terça-feira, 31 de julho de 2012

2937) "O Bandido da Luz Vermelha" (31.7.2012)






Para mim é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, impressão que se manteve quando o revi agora, depois de mais de 20 anos.  Os puristas ficarão zangados, mas os puristas são como os turistas, não gostam de ver o lado sujo das coisas. Mario Quintana disse que um crítico é um sujeito que ao ver uma bela tapeçaria dá a volta para ver como ela é pelo avesso; alguns artistas são assim também. 

Rogério Sganzerla tinha 22 anos quando fez este filme em 1968, com uma equipe minúscula e pouco dinheiro, filmando em preto-e-branco no meio da Boca do Lixo de São Paulo. Era um contestador do Cinema Novo que, segundo ele, tinha se “aburguesado”, deixara de ser um cinema de esquerda, revolucionário, e estava seduzido pelos elogios da crítica européia e pelos prêmios nos Festivais. Sganzerla seguiu a receita criada (ou aperfeiçoada) por Glauber Rocha, “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”, e nota-se em seu filme muitas pequenas influências (inevitáveis, aliás) dos dois grandes filmes de Glauber até então, Deus e o Diabo... e Terra em Transe.  Alguns detalhes, no entanto, são essenciais.  Sganzerla não toma uma atitude de esquerda; sua crítica à sociedade é o que hoje chamaríamos de “atitude punk”, o chute-no-pau-da-barraca, o niilismo.  A frase-lema do filme é: “Quando a gente não pode fazer nada a gente avacalha; avacalha e se esculhamba”.  Tanto o governo militar quanto o Partido Comunista discordavam, com veemência.

Cheio de escracho e de improvisações, O Bandido... tem cenas que, se descritas ao pé da letra em twitters, poderiam compor um poema meio surrealista.  Seu ponto forte é a semi-incoerência narrativa (cada cena, no estilo Godard, tem pouco a ver com a anterior), espertamente costurada por um casal de locutores tipo “A Polícia nas Ruas”. É o modelo Cidadão Kane: a reportagem jornalística “fake” fornece um fio de continuidade para cenas que se unem por justaposição, são por consequência.

Num manifesto que lançou na época, o autor disse: “Fiz um filme voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, malcomportado, cinematográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário. Os personagens desse filme mágico e cafajeste são sublimes e boçais. Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são dados políticos, revelando as leis secretas da alma e do corpo explorado, desesperado, servil, colonial e subdesenvolvido”.  É um filme anarco-punk, que ridiculariza tudo mas não celebra seus heróis, antes os encaminha para o matadouro com uma mistura de diversão sádica, irresponsabilidade adolescente, e aquele deboche de quem sobe ao cadafalso esculhambando o carrasco.

domingo, 29 de julho de 2012

2936) As histórias da Pixar (29.7.2012)






Contar histórias no cinema é diferente de contá-las no papel, até porque no papel o texto precisa dizer (ou deixar subentendido) tudo, e no cinema grande parte disso fica a cargo da expressão facial e da voz dos atores, dos movimentos de câmara, do visual, da direção de arte...  E o escritor do cinema pode se concentrar no que (para o cinema) é o essencial da arte de contação de histórias: quem são os personagens, e o que acontece com eles.

Emma Coats escreve para a Pixar, uma das produtoras mais eficientes na narrativa de cinema de animação (Toy Story, Monstros, Procurando Nemo, Wall-E, etc.). Ela compôs uma lista de dicas sobre narrativa que são muito úteis, talvez não para quem quer escrever um romance tipo Vidas Secas, mas para quem quer escrever um filme como os da Pixar (e algo me diz que no Brasil tem mais gente querendo esta segunda hipótese do que a primeira). Comentarei alguns.

Coats diz: “A gente admira mais o esforço de um personagem do que os seus sucessos”. Isto é a medula do espírito norte-americano na literatura, cinema, auto-ajuda, tudo: não desista, vá em frente, não se deixe abater, não desista nunca, no fim vai dar certo. Funciona bem para o público dos EUA, impressiona fora, mas não é uma verdade psicológica tão universal quanto parece.

Coats sugere um esqueleto narrativo universal: “Uma vez havia _____. Todos os dias, _____. Um dia, _____.Por causa disto, _____.  E por causa disso, _____, Até que finalmente _____”. Aí estão as formas básicas da narrativa simples: situação, interferência, enfrentamento das interferências, solução – de preferência, ao invés de um retorno ao ponto inicial, a chegada a um equilíbrio mais complexo, numa nova situação, melhorada por tudo que aconteceu.

