva do Rato, baseado em "A Causa Secreta")) 


O Alienista (1882) é uma sátira de Machado de Assis à ciência. O dr. Simão Bacamarte decide trancafiar no seu manicômio, a Casa Verde, qualquer indivíduo que exiba comportamento insano de qualquer natureza. Ele constata então que ninguém é normal, e que pelo andar da carruagem a população inteira de Itaguaí terá que ser internada, e poucos são os verdadeiramente sãos encarregados de cuidar do mundo exterior.

De certa forma é uma sátira patafísica avant la lettre, porque naquele momento o futuro inventor da Ciência das Exceções tinha apenas nove anos. Alfred Jarry é o famoso criador do vilão da vanguarda O Rei Ubu, de peças memoráveis. O Colégio de Patafísica, a que ele deu origem, é um divertido grupo de franceses que tem pontos em comum com a OuLiPo, a oficina de literatura potencial, e com o teatro do absurdo, um movimento cosmopolita com peso em Paris. A Patafísica é a ciência que, em vez das regras, cuida das exceções.

Com a amargura compassiva e o veneno bem-humorado do autor, a loucura de Simão Bacamarte é até lírica, comparada a cientistas machadianos como Stroibus e Pítias, os dois filósofos-picarescos do seu “Conto Alexandrino” (1884). Stroibus disseca animais vivos para provar que seu sangue transmite essências: “Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia”. Passam a frio, na lâmina, centenas de ratos, e estabelecem por acúmulo de evidências a cor exata que tinham os olhos dos animais ao morrer.

Bebem o sangue do rato, os dois, num experimento pouco controlado, o que revela seu lado de trapaceiros trapalhões meio marktwainianos. O sangue do rato faz efeito, e danam-se os dois a furtar a torto e a direito, para no fim acabarem eles próprios na mesa de vivissecção. É a mesma impiedade do Fortunato de “A causa secreta” (1885), o homem que pendurava ratos em cima de uma chama e usava uma tesoura neles. Os cientistas alexandrinos são um meio termo entre o cientista maluco dr. Bacamarte, que é até meio julioverniano, e o cruel Fortunato. A ciência acolhe o tresvario conceitual e acolhe também o sadismo. O alienista é o menos ameaçador dos seus filósofos.

O cientista, temia Machado, era o indivíduo que tinha “a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo.” Na verdade nem é bem do cientista em si que Machado fala: esta é a descrição que faz de Fortunato, o cara que queimava o rato vivo. Fiquemos com o doutor Bacamarte, melhor ser palhaço pra rir do que herói pra sofrer.



segunda-feira, 21 de setembro de 2015

3925) Seis acidentes (22.9.2015)




(Ilustração: Maira Kalman)


Mauro Paranhos, 53 anos, radialista, de Viçosa (MG), deu descarga após usar a privada, e ao puxar as calças para cima o celular caiu do bolso dentro da água da privada; ele mergulhou a mão para pegá-lo de volta mas nesse instante o celular tocou, transmitindo-lhe um choque elétrico, ou pelo menos a ilusão vibratória de um choque, e provocando em Mauro o primeiro dos seus enfartes.

Walkyria Weiss, 33 anos, psicóloga, de Dusseldorf (Alemanha), estava conversando num bar com amigos quando bateu com o cotovelo derrubando uma garrafa, e ao pular para segurá-la esbarrou num garçom que passava com a bandeja cheia, fazendo-o cair sobre a mesa vizinha e emporcalhar alguns senhores já impacientes com a demora e que agrediram o rapaz, imediatamente defendido com ardor pelos colegas na verdadeira-batalha-campal a que a imprensa se referiu.

Antonio Calcedo de Souza, 24 anos, estudante, de Bananeiras (PB), parou o carro às pressas diante da casa dos pais para ir pegar um trabalho que tinha esquecido, não puxou direito o freio de mão, e o carro desceu aos trambolhões a ladeira onde eles moravam, indo emborcar um caminhão de frutas que espalhou três mil laranjas na pracinha lá embaixo.

Antero José Cargoletto, 61 anos, contabilista, de Punta del Este (Uruguai), saiu de casa e deixou aberta a janela do escritório, por onde entrou com-tudo o rápido temporal que se abateu sobre a cidade nessa tarde, alagando o aposento até entrar em contato com o no-break ligado, o que causou circuito, incêndio, e pulverização total da casa de Antero, que até hoje não contabilizou os prejuízos.

Núbia Botelho dos Santos, 32 anos, empresária, de Feira de Santana (BA), pôs em cima do teto do carro o bebê-conforto com seu primogênito Lucas, de 1 ano, enquanto empilhava no banco da frente as numerosas sacolas de produtos que ia levar para uma exposição, tão atrasada que bateu a porta, rodeou o carro, ligou a ignição e disparou de rua afora, episódio que o próprio Lucas conta até hoje, às gargalhadas.

Dionísio Leitão, 40 anos, pecuarista, de Austin, Texas (EUA), estava passando o trator num roçado quando a roda enganchou num fio que a ventania tinha derrubado e terminou de desequilibrar uma torre, que caiu sobre um transformador, dando um pipoco que espalhou uma estrela de listras de fogo fio afora por toda aquela comarca, detonando um gaseoduto próximo e desintegrando instalações elétricas num cataclismo energético que apagou quase uma banda do país, mas uma hora depois, quando ele guardou o trator, estava faltando luz em casa, e ele só ficou sabendo do que tinha acontecido na manhã seguinte, quando a TV chegou antes de todo mundo.



sábado, 19 de setembro de 2015

3924) Traduzir em verso (20.9.2015)



Traduzir um romance é pesado, mas às vezes é mais fácil do que traduzir um poema de duas páginas. O que mais influi na tradução não é a mera quantidade de palavras, é a quantidade de regras ou de convenções que o original explora e que a tradução precisa seguir também. Suponhamos uma forma poética bem simples e conhecida: o soneto. Número fixo de linhas, número tradicional de sílabas por linha (dez, doze), questões de prosódia, de acentuação, de ritmo, de desenho melódico da frase. Tudo isso sem falar no lado significante do verso: aquilo que ele diz, seu chamado conteúdo manifesto.