Diz ela: “Defina o final da história antes de imaginar a parte do meio. É sério. Todo final é complicado, e você deve preparar o seu desde logo.”  Ao escrever um conto, sem compromisso, você pode correr o risco de improvisar tudo enquanto escreve (eu faço isto o tempo inteiro). Num filme de 100 milhões de dólares que vai ser visto por 100 milhões de pessoas, não se pode correr esse risco. Tudo tem que se encaixar.

“Desmonte as histórias de que você gostou (para ver como funcionam). O que você gostou nelas faz parte de você, e é preciso identificá-lo antes de pô-lo em uso”. O que você gostou numa história é, em geral, algo que você já entende, e que, com o treino correto, será capaz de reproduzir de uma maneira pessoal, sua. Também é importante desmontar as histórias ruins (ou as histórias quase-boas) para saber por que motivo chegaram tão perto de serem boas e desperdiçaram a chance.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

2935) Surrealismo católico (28.7.2012)





(Jorge de Lima e Murilo Mendes)



Em matéria de oxímoro, ou de paradoxo, o título deste artigo merece um prêmio.  Quem tiver alguma familiaridade com o movimento surrealista que surgiu em Paris nos anos 1920 deve lembrar o seu espírito violentamente anti-clerical.  Os Surrealistas, que planejavam dar poderes totais à mente humana, livre de todos os tipos de censura e de coerção, certamente combatiam a igreja da época, um mecanismo de lavagem cerebral só comparável ao dos partidos políticos.  O cinema de Luís Buñuel, com suas provocações permanentes à igreja (L’Âge d’Or, Viridiana, etc.) levou para as grandes platéias o que estava entranhado na poesia de André Breton ou de Benjamin Péret.  Creio que foi Péret quem escreveu certa vez: “Andando pela avenida tal, cruzamos com dois padres que vinham em sentido contrário ao nosso. Diante de tal provocação, não tivemos escolha senão agredi-los”.

É engraçado, porque os dois mais famosos e respeitados poetas surrealistas brasileiros são dois cristãos que soam bastante sinceros, até pelas crises e dúvidas que os acometem (cristão que nunca tem dúvidas terríveis é porque não entendeu o Cristianismo).  Jorge de Lima (1895-1953) e Murilo Mendes (1901-1975) jamais ousariam, como Péret, dar uns cascudos no vigário.  Os dois eram amigos, foram contemporâneos de geração dos surrealistas franceses, mas sua poesia foi (ou veio) em outra direção.  Jorge de Lima publicou em 1952 seu poema-livro Invenção de Orfeu, que na maior parte do tempo é de uma imagética surrealista como poucos brasileiros conseguiram, e numa estrutura épica que poucos surrealistas franceses tentaram, se é que algum tentou.  Murilo Mendes foi também picado por esses dois mosquitos concorrentes, a religião católica e a revolução surrealista.  São dois softwares que parecem se inviabilizar mutuamente, mas nestes dois poetas o surrealismo serviu menos como uma visão do mundo e mais como uma maneira de tratar a linguagem, de manipular a linguagem através de um certo desregramento imaginativo, alimentado pelo inconsciente e logo mantido sob controle. 

Nem sou grande conhecedor dos dois; só tenho de Jorge a Invenção de Orfeu, e de Murilo a antologia O Menino Experimental. Que coisa fantástica, pensa este leitor adolescente de Breton e Buñuel. Religião, política, sexo, violência, drogas, filosofia, rock-and-roll, nenhum desses poderes domina nossa mente se for contrabalançado por todos esses outros. Os católicos têm inconsciente, os católicos também se apaixonam e enlouquecem, os católicos dizem: “O menino experimental ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros”.

2934) "O Torreão" (27.7.2012)



Este romance de Jennifer Egan, lançado agora pela Ed. Intrínseca, tem uma estrutura narrativa inesperada que só vai se revelando aos poucos, misturando duas histórias que soam incrivelmente reais embora uma dela possa ser fictícia.  Em princípio, estamos acompanhando a viagem de Danny King, um “hipster” de Manhattan, a um país da Europa Central, para onde seu primo Howard o convidou com a proposta de trabalhar na restauração de um antigo castelo e transformá-lo num hotel de luxo. Danny e Howard são amigos de infância, mas na adolescência houve um episódio traumático entre os dois, que enche Danny de culpa e de incerteza, porque ele não sabe ao certo as intenções do primo (que agora é riquíssimo, e que ele não vê há muitos anos) ao chamá-lo para aquele lugar remoto.

Esta história vai se misturando aos poucos com a história de um presidiário nos EUA, Ray, que está fazendo uma oficina de escrita criativa na cadeia e começa a botar uns olhos compridos na direção da professora, Holly. Não vou esmiuçar aqui o modo como essas duas histórias se misturam, porque este é um dos truques principais do livro, que é escrito com um controle e uma alegria imaginativa raros hoje em dia.  A crítica o classificou como “romance gótico”, pela presença central do castelo e do seu Torreão cheio de mistérios.  A incursão de Danny King pelo castelo reproduz a incursão de Jennifer Egan pelo gênero gótico: uma pessoa moderna, conectada, penetrando num ambiente com séculos de existência e de história acumulada.  

Esse oposição entre o antigo e o modernoso é uma das polaridades deste livro que fascina e desconcerta, embora este último termo deva ser tomado no melhor dos sentidos.  Egan é uma narradora onisciente que nunca aparece, embora a vejamos manipular os personagens, como aquelas pessoas de preto que seguram os personagens em certos teatros de bonecos: visíveis o tempo todo, mas podemos abstrair sua presença no instante que quisermos.  Este romance concilia o melhor de certa literatura experimental (a busca de modos não convencionais de contar uma história) e da literatura clássica (personagens envolventes, peripécias cheias de suspense). Há um trecho, uma simples linha na página 207 do original inglês, em que o uso de um mero pronome muda o livro inteiro, faz um monte de peças se encaixarem e um monte de fichas caírem. Isto só ocorre em livros ousados, que se atrevem a executar um número de malabarismo na corda-bamba, com pleno domínio da técnica. Um bom livro é aquele que a gente lê a última página às 4 da manhã e volta atrás para reler, porque percebe que a segunda leitura vai ser mais recompensadora do que a primeira. 

quinta-feira, 26 de julho de 2012

2933) "Rage in Rio: The Game" (26.7.2012)



"Na década de 2030, empresas gigantes da Informação criaram o projeto Game Forever, um novo conceito de games de imersão ou de gerenciamento, mesclado ao de ação e aventura, e de informações em tempo real. 

"Sob a influência da franquia GTA (Grand Theft Auto), a SuperWorld Games cresceu teve uma ascensão meteórica na década de 2020, graças aos títulos que lançou naquele estilo. 

"Operando na China, com equipes de milhões de desenhistas adolescentes trabalhando fanaticamente numa atividade que eles consideravam divertida a ponto de ser viciante, a SuperWorld lançou numerosos jogos de hit-and-run ambientados em metrópoles do mundo inteiro: Mumbai, Durban, Istambul, Kingston, Moscou, Rio de Janeiro...

"Durante a produção deste último foi fechada a parceria com o Google Earth, passo natural para a atualização constante dos cenários dos jogos, primeiro em ritmo anual, depois mensal.  

"O governo brasileiro queria incentivar o turismo, e entrou na jogada. O Censo 2030 foi realizado, no Rio de Janeiro, com um esquema high-tech em que os recenseadores não apenas colhiam os dados dos habitantes de cada residência como também filmavam com microcâmaras 3D o interior da casa e seus moradores, para produzir avatares idênticos.  

"Os resultados foram remetidos para as oficinas da SuperWorld espalhadas pela China, e o resultado em 2033 foi a reprodução virtual, 3D, de todo o Rio, por dentro e por fora, no que se tornou o videogame mais vendido de todos os tempo (61 milhões de unidades na primeira semana): Rage in Rio.

"Depoimento de um dos diretores brasileiros do game: 

“Foi uma grande emoção quando, após instalar o jogo e configurar meu carinha com a aparência de um primo meu, saí caminhando pelo aterro do Flamengo, tomei sorvete, comentei o resultado do Fla-Flu (real) da véspera, e recebi respostas condizentes... 

Li as manchetes dos jornais: eram as do dia. Fui até meu prédio, onde pedi ao porteiro (era Severino!) que anunciasse minha visita.  Um dos meus filhos me recebeu à porta. Sentei no sofá. Minha esposa (mais jovem do que hoje) trouxe-me um suco de laranja.  Daí a pouco eu (nessa época tinha barba) vim até a sala receber o visitante. 

Respondi perguntas (corretas, atualizadas) sobre minha família no Nordeste. Folheei livros, e vi em todos o texto correspondente. Era eu, era minha própria família vivendo sua vida eletrônica...  Sujeita à invasão de um jogador mal intencionado, tal como na vida daqui de fora.   