Não é conteúdo, é forma também. O fato de ser um soneto sobre um vagalume ou um haicai sobre uma rã estão embutidos na forma, fazem parte imagística daquilo, tanto quanto os sons de que o poema é feito. É interessante que a maioria dos leitores percebe em primeiríssimo lugar o chamado “conteúdo” e só em alguns casos atenta para os efeitos sonoros, que o tradutor tanto se esforçou para emular.

Rima, métrica, cadência, variação sonora, conteúdo, algo vai ter que escapar por entre os dedos do tradutor na hora de compor um equivalente. Eu acho quixotescas, por exemplo, as tentativas de traduzir um poema em inglês usando em português a mesma contagem de sílabas do original. Algumas línguas são de tendência monossilábica, outras não. Inglês e português são línguas de cadência e percussão opostas. O inglês é stacatto, cada nota é uma palavra, o português é distributivo. Uma palavra inglesa é um anel, uma portuguesa é um colar de sílabas. 

Veja-se essa beleza de verso de Shakespeare (King John): “So foul a sky clears not without a storm”. “Um céu tão carregado não fica limpo sem uma tempestade”. A imagem é bonita sem ser original. O que lhe dá força é a cadência em inglês, implacável, dez sílabas, nove palavras, apenas uma palavra de duas sílabas (“without”). Como reproduzir essa cadência em português? Não há monossílabos adequados para dizer essa idéia e manter essa percussão rítmica. Como dizem certos jogadores de futebol: “Fica complicado”.

Um verso de 8 ou 6 sílabas (tão comuns no inglês quanto o setissílabo entre nós) pode ser traduzido em português com 10 ou 12 sílabas. Ficar preso à dimensão do original é heróico, é admirável, mas muitas vezes (depende: cada poeta, cada poema impõe regras próprias) é desnecessário. Pode-se também produzir uma sensação de staccato ou de reiteração verbal numa linha mais longa. Seria melhor aceitar esse verso mais amplo, e tentar criar um equilíbrio entre o “conteúdo” manifesto do verso e outros efeitos sonoros que ele certamente envolve, além da mera contagem silábica.



sexta-feira, 18 de setembro de 2015

3923) Clodomiro Ferreira (19.9.2015)



"Clodomiro Ferreira era não apenas meu melhor amigo, mas uma espécie de segundo pai depois que meu pai morreu. Passou meses folheando meus cadernos, me ajudando nas tarefas de casa, até que uma noite ergueu o rosto e disse pra minha mãe: “Ele é bom em matemática. Vamos fazer dele o melhor contabilista do mundo.”  Eu não sabia então o que era contabilista, mas a possibilidade de ser o melhor alguma-coisa do mundo já era bem clara para mim aos dez anos. Se me tornei o melhor contabilista do mundo? Não sei, perguntem a Clodomiro, porque virei contabilista dele.

“Quando se mudou pra casa da gente Clodomiro me protegeu, e me exigiu muito. Tem que agradecer muito a um homem como aquele. Ele não era bruto como os professores da escola, ensinava até melhor, eu aprendia. Cresci, me formei, em poucos anos pulei de divisão em divisão até estar comandando as finanças. Era tanto jeton e tanto pro-labore que me casei com uma ex-namorada que reencontrei na fila do Banco.  Entramos para o Clube da Naja Ninja. Épocas de muitos estudos; fazíamos sessões de transcendência ultrabiótica, peregrinação-mental, tele-espeleologia, reconstituição de vidas futuras. Mesmerizações, e instalação de psico-aplicativos.

“Rosinha só não era mais feliz porque todo dia tinha que sair para comprar alguma coisa. Eu pensava em viagens e na minha secretária, Katiushka. Sabe quando um trabalho anda sozinho?  Clodomiro me chamou na sala dele, e parecia que tinha recebido notícia de morte na estrada. Desabou na cadeira e me perguntou por que eu tinha feito uma loucura daquela. Perguntei qual, evidentemente. Ele fechou as cortinas e passou no telão umas imagens de câmara de vigilância. Era eu, chegando ao prédio de madrugada, esvaziando o cofre, saindo à sorrelfa.

“Naquele instante eu soube que quando alguém se apossa da mente da gente a gente apaga e não vê o que está fazendo e também não lembra depois o que fez. Eu não podia negar aquela imagem, era eu, sim, eu mesmo, naquela noite em que (fui consultar meu celular depois) eu saí para caminhar no parque e só dei por mim horas depois, em casa, exausto e suado. Com a mesma camisa xadrez das imagens.

“Um castelo de cartas caiu todinho nesse dia, mas isso para mim são águas passadas. Clodomiro foi companheiro. Me ofereceu a chance: assumir a culpa e sumir de vez. Escolhi fugir sozinho, e acertei: depois soube de Rosinha com o Mesmerizador. Peguei um saco de dinheiro, papelada falsa, e fui me instalar numa confortável pousada, cuja remota localização não posso sequer sugerir. Clodomiro, que homem inteligente, que homem do coração bom, tem que se agradecer muito a um homem como aquele.”

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

3922) "O Dragão" (18.9.2015)




José Alcides Pinto (1923-2008) é chamado por alguns de “escritor maldito cearense”. Esse termo maldito às vezes tem a conotação de “autor blasfemo, sacrílego, violento” e às vezes apenas de “escritor que não faz muita questão de ser estar sob os holofotes”.  Seus títulos indicam temas recorrentes: Entre o sexo, a loucura e a morte, Cantos de Lúcifer, O Criador de Demônios etc.  Loucura, satanismo, fatalidade e violência.

O Dragão é o primeiro romance da chamada Trilogia da Maldição (Topbooks, 1999), que ainda inclui Os Verdes Abutres da Colina e João Pinto de Maria: Biografia de um Louco.  Esta primeira história não é um romance fantástico, embora esteja cheia do “visionarismo alucinatório” que Ivan Junqueira comenta no prefácio.

Alto dos Angicos é um povoado perdido no sertão cearense, na ribeira do Acaraú, castigado por desgraças de todo tipo: seca, enchente, tempestade de areia, epidemias. A história é conduzida pelas andanças do Padre Tibúrcio, um personagem vigoroso, reclamão, sem papas na língua, que passa o tempo todo arregaçando as mangas para resolver problemas alheios e condenando os matutos embrutecidos por sua ignorância, sua passividade, seu desânimo.

É uma literatura regional diferente da de Rachel de Queiroz ou Graciliano. A observação social está presente, mas contaminada por um senso do absurdo e da fatalidade, algo que aqueles autores usam de passagem, sem forçar a mão. Alcides força a mão, e O Dragão é menos um romance naturalista sobre o sertão do que um delírio expressionista ambientado entre açudes, currais, casas de taipa, ruínas, lagartixas.

José Alcides foi também um poeta notável (ver aqui sua página no Jornal de Poesia, de Soares Feitosa: http://tinyurl.com/pmcd4pc).  Isso tem peso nas suas qualidades como romancista: a prosa é vigorosa, densa, sonora. Em O Dragão, o elemento fantástico paira junto com a sensação permanente de fim-do-mundo, e com episódios isolados como este:

“Na festa do ano passado, o surpreendi na bodega do Maroca fazendo uma demonstração do Capeta. Atirou o baralho na parede e as cartas aderiram a ela como a um ímã. E o Demônio começou a chamá-las por uns nomezinhos esquisitos: e os reis, os valetes, as damas voavam para ele e entravam-lhe pelos bolsos do paletó, como um bando de diabinhos amestrados.”

A história contada está dentro dos limites do real, embora um real delirante e energizado por visões expressionistas. O fantástico não é central à narrativa, brota em pequenos episódios que assustam e não se explicam, todos bem encaixados nessa descrição de um lugar onde Judas perdeu as meias e onde qualquer desgraça pode acontecer.


quarta-feira, 16 de setembro de 2015

3921) Contação de histórias (17.9.2015)




Algumas histórias orais talvez sejam bobas como histórias, mas serviram para ancorar algumas das melodias mais nostálgicas da nossa tradição popular. O fato de termos hoje informantes e contadores de histórias gravados em áudio e vídeo torna possível preservar não apenas os versos, mas as melodias que surgem em muitos contos populares.

Penso por exemplo na famosa história do estudante que matou sem querer o pavão do professor e foi por este condenado à morte. Uma melodia penosa e carregada de uma tragédia grega ancestral: “Papai de minh’alma, mamãe do meu coração... O mestre faz comigo o que eu fiz com o pavão! O mestre faz comigo o que eu fiz com o pavão.” As modulações de tom, a toada plangente, as repetições tristonhas, tudo carrega a tristeza de quem já se sabe condenado sem remissão.

“Capineiros de meu pai / não me cortem os cabelos...” É a história das meninas mortas (e enterradas pela madrasta), cujos cabelos crescem com o mato e as fazem cantar assim. De quem será essa melodia? De quem será a melodia de outra história de que guardo fragmentos, onde uma criatura ameaçadora diz cantando: “Amarra teu cachorrim, que Bobôca lá vai”.  Bobôca era uma espécie de A Cuca. E a heroína da história era uma menina chamada Bebé, que cantarolava: “Bebé já comeu, Bebé já bebeu, Bebé já deitou, Bebé tá dormindo...”  Parece que o cachorrinho era a proteção mágica dela contra a chegada de Bobôca, que devia ser uma espécie de urso ou de Incrível Hulk. 

Lá pelos trinta anos descobri que algumas músicas, que eu considerava pura tradição oral, eram composições de Braguinha, para os discos coloridos infantis tipo Chapeuzinho Vermelho. “Pela estrada afora eu vou tão sozinha...” Parece folclore. Não por querer parecer, mas porque é feito num espírito semelhante, de criar uma beleza rápida sem muita complicação. A simplicidade longamente polida das soluções musicais e letristas de Braguinha se assemelha à de Capiba em Pernambuco e Caymmi na Bahia.

Os modernos contadores de histórias estão preocupados em produzir leituras novas, mas eu tento olhar no sentido oposto e pergunto: onde e quando surgiu aquela melodia daquele trecho da história? Quem cantarolou pela primeira vez aquelas frases? Uma melodia sem dono, nunca capturada em partitura, pena e tinta. Ninguém a registrou. Talvez exista há mais de cem anos. Às vezes é a música de um personagem, e sobrevive por ele.  Às vezes é um dilema de enredo, em mil variantes. Jack Zipes assinala não somente a “erudição notável” dos irmãos Grimm como também a sua “grande integridade moral”, mas seria interessante checar se além das histórias eles preservaram melodias também.



terça-feira, 15 de setembro de 2015

3920) O mundo é real? (16.9.2015)




(o "girador" de Penny Lane, em Liverpool)


O mundo existe ou é uma ilusão dos nossos olhos? Para mim isso era tema dos romances de FC de Richard-Bessière ou de Philip K. Dick, não era assunto para letra de música. O mundo da música era tão concreto quanto um elétron; e tão consensual quanto o Meridiano de Greenwich. As canções orientais dos Beatles foram as primeiras que tocaram no assunto: “Venha cá, velho, você acha que esse mundo que nós estamos existe mesmo, ou tudo é somente uma ilusão?” 