A esperança do governo, anunciada em cadeia nacional, é que facilitar a violência virtual possa diminuir a violência de carne e osso. Esperemos que dê certo. Enquanto isto... burilo avatares”.









quarta-feira, 25 de julho de 2012

2932) Massacre no cinema (25.7.2012)








Muita gente não tem a menor idéia de como um filme de longa-metragem é feito.  Não sabe, e não se interessa em saber.  Deve achar que é como filme de aniversário de criança: organiza-se a festa, chama-se o rapaz com a câmara, e no outro dia o filme está pronto pra passar.  Não é assim.  É um trabalho insano e cansativo, que envolve às vezes anos de preparação, meses e meses de execução, e no final deixa centenas de pessoas esgotadas de tanto esforço.  E custa (geralmente) milhões de dólares – sempre com a expectativa de render bem mais.

Quando a gente se queixa da violência dos filmes, da TV, dos videogames, está de certa forma se queixando não apenas da possível má influência mental que eles possam vir a ter sobre as pessoas, principalmente os mais jovens, mas também do paradoxo de que tanto dinheiro e tanto esforço se concentrem em produzir coisas assim, quando seria possível, talvez, ganhar dinheiro com filmes diferentes – afinal, comédias, filmes românticos, filmes de simples aventuras, tudo isso também costuma dar bons lucros, quando acerta com o “paladar” da galera.

A matança que aconteceu nos EUA na pré-estréia do novo “Batman” de Christopher Nolan não é uma consequência do filme, nem desse tipo de filme.  Os dois são sintomas de nossa fascinação permanente pela violência e pela destruição. Somos seres biológicos, de carne e osso, vulneráveis à violência, condenados à morte, e por isso pensamos nisso o tempo todo.  Somos o único animal que sabe que vai morrer e o único que (como diz o ditado) morre mil vezes de mentira antes de morrer de verdade. Batman, o herói desarmado que evita matar, é o Ego tentando reprimir os Coringas incontroláveis da crueldade, e sentindo sempre o horror de se saber semelhante a eles.

Cresci numa época em que a censura etária era mais rigorosa nos cinemas, e não havia a TV a cabo, como hoje, passando sexo pornô e esquartejamentos explícitos ao alcance de qualquer guri de 10 anos.  A galera de hoje sofre um verdadeiro massacre de violência, e não o faz a contragosto, faz (se bem recordo minha infância) por fascinação própria. Quando eu tinha dez anos eu queria ver isso tudo.  Não queria que acontecesse a ninguém, mas se acontecesse eu queria ver como foi. Não é de admirar que ao lado de 999 caras que querem somente “ver como foi” apareça 1 querendo fazer.  Somos animais de carne e osso com uma trágica consciência da dor, da maldade, da morte.  Um dia nos transformaremos em avatares eletrônicos dotados de consciência, mas enquanto isto não ocorre iremos sentir o que Augusto dos Anjos descreveu como “essa necessidade do horroroso / que é talvez propriedade do carbono”.

terça-feira, 24 de julho de 2012

2931) A antologia Granta (24.7.2012)




Fazer uma antologia que traga no título a expressão “Os Melhores...” é (diria o dr. Machado Penumbra) mergulhar no paradoxo e se expor ao vitupério.  Tudo que não é quantificável, como é o caso da qualidade literária, fica sujeito ao que a linguagem popular denomina de “gosto”, um nó-górdio que não se deslinda e só se pode cortar com a frase (talvez inventada por Seu Lunga) “gosto não se discute”.

A função de um antologista ou de um crítico os obriga a equilibrar o seu gosto com um conjunto diferente de expectativas.  Sua leitura, sem deixar de ser uma leitura pessoal, tem também uma visão coletiva, porque sua função naquele momento tem algo de normativo, de definidor de parâmetros.  Uma antologia que usa a expressão “Os melhores...” tende a transformar seus contos em sinalizadores. Os escolhidos de hoje são os imitados de amanhã.  Em casos assim, a preferência pessoal dá um passo atrás e cede a vez a uma preocupação mais ampla.  O crítico não está premiando unicamente o que lhe agrada, mas o que lhe parece mais necessário e mais enriquecedor para o conjunto da literatura, naquele momento específico.

A antologia Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros, organizada pela Editora Alfaguara e revista Granta, definiu uma série de limites para participação (autores até 40 anos, com pelo menos um conto publicado, que enviassem um conto inédito).  Recebeu 247 originais, e os sete jurados (entre os quais há amigos meus) escolheram 20. Mesmo considerando que estes 20 fossem superiores aos 227 restantes, é perfeitamente justo imaginar que existem no Brasil outros 20 autores, ou outros 200, igualmente bons e que por alguma razão não se inscreveram.  (Não li a antologia, e não tenho motivos para supor que os contos não sejam bons.)