Pergunta mais profícua não foi feita desde que Arquimedes ou Bertrand Russell questionou o teorema tal ou qual. A vanguarda européia do começo do século 20 já tinha amassado o biscoito da metalinguagem. O questionamento do Real, que por um lado vinha do misticismo do Oriente, e por outro vinha de viagens alucinógenas dos músicos, se misturava a hipóteses de físicos sobre universos múltiplos ou à teoria também chamada de “somos o video-game de Alguém”.

Ian MacDonald, cuja bola vivo a encher merecidamente nesta coluna, tem uma observação interessante sobre “Penny Lane” dos Beatles. (De passagem: ele observa que o piano em staccato dessa faixa agradou tanto nessa gravação, feita entre dezembro de 1966 e janeiro de 67, que os Beatles voltaram a usá-lo com variantes nas gravações subsequentes de “Fixing a Hole”, “Getting Better”, “With a Little Help from my Friends” e “You Mother Should Know”.) Ele cita Lennon garantindo que tudo ali é tirado de memórias visuais dele, tudo é factual. Toda memória é a foto de um reflexo numa nuvem, mas a intenção do poeta foi mesmo a de falar do que havia. O bombeiro, o barbeiro, o cara do banco, as crianças... 

E MacDonald diz, sobre o teor psicodélico da música: “Essa canção é tão subversivamente alucinatória quanto ‘Strawberry Fields’. Apesar da aparente inocência, há em toda a produção dos Beatles poucas frases tão impregnadas de LSD do que o verso (numa rajada fremente de vozes ornamentais) em que a Enfermeira ‘feels as if she’s in a play’... and ‘is, anyway’”. 

A Enfermeira tem aquele insaite instantâneo de que tudo que vê em torno (e que a música descreve) não é “real”: ela está mesmo é numa peça, numa encenação, numa montagem. “E afinal é mesmo”, diz o narrador onisciente da canção.  Ela está numa canção dos Beatles... e de repente percebe que não existe. Como aquele personagem eletrônico em Simulacron-3 de Galouye, que vem a saber que é apenas um carinha-de-game, mas para ser nosso interlocutor naquele mundo ele precisa saber que em certa medida ele não é real. Tremenda crise existencial pro personagem a quem isso acontece. Mais tranquilo ficar com Mario Quintana: “Pra que pensar? Também sou da paisagem”.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

3919) Os irmãos Grimm (15.9.2015)




(Jacob e Wilhelm Grimm, por seu irmão Ludwig)


Até que ponto pode um pesquisador – um tradutor, um antologista, um editor acadêmico – até que ponto qualquer desses servidores do texto pode mexer nos textos de autoria alheia que passam por suas mãos? Uma pessoa conta uma lenda normanda ou bretã que ouviu décadas atrás; dois homens atentos escutam e rabiscam, alternadamente. Depois irão comparar notas e decidirão em comum sobre o uso de regionalismos, de arcaísmos ou formas deterioradas. Assim eram os irmãos Grimm. Um pouco como Leonardo Mota, Sílvio Romero, Mário de Andrade, Câmara Cascudo e qualquer outro que anotou coisas pela vida afora.

Jack Zipes (“Once There Were Two Brothers Named Grimm”) diz que, ao contrário da crença popular, os Grimms não recolheram aquelas histórias visitando camponeses em lugares remotos e escrevendo as histórias que ouviam. Seu método predominante era convidar contadores de histórias à casa onde moravam, e pedir-lhes para contar sua história de viva voz. “Os irmãos já faziam notas durante a primeira audição, ou depois de um par delas.”  Talvez anotassem o mais banal, o que lhes fosse mais familiar, mais previsível, e não percebessem alguma raridade filológica. Talvez percebessem alguns desses efeitos sutis de estilo e de enredo, e caprichassem neles ao fazer o registro com pena e tinta.

Câmara Cascudo, em seu prefácio aos Cantos Populares do Brasil de Sílvio Romero (edição de 1954), diz: “O exemplo de Almeida Garrett e de José de Alencar, que fundira cinco variantes legítimas do ‘Rabicho da Geralda’ agenciando uma versão artificial, não o tentou. Quando só lhe era possível conseguir um trecho apenas, limitava-se a publicá-lo como o recebera. Nos Contos manteve a cor local, os modismos ficaram, a construção sintática curiosa, as modificações mínimas que denunciam o espírito popular, são elementos probantes da honestidade do antologista. Ainda hoje essa renúncia à sugestiva colaboração, ao arranjo irresistível, é ato difícil.”

Calvino mexia nas fábulas que recolhia. Borges fazia traduções pouco ortodoxas. A gente às vezes recolhe alguma coisa de outra cultura, alguma coisa que aos olhos da gente é preciosa, e que a gente admira mesmo sendo da cultura deles, e quando depois de passado o tornado a gente vai e entrega para eles o que salvou, eles dizem: “Não, isso aqui é cinza-de-cigarro-da-semana-passada, o que era realmente importante para nós era aquele outro negócio” – e aí fala alguma coisa a que você nunca deu a menor atenção. Preservar tesouros alheios é como traduzir, sem conhecer, um tipo de ginga corporal, uma cor, um tom de voz, um espetáculo de linguagens que são invisíveis para quem não as sabe ler.