Quando organizei minha antologia Páginas de Sombra – Contos Fantásticos Brasileiros, um amigo me sugeriu que incluísse no título o termo “melhores”. Respondi que não podia considerar aqueles 16 contos os melhores de nossa literatura fantástica, até porque seria impossível ler e comparar os milhares de candidatos; e um leitor de bom senso iria considerar que ninguém incluiria numa antologia um conto que não merecesse ser lido. “Bobagem”, disse ele, “tanto faz. O público quer ter a ilusão de estar levando para casa o melhor produto, porque há cem anos as agências de publicidade lhe vendem a melhor cerveja, o melhor pneu, o melhor plano de saúde ou de telefonia. Ele precisa da ilusão de que está comprando ‘o melhor’, mesmo que isto lhe seja dito pelo próprio fabricante”.  Toda antologia que anuncia “Os Melhores” está com um pé na crítica literária e o outro na propaganda.

domingo, 22 de julho de 2012

2930) Obituário (22.7.2012)


Morrerá no ano que vem, num quarto-e-sala na rua Silveira Martins, esquecido, endividado, coberto pela poeira da indiferença, o ator carioca Mário de Sousa.  

Ninguém lembra o seu nome.  Mesmo no prediozinho de quatro andares, sem elevador, onde morou a vida inteira, nem todos os vizinhos sabiam da sua profissão.  Sabiam a da esposa, que aposentou-se como enfermeira e foi o fiel da balança, como se diz, nos momentos em que os cachês diminuíam ou rareavam.  

Mário Sousa não tinha talento; tinha um amor ao teatro capaz de superar qualquer limitação.  Seu currículo surpreendente a partir dos 20-e-poucos anos foi construído à base de amizade. Fez uns poucos papéis principais que não entusiasmaram ninguém, e depois deslizou para a trincheira, sempre repleta, dos coadjuvantes confiáveis.  Não percebeu que isso tinha acontecido; achou que tinha se imposto profissionalmente.

Aos 60 anos já tinha se despedido do teatro (numa remontagem de Testemunha de Acusação de Agatha Christie, no teatro da EMERJ) quando lhe chegou um convite. 

Cid Monteiro, autor e diretor que fora seu aluno, lhe oferecia uma pequena ponta num “vaudeville” inédito, Sarau no Castelo de Mondestan. Faria um velho mordomo, mas teria algumas falas.  Ele aceitou e agradeceu a delicadeza, depois de calcular quanto aquilo lhe renderia por semana e por mês.  

Seu papel consistia em ir ao palco no primeiro e no segundo atos, sempre ajudando alguém a se locomover, dizendo frases como “boa noite” e “com licença”. 

No terceiro ato, contudo, Cid colocara uma frase para ele.  O dono da mansão, o Marquês de Mondestan, lhe pergunta: “Victor, fez o que lhe mandei?”, e o mordomo responde: “Sim, senhor. Coloquei as gotas-para-dormir no cofre do seu escritório, e o envelope cor-de-rosa na mesa de cabeceira de madame”.

E o teatro vinha abaixo.  Todas as noites.  

Entrevistei mês passado Mário Sousa, que me mostrou cópias fotostáticas (ele as chamou assim!) do histórico de apresentações e turnês do grupo.  Durante quinze anos, o grupo Nós Cegos realizou 2.235 apresentações desse sucesso inaudito, e não houve (segundo Mário) nenhuma noite em que, naquela frase, o teatro não viesse abaixo, fosse pelo “timing”, fosse pelo “delay”, fosse pela expressão furiosa ou desconcertada do ator que fizesse o marquês...  

“Era meu  momento”, suspirou Mário, inalando no aparelho. “Escreva isso.  Todo mundo tem seu momento, não importa se são dez linhas ou cem páginas, é o seu momento. Ou acontece ou não acontece”.  

Mário de Sousa teve seu momento; morrerá no ano que vem, num quarto-e-sala na rua Silveira Martins, esquecido, endividado, coberto pela poeira da indiferença.






sexta-feira, 20 de julho de 2012

2929) Mostrar a morte (21.7.2012)



(Jean Simmons e Richard Burton, O Manto Sagrado)



Do ponto de vista da dramaturgia do cinema, não existe cena mais importante do que a morte do personagem principal, desde, é claro, que ela seja exigida pela história. Mostrar a morte de um personagem importante sempre foi um motivo para que o fragor da batalha amainassse e se transformasse num mero marulhar ao fundo, enquanto o moribundo tinha direito a um monólogo final, e a um comentário rude mas sincero dos companheiros, logo após a cabeça tombar-lhe para sempre.  A morte era o grande momento, não só do personagem como do ator/atriz.