3918) Kafka hoje (13.9.2015)




(foto: Anna Anjos. Estátua de Kafka em Praga.)


Usa-se muito o termo “kafkeano” (em inglês se diz “kafkaesque”) para qualificar certos elementos literários. Matt Staggs, num artigo recente (aqui: http://tinyurl.com/natdnql) vê influência do autor tcheco em autores como Jeff VanderMeer e Haruki Murakami, e até em cineastas como Terry Gilliam e os irmãos Coen. Kafka deixou sua marca através de um qualificativo, se bem que nem todo mundo o leia da mesma forma.

O que seriam esses elementos kafkeanos? Borges assinalou o mais visível deles no seu ensaio célebre “Kafka e seus precursores”: a descrição de tarefas infinitas, que quanto mais alguém tenta executá-las mais vê multiplicarem-se os empecilhos e os desvios. Essa característica governa os romances “O Processo”, onde Joseph K. é preso e vai de instância em instância descobrindo que nem mesmo seus prendedores sabem o por quê daquilo tudo; e “O Castelo” onde o agrimensor K. procura por todos os meios encontrar-se com as autoridades do castelo e descobre que quanto mais se debate mais afunda.

Os críticos falam muito no caráter “ilógico” das histórias dele, mas igualmente importante é o fato de que essa falta de lógica é racionalizada o tempo inteiro. Seja um narrador onisciente, seja um protagonista na 3ª. pessoa, há sempre alguém tecendo um bordado interminável de indagações e de razões para que tudo seja do jeito que é. As novelas de Kafka descrevem e explicam, descrevem e  explicam o tempo inteiro; e quanto mais o fazem menos sentido faz o que vemos e entendemos. Seus personagens se envolvem em longas discussões que não movem uma palha. É um mundo ilógico cujas superfícies visíveis são revestidas de retórica.

Há outro aspecto que depende muito da tradução, mas acho que mesmo assim dá para avaliar. O vocabulário de Kafka é um vocabulário plano, sem palavras raras, sem imagens extraordinárias. Uma prosa quase burocrática, onde o único rasgo “literários” parece ser uma tendência ao aforismo, ao provérbio. Num sismógrafo verbal, sua prosa fluiria horizontalmente com mínimas oscilações para cima e para baixo. Um autor onde reencontrei isso foi Paul Auster, na Trilogia de Nova York. É uma prosa onde a imaginação conta menos do que a capacidade de verbalizar as camadas periféricas de um assunto sem jamais chegar perto do centro.

Ainda assim, Kafka tem uma imaginação que às vezes nos puxa o tapete sob os pés. Na Colônia Penal, com sua máquina de tatuagem punitiva, é uma das grandes alegorias do nosso tempo, mais ainda do que a Metamorfose de Gregor Samsa. Num certo sentido, é sua melhor história, aquela em que a prosa monocórdia é equilibrada por imagens vívidas como a marca de um ferro em brasa.




domingo, 13 de setembro de 2015

3917) Um nome na música (12.9.2015)




Zuza Homem de Melo e Jairo Severiano comentam (A Canção no Tempo, Ed. 34, 1998) que certa vez o compositor Pedro Caetano foi abordado numa festa por uma moça que pediu: “Faça uma música pra mim!”. Ele descobriu que ela se chamava Maria Madalena de Assunção Pereira, e achou que o nome tinha uma cadência favorável. O resultado foi uma canção que dizia: “Maria Madalena de Assunção Pereira / teu beijo tem aroma de botões de laranjeira...”

Tudo muito bom, tudo muito bem, mas estava-se nos anos 1940, em pleno Estado Novo. O mundo estava em guerra, a ditadura de Vargas começava a balançar, mas quando Ciro Monteiro começou a cantar a música nos programas de rádio surgiu o problema: “A censura proibia nomes próprios por extenso em letras de música, alegando que isso afetava a privacidade das pessoas”. E olha que o pedido da música partiu da própria moça! A solução, antes que a canção fosse gravada, foi trocar o nome da moça pelo que foi gravado e ficou famoso: “Maria Madalena dos Anzóis Pereira”.

Políticos são muito citados na MPB, e o recorde deve pertencer a Getúlio e JK. Nomes de gente de verdade aparecem aqui e acolá, mas sempre na forma incompleta: “Domingo lá na casa do Vavá / teve um tremendo pagode que você não pode imaginar... / Provei do famoso feijão da Vicentina...” (Paulinho da Viola); “Ô Antonico, vim lhe pedir um favor que só depende da sua boa vontade / é necessário uma viração pro Nestor...” (Ismael Silva); “Marcolino dava tudo por um cheiro de Xandu” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira).

Uma exceção é a “Festa da Arromba” gravada por Erasmo Carlos, onde se nomeia praticamente toda a Jovem Guarda da época. (Acho que o problema de privacidade a essa altura já tinha ido pro espaço.) E o exemplo mais notório da MPB é o da “Língua”, de Caetano Veloso, onde ele homenageia pessoas com nomes fora do comum: “Scarlet Moon de Chevalier / Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé!”. Dos três, apenas o de Glauco é pseudônimo, mas como se trata do nome público usado pelo poeta maldito do Jornal Dobrabil, vale a mesma questão: isso interfere na privacidade da pessoa?

Governos controladores querem legislar sobre os mínimos detalhes da vida pessoal de quem quer que seja, e se pudessem promulgariam um Código Penal personalizado para cada cidadão. Dizem que o maior perigo numa ditadura não é o ditador, é o guarda da esquina, ou o legislador de aluguel. São todos os funcionariozinhos intermediários que, representando o ditador, acham-se meio ditadores também, e a verdade é que é muito difícil desfazer os malfeitos dessa turma. Só o ditador teria autoridade, e o homem é muito ocupado. O problema nunca chega nele.



quinta-feira, 10 de setembro de 2015

3916) Trilogia "Comando Sul" (11.9.2015)




A trilogia Southern Reach (“Comando Sul”) de Jeff VanderMeer, série de FC que já ganhou alguns prêmios nos EUA, é formada pelos romances Aniquilação, Autoridade e AceitaçãoDo autor eu já tinha lido vários contos de suas coletâneas Secret Lives (2006) e City of Angels and Madmen (2001).  Gosto de sua prosa exuberante, às vezes difícil de traduzir porque ele se projeta na descrição de cenas fantásticas para as quais não temos referenciais. O leitor precisa ler como se tivesse duzentos olhos (alguns dos seus personagens têm).

A visão futurista de VanderMeer é radicalmente biológica, zoológica, botânica, ecossistêmica. Na trilogia não passa nem sombra de espaçonaves, astronautas, robôs; e mesmo quando nos vemos diante de transições bruscas para pontos remotos do universo, isso se dá mediante uma tecnologia alienígena que (para lembrar a frase de Arthur C. Clarke) é tão avançada que não se pode distinguir da mágica.

Num ponto da Costa Leste dos EUA uma região costeira, a “Área X”, vê-se isolada do resto do mundo por uma barreira invisível. O Comando Sul é a agência encarregada de preparar expedições para penetrar nessa área, onde há dois pontos de referência principais: um farol e uma torre simétrica a ele, que penetra de chão adentro. Nas paredes dessa torre, uma criatura, o Rastejador, está escrevendo versículos em tom bíblico, usando uma substância orgânica como um lodo.

VanderMeer faz vagas menções ao país e ao mundo em volta, tudo acontece entre as cidadezinhas em torno, o prédio do Comando Sul e a Área X. Sabemos apenas que aquela investigação se arrasta há trinta anos, e que o mundo lá fora está convulsionado por uma crise ambiental e pelo terrorismo. Há raríssimas e vagas menções a jornais, TV, comunicações com o resto do país. É como se só existisse aquele trecho da Costa Leste, protegido por uma redoma.

Isso contribui para o aspecto kafkeano da trilogia, ou tarkovskyano, porque alguns traços essenciais da narrativa evocam os filmes de FC do diretor russo (Solaris, Stalker). É uma história de invasão biológica em que o invasor é uma força desconhecida formatando o mundo à sua maneira, uma maneira que preserva a natureza mas só permite a presença humana de modo muito limitado. É uma obra que preserva grande parte do seu mistério ao fim da leitura; VanderMeer não é do tipo que sai amarrando cada detalhezinho, cada ponta solta. Mas ele consegue projetar aquela sensação de “alienness”, da estrangeiridade de tudo que vem de outro ponto do universo. Como em certas criações memoráveis de Arthur C. Clarke ou Stanislaw Lem, nunca entenderemos quem vem Lá De Fora.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

3915) Na descida do morro (10.9.2015)




(foto: Robson Fernandjes)


“Eu estava numa favela do Rio, era como se fosse o Morro do Alemão. Tinham me levado para lá por algum motivo e o carro tinha ido embora. Era um terreno baldio cheio de mato e havia um cadáver ali pertinho. Havia um grupo de bandidos, mas o clima não era hostil, eles sabiam quem eu era e que tinha ido lá fazer algo com autorização; na verdade nem estavam me dando muita atenção. Eu dizia que queria voltar para a cidade. Eles me levavam para uma casa onde havia um casal idoso e outras pessoas, e me diziam para esperar ali. O tempo passava. Mesmo sem me sentir diretamente ameaçado eu queria cair fora dali o quanto antes. Pedia que fossem comigo até a entrada da favela, mas eles diziam não ter tempo: “Não tem problema. Vai lá, aqui é tranquilo”, mas eu dizia: “Eu preferiria caminhar aqui dentro com algum de vocês, e não sozinho”. Havia uma tensão permanente. Eu temia um tiroteio, porque as paredes de tijolo eram muito finas.

“Depois eu vinha andando noutro ponto da favela, uma espécie de feira nordestina cheia de barracas. Eu vinha por entre as barracas, que vendiam pratos-feitos, tapioca feita na hora, etc. A certa altura eu avistava uma saída para fora da favela, mas as barracas eram tão juntas que eu não conseguia passar entre elas. As barracas eram mantidas por pessoas aleijadas, cada uma com um defeito físico diferente. Por fim eu conseguia me esgueirar entre duas barracas, quase derrubando as panelas e utensílios das pessoas, e me aproximava de uma grande porta; só então eu percebia que aquilo, a tal da feira, não era ao ar livre, era uma espécie de grande salão dentro de um prédio, com centenas de metros quadrados, e as barracas estavam todas dentro dele.

“A porta da rua estava fechada, era uma porta imensa de madeira escura tipo mogno, cheia de entalhes, porta de casa antiga. Eu ficava aliviado em ver que depois de muitas horas eu ia conseguir sair dali. Eu via que ela estava destrancada, e me bastava girar a maçaneta e sair. Eu o fazia, cruzava a porta e a fechava atrás de mim, mas percebia então que aquela porta dava para uma rua enladeirada que ia subindo à minha frente. A rua era uma ladeira estreita que desembocava exatamente naquela porta, e nela havia uma fila enorme de carros, camburões e caminhões da polícia e do exército, estacionados, cheios de soldados armados, à espera. Em alguns carros os soldados dormiam de boca aberta, roncando, como quem está ali há um tempão, somente aguardando um sinal; e no rádio de todos os carros tocava bem alto a mesma música, uma música instrumental meio metaleira, pesada, ameaçadora. Eu começava a subir a ladeira, passando ao longo dos carros.”