Como mostrar de outra forma? Quando o casal de cristãos condenados por Calígula às feras se encaminha para os portais que os conduzirão à arena, aparecia na tela o "The End" que ninguém aceitou (eu, pelo menos, não). O filme era O Manto Sagrado de Henry Koster (1953), que vi quando teria menos de dez anos, e aquela foi uma maneira de interessante de mostrar a morte, porque não vendo meus heróis morrerem eu seria condenado de certa forma a ficar imaginando a morte deles pelo resto da vida.  E de certo modo o filme se interromper antes daquela cena nos lembrou que com a vida acontecerá o mesmo.  Vai se interromper simplesmente, sem se completar.

Não sei se é coincidência, mas o filme de Koster se intitula The Robe; em 1948 Hitchcock tinha feito Rope (“Festim Diabólico”), sobre um assassinato que era o contrário: acontecia na primeira cena do filme. O filme começa com dois rapazes enforcando um terceiro, escondendo-o num baú, e servindo em cima desse baú um jantar para um grupo de amigos: o filme tem a duração desse jantar.  Hitchcock aperfeiçoou esse recurso ao fazer em 1960 Psicose, que teve como uma das principais heresias (para a bolsa de valores estéticos da época) o fato de que a atriz principal, Janet Leigh, morria a cerca de um terço da duração total do filme. 

Outro filme que abre com uma morte é (pelo que me disseram) Irreversível, o filme francês sobre dois amigos que se vingam do estupro da namorada de um deles.  É sempre uma maneira forte de começar uma história.  Rachel de Queiroz tem um romance em cuja primeira frase uma peixeira é enterrada na barriga de um personagem.  Mas é um personagem secundário.  Sua morte não é tão tragicamente banalizada quanto a do protagonista de Onde os Fracos Não Têm Vez dos irmãos Coen, onde a câmara, depois de acompanhá-lo durante o filme inteiro, chega atrasada ao local do crime, ainda a tempo de ver a fuga dos assassinos; mas quando entra no quarto o herói do filme já está morto. Talvez seja mais cruel (para o personagem) do que a morte offstage dos cristãos no começo do Cinemascope.

2928) Política sertaneja (20.7.2012)




“É por isso que Cruz do Cavalcanti é um lugar que nunca irá pra frente.  Não tem como.  Não é porque seja um lugar ruim, ou um lugar de gente que não presta, ou então porque exista (como já foi sugerido em plena Câmara Municipal) que exista uma caveira de burro enterrada embaixo do piso de mármore do Salão Nobre da Prefeitura.  Nada disso.  

"O problema de Cruz (como chamamos nossa querida terrinha) é um problema de ordem matemática. Este artigo é o décimo-quinto que escrevo sobre este tema; como é o primeiro a ser publicado por outro órgão que não o meu blog “Cruz Credo”, tentarei ser o mais objetivo possível.

“Aqui em Cruz, as famílias se resumem a três principais, os Cantídios, os Magela e os Noratos. Há cento e cinquenta anos que no município ninguém solta uma bufa sem autorização de um dos três.  Na primeira vez que eu votei para prefeito, votei no candidato dos Magela, que tinha dado um emprego a meu primo.   Ele ganhou.  

"Quatro anos depois, candidatou-se de novo.  Mas aí os Cantídios e os Noratos apararam arestas entre si, e se mobilizaram por um candidato único, Jurandirzinho.  Ex-supervisor de minha irmã no Controle Ambiental.  Votei nele, e ele ganhou. 

“Vida que segue.  Mas Jurandirzinho (que na verdade era de fora, e entrara nos Noratos por vias conjugais) começou a incomodar muita gente.  Ficou muito espaçoso, muito minha-própria-turma.  Na eleição seguinte, os Cantídios e os Magela começaram a conversar, a conversar, acertaram os ponteiros, e lançaram um candidato, Professor Absalão.  

"Votei nele, claro, mesmo sendo ele um Cantídio de sangue e de tinta, por todos os laços imagináveis.  Tudo que eu sou devo a Professor Absalão.

“Inclusive o emprego que ele me conseguiu em seguida, na Secretaria de Relações Humanas, não é?  Mas o fato do poder municipal estar nas mãos dos Cantídios incomodou, mais do que a qualquer outro, aos Magela.  Era preciso um candidato de consenso, e desta vez  os Magela se aliaram aos Noratos para impedir que o professor se reelegesse.  