3914) Roland Barthes (9.9.2015)




Talvez os centenários de Lourival Batista e de Rosil Cavalcanti tenham me distraído, porque só agora fiquei sabendo que estamos comemorando também os cem anos de nascimento de Roland Barthes (1915-1980), um dos nomes mais importantes nos estudos da teoria literária e da linguagem. Barthes foi aquele típico intelectual parisiense no que essa estirpe tem de melhor, exibindo erudição, refinamento, cosmopolitismo, atenção à vida prática, elegância na exposição das idéias e uma capacidade assustadora de ver as coisas pelo lado de fora. Ler os textos dele era como estar num desenho animado de Escher ou de Steinberg, onde pensamos: “Ah, sim isto é o mundo, e aquilo lá adiante é um quadro” e de repente percebemos que em volta do “mundo” existe uma moldura mostrando que ele é um quadro também. E de recuo em recuo vamos nos afastando dos “quadros”, à procura de um ponto de vista inacessivelmente externo e objetivo, sem conseguir. O mundo é uma sucessão de quadros em-abismo, diminuindo diante dos nossos olhos e ao mesmo tempo alargando-se às nossas costas. Não é que o mundo não exista; ele existe, mas é feito dessas caixas de linguagem infinitamente guardadas umas dentro das outras.

Leitores de Barthes hão de me crucificar por simplorizações deste tipo, mas paciência. Sempre que tentei penetrar no labirinto da semiótica dei com a cara em portas para as quais nunca tive a senha. As únicas portas estilisticamente abertas e convidativas eram as do italiano Umberto Eco e do francês Barthes, que viraram minhas referências de leigo sempre que procuro refletir a respeito dos reflexos das reflexões alheias sobre os espelhos da literatura e da linguagem. Barthes deve ter sido um professor fascinante para seus alunos do Collège de France e outras instituições. Sempre o imaginei tendo algo de meu mestre Jomard Muniz de Britto e de explicadores mesmerizantes como Paulo Emílio Salles Gomes ou José Miguel Wisnik.

A Bibliothèque Nationale de France abriu uma grande exposição em sua homenagem (ver aqui: http://tinyurl.com/nm2msgx). Um lembrete para que a gente retorne a sua obra, sempre inventiva. Dele, li apenas três livros: Mitologias (1957), sua primeira coletânea de artigos sobre literatura, moda, arte, educação e outros temas, sempre numa linguagem acessível, e de grande impacto na época; A Câmara Clara (1981), reflexões sobre a fotografia analisada por um sistema de signos muito pessoal, e sempre com alguma coisa nova para dizer; e Fragmentos do Discurso Amoroso (1977), anotações sobre o que acontece na mente de uma pessoa apaixonada, e talvez o único livro inteligente já escrito sobre este tema.



segunda-feira, 7 de setembro de 2015

3913) Bola de gude (8.9.2015)




Na época em que joguei bola de gude (mais ou menos entre 1958 e 1965) a variante que se usava em nossa rua era assim: primeiro criavam-se os buracos na terra, rodando com força o calcanhar até produzir buracos hemisféricos com alguns centímetros de fundura, e depois espalhando a terra em volta, para aplainar. Eram três buracos formando um triângulo equilátero calculado no olhômetro, a cerca de um metro e meio de distância. O jogador tinha como objetivo colocar sua bola nos três buracos, sucessivamente, e ao mesmo tempo afastar as bolas dos outros jogadores. Para determinar a ordem de jogada, cada um atirava, da mesma distância, sua bola na direção de um dos buracos; quem colocasse a bola mais perto jogava primeiro.

Nas jogadas propriamente ditas a bola ficava apoiada no indicador curvado, e era atirada pra frente com a unha do polegar, pressionado contra o outro dedo até escapar de repente, arremessando longe a bolinha. (Também chamada “bila” por nossos vizinhos cearenses.) Quando se acertava dentro do primeiro buraco passava-se aos demais, sempre numa mesma ordem, até errar, cedendo então a vez ao próximo. Depois que a gente acertava o primeiro buraco, tinha o direito de alvejar as bolas dos adversários, atirando-as para longe. Quando a gente completava os 3 buracos tornava-se “mata” (=matador): ao acertar a bola de um adversário ela era retirada do jogo. (Nos jogos “na vera”, de-verdade, o cara ganhava a bola para si; nas partidas “na brinca”, a bola e o adversário apenas saíam do jogo.)

Quando nossa bola parava muito próxima de outra era possível dar a famosa “estica”, uma colisão violenta que jogava a outra bem longe. Havia também a “tranfa” (=transferência): se um acidente do terreno atrapalhava o “tiro” do jogador, ele media com o palmo um arco de círculo na areia (tendo a bola-alvo como centro) e movia sua bola para outro ponto desse arco, mantendo a mesma distância em relação à bola-alvo, enquanto dizia: “Peço tranfa!”  Quando havia algum pedregulho ou folha seca no meio, dizia-se: “Peço limpo!”  A palavra “tranfa” também sofria outra corruptela, sendo substituída por “Peço trança!”.

Enquanto o jogador não se tornava “mata”, era chamado “feda” (=fedorento); podia ser morto mas não podia matar as bolas dos demais. Isso deu origem à expressão “combinação contra o feda”: qualquer complô entre pessoas experientes para enganar ou explorar um sujeito ingênuo, novato, despreparado.  “Meu primo tentou conseguir um emprego lá, mas houve uma combinação contra o feda, e deram a vaga a um amigo do gerente.” Ganhava o jogo quem conseguia “matar” as bolas de todos os concorrentes.

sábado, 5 de setembro de 2015

3912) 7 Ovnis (6.9.2015)




Heng Sin-Yu, 33 anos, Macau, estava trabalhando à noite no seu apartamento e foi à janela fumar um cigarro quando viu cruzando o céu um ponto de luz vermelha que deixava atrás de si um rastro de fagulhas amareladas, e a única coisa que lhe veio à mente foi que alguém no firmamento estava fumando também.