"Conseguiram isso com o artifício (bastante hábil, reconheço), de lançar o nome de Dona Zizinha Combé, viúva de um comerciante muito ligado aos Magela, morto num acidente. Até capelinhas já havia em seu nome.  A campanha foi no tom religioso e emotivo.  O que posso dizer?  Votei em D. Zizinha, e ela ganhou.

“Todo dia chego aqui às 11 (em vez de 8:00), brinco no Twitter, leio os jornais, e vou tomar cafezinho na esquina.  Não devo nada aos Magela, tá sabendo?  Eles não me botaram aqui. Não devo nada a ninguém.  E tem mais, político tem mais é que ter medo de mim, porque eu nunca votei num candidato pra ele perder."





quinta-feira, 19 de julho de 2012

2927) Clone de heavy-metal (19.7.2012)






A briga entre o digital e o analógico não avança sem alguns golpes baixos.  Ou algumas boas malandragens, de acordo com o ponto de vista.  Boa malandragem parece ser o ponto de vista de banda de heavy metal Def Leppard, cujo trabalho conheço pouco mas me lembro de ter visto no Rock in Rio de 1985.  O Leppard parece estar vivendo uma profunda crise conjugal com sua gravadora, a Universal Music. (O relacionamento entre gravadoras e artistas contém alguns padrões que lembram muito o relacionamento entre maridos e esposas.)  Os dois não têm chegado a um acordo sobre a remuneração mais justa sobre vendas e downloads de faixas do catálogo da banda.  A discussão chegou a um ponto em que deixou de haver discussão.

“Nosso contrato”, diz o líder Joe Elliott, “estabelece que eles não podem fazer nada com as músicas sem a nossa permissão, absolutamente nada.  Então nós mandamos uma carta dizendo: Não importa o que vocês sugerirem, vão ter um ‘não’ como resposta, então é melhor não sugerirem nada”.  O problema é que a Universal também detém direitos sobre os fonogramas gravados pela banda, em seus 30 anos de carreira.  Como sair do impasse?

Simples: a banda está regravando em estúdio seus grandes sucessos, reproduzindo a gravação original com a mesmíssima sonoridade, mas gerando com isso um novo fonograma que pertencerá somente a ela.  Um auto-plágio ou auto-falsificação? Diz Elliott que é um trabalho duro: “Tivemos que estudar essas canções nos mínimos detalhes, e fazer imitações perfeitas. Deve ter levado o mesmo tempo de gravação que as faixas originais, mas por causa das novas técnicas o processo final foi mais rápido. Mas, como recapturar aquelas sonoridades?  E onde eu vou achar aquela voz com 22 anos de idade?”.

Por causa da briga, o Def Leppard é uma das poucas super-bandas cujo catálogo ainda não é disponível para downloads; duas destas regravações estão iniciando este processo. A nova “Pour Some Sugar On Me” já vendeu 21 mil downloads nos EUA e “Rock of Ages” mais de 5 mil. Qualquer músico profissional sabe que reproduzir com perfeição uma faixa já gravada é geralmente muito mais difícil do que simplesmente regravá-la “de um jeito parecido”, sem se preocupar em obter semelhança total.  A auto-regravação parece uma “solução de português”, mas ela revela pelo menos o grau de irreversibilidade nas relações da banda com a gravadora.  Os músicos acham que esse trabalho insano, e aparentemente desnecessário, é melhor do que voltar a discutir a utilização dos fonogramas antigos.  Não é por nada não, mas bem que João Gilberto poderia fazer a mesma coisa, com muito mais facilidade.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

2926) Viagem à Terra Oca (18.7.2012)



Um bom exemplo de como a Humanidade acaba realizando, por vias transversas, seus sonhos mais profundos, é a história de Archibald DeVane, um industrial de família tradicional de Minneapolis, que, como muitos dos seus contemporâneos, acreditava na Teoria da Terra Oca. 

Filho de um casal de rígida moral puritana, DeVane acreditava com fervor naquela controvertida hipótese científica.

As fotos da época mostram um indivíduo alto, bem apessoado, de espessa barba negra, vestido com sobriedade e bom gosto. Nunca aparece sorrindo, e sempre encara a câmera com olhos intensos. O remo e a equitação eram suas atividades de lazer preferidas. Entre suas leituras, além das obras científicas relacionadas a seu interesse principal, apreciava as obras sobre mitologia.

DeVane trabalhava com disciplina monástica. Montou e desenvolveu uma indústria de enlatados. Todo seu esforço tinha como objetivo financiar uma expedição científica capaz de comprovar a veracidade da teoria da Terra Oca e tornar-se assim um benfeitor da humanidade. (DeVane viveu numa época, o século 19, em que tornar-se um benfeitor da humanidade era um objetivo mais inteligível do que “ficar famoso”.) 