Terzio Pastore, 61 anos, Ravena, passou mais de dez anos frequentando uma colina próxima à fazenda onde vivia, colina esta que se dizia ser frequentada por extraterrestres, e a única coisa estranha que viu em todo esse tempo foi uma gigantesca forma metálica quadrada, maior que a colina, elevando-se ao céu por trás dela, mas como não correspondia à forma de um disco ele decidiu não levar em consideração, e nada publicou.

Camille Nguyen, 62 anos, Pnom Penh, descreveu à imprensa local o artefato que pousou no arrozal perto de sua casa como “uma fila de contêiners de navio enganchados como uma correntinha de clipes e girando em volta de um globo-da-morte com mais de mil motocicletas dentro e uma abertura por onde saíam nuvens com asas e patas”, e a imprensa agradeceu e foi embora.

Paulo César Tostes, 41 anos, Natal, vinha dirigindo à noite pela estrada que leva a Mossoró quando viu uma banda inteira do céu se esverdear, e erguer-se ali uma semi-esfera verde-limão que ficou suspensa no ar e depois voltou a descer, escondendo-se atrás do horizonte. Nessa mesma noite ele deixou de beber.

Laura Rimanelli, 38 anos, Firenze, viu de madrugada uma estrela muito branca no céu, imóvel, tão imóvel que horas depois o céu inteiro tinha girado e ela continuava ali, como se estivesse vigiando, fotografando algo, e como Laura vestia apenas uma camisolinha bem fininha e transparente achou melhor recolher-se para longe da curiosidade erótica dos marcianos, portanto voltou ao quarto e acordou o marido para os folguedos noturnos.

Baldomiro de Sousa Dias, 55 anos, Campina Grande, estava certa noite olhando as águas do Açude Velho da janela do seu 15O andar quando viu uma formação em forma de V com mais de vinte naves passando silenciosamente, piscando em cores variadas, mas quando ergueu os olhos para o céu não viu nada, o que o fez pensar no conceito de “objetos submarinos não identificados”.

Sarah Rosten, 22 anos, Roterdam, estava comprando um sorvete no parque quando avistou um brilho avermelhado no céu azul, de onde desceu um facho de luz que a abduziu, levou-a para o planeta Zadykstra, onde ela se tornou embaixatriz da Terra, casou com o príncipe herdeiro, governou num palácio de cristal e ônix, morreu aos 97 anos aclamada pelos descamisados locais, recebeu o troco e o sorvete e voltou para casa pensativa.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

3911) Mark Twain e a monarquia (5.9.2015)




Em seu romance Huckleberry Finn, Mark Twain conta a fuga de Huck Finn e do negro escravo Jim numa jangada à solta rio afora, e a certa altura aparecem dois dos seus personagens mais divertidos. 

São uma dupla de trambiqueiros que Huck salva e traz a bordo da jangada. Os resgatados contam o que fazem e por que razão vinham sendo perseguidos pela população da vila, e, num episódio hilário, revelam ao menino e ao negro suas verdadeiras identidades: um diz ser um duque inglês, e o outro se confessa o delfim-herdeiro do trono da França. São dois heróis picarescos; cruzam-se nesse momento pela primeira vez, e daí em diante vão se envolver em mil pequenos golpes, encenações. E Huck comenta:

“Não levei muito tempo para compreender que aqueles mentirosos não eram reis nem duques, coisa alguma, e sim simples vagabundos e aventureiros. Mas nada disse, nem deixei transparecer; guardei-o para mim mesmo; é o melhor; assim se evitam brigas e aborrecimentos. Se eles preferiam intitular-se duques e reis, eu não tinha objeções a fazer, contanto que se mantivesse a paz na jangada. E também não adiantava dizer a Jim, de modo que não lhe disse. Se eu nunca aprendi nada que valesse a pena com papai, aprendi pelo menos que a melhor maneira de lidar com essa espécie de gente é deixá-los agir a seu modo.” (Cap. XIX, tradução de Alfredo Ferreira)

O duque e o rei, como passam a ser chamados, são uma dupla cômica picaresca tradicional. Não são propriamente o Palhaço e o Besta, que Ariano Suassuna identificava em muitas narrativas populares, e usava nas suas. São dois espertalhões de personalidades e recursos diversos, em permanente luta um contra o outro, o que não exclui alianças eventuais em função de um golpe mais polpudo, ao fim do qual cada um procura trair o outro. 

Lembram os personagens de Michael Caine e Steve Martin em Os Safados, só que numa ambientação paupérrima de beira de rio, entre populações puritanas e crédulas.

Huck os aceita porque sabe que são dois intrujões inofensivos, capazes na pior das hipóteses de dar um prejuízo passageiro em alguém. Trapaceiros de beira de estrada, como certos tipos de Edgar Allan Poe, que mais sofrem do que gozam a vida que levam. 

Huck lê os dois corretamente, consegue vê-los com ironia, estar em guarda. O modo como explica ao escravo Jim como funciona a monarquia, e como Henrique VIII casava com uma nova esposa a cada noite, e pela manhã mandava decapitá-la, o deixa bem próximo das ironias de Dom Pedro Dinis Quaderna sobre o modo sanguinolento e saqueador como foram construídas as grandes monarquias européias a quem prestamos tantos salamaleques e rapapés.