Havia duas maneiras, nos anos 1890, de tentar comprovar essa Teoria.

A primeira era fazer uma expedição marítima ao Polo Norte, onde se acreditava existir um enorme abismo que sugava para dentro de si a água dos oceanos, transferindo-a para o interior da Terra, onde elas banhavam os continentes subterrâneos. (A teoria explica que essa água retorna à nossa superfície graças a milhões de fontes subterrâneas, ou a aberturas no fundo dos nossos oceanos.)

DeVane optou pela segunda solução: a escavação de um túnel que a certa altura romperia a crosta interna do planeta, permitindo ao grupo de aventureiros emergir nessa nova superfície que se situa pelo avesso da nossa. 

Depois de uma ampla pesquisa assessorada por geólogos de renome, foi escolhida uma região na Carolina do Norte, e tiveram início as escavações. Ali seria descoberto um Novo Mundo, onde existia (segundo versões conflitantes) o Eldorado, ou uma Utopia naturalista e espiritualizada, ou uma floresta sem fim com fauna e flora deslumbrantes, ou o refúgio final da Tribo Perdida de Israel.

Todo sonho é pouco para um sonhador capaz de financiar a si próprio. Quando as escavações já iam com cem metros de profundidade, DeVane viajou a Londres para fechar uma parceria com a Landmark & Co., empresa de engenharia e construções que lhe fora recomendada pelo embaixador norte-americano na Grã-Bretanha.

Em sua primeira reunião, conseguiu a adesão da presidente, Mrs. Willoughby, uma viúva riquíssima cujo objetivo na vida era dar um bom uso para o dinheiro deixado pelo falecido esposo, um plutocrata octogenário.

Logo nas primeiras reuniões, e nos primeiros jantares, os dois descobriram terem gostos em comum: a pintura de Bouguereau e de Alma-Tadema, as óperas de Puccini, a astronomia amadora.

Entusiasmada pelo entusiasmo de DeVane, ela propôs que os dois fossem a São Petersburgo contratar uma empresa russa de engenharia que trabalhara na construção do Canal de Suez.

Ali, os dois visitaram o Museu Armitage, os melhores restaurantes, e conviveram com a fina flor da aristocracia russa. Depois, em Paris, visitaram o Louvre, dialogaram com Lesseps; passaram um carnaval em Veneza; veranearam durante meses em Ibiza; dançaram valsa em Viena; e certa tarde, quando repousavam numa suíte em Casablanca, chegou um telegrama urgente. DeVane rasgou o invólucro e murmurou, enquanto lia: 

-- Canteiros parados? Milhões em prejuízo? Terra Oca? Mas, de que demônios esse imbecil desse advogado está falando?!...





terça-feira, 17 de julho de 2012

2925) Os reis e os tronos (17.7.2012)




Entre as numerosas críticas que tenho lido sobre Game of Thrones uma das mais ácidas e mais divertidas foi a de Laurie Penny no New Statesman (http://bit.ly/KqW2f6). 

Ela começa descrevendo a série como “um coquetel reluzente de estupros, sexo gratuito e ultra-violência”, depois opta por “uma saga cripto-medieval de monstros míticos, seios arfantes, intrigas palacianas e baldes de sangue”, e mais adiante vê sinais de uma “cultura de estupro racista misturando Disneylândia com Dragões”. 

Que o leitor não a leve a mal: ela gosta da série.  Mas, como todo crítico que se preza, ela sabe que não é porque a gente gosta de uma coisa que essa coisa é boa. 

Um crítico não é um sujeito que só gosta de coisas boas, é um sujeito capaz de ver com distanciamento as coisas que considera boas ou ruins.

Penny constata que a série retoma um mito persistente da nossa cultura: A Busca do Bom Rei, e seu subtema A Formação do Bom Rei.  Westeros é um continente meio medieval, com vários reinos submissos a um reino central, o do Trono de Ferro em King’s Landing. 

Todos esses reis têm doses variáveis de loucura, mania homicida, ambição descontrolada, ressentimento mútuo, etc.  Manter a lealdade de todos só é possível com subornos e ameaças.  

É um reino onde nobres idealistas como Ned Stark acabam demonstrando, à própria custa, a impossibilidade de se viver de acordo com os elevados preceitos da cavalaria. É preciso ser mais raposa que as raposas, mais serpente que as serpentes; é preciso mentir, trair, ameaçar, subornar, matar – com presteza e sem escrúpulos.

Num contexto assim, como encontrar o Bom Rei, o que consiga a síntese entre nobres ideais e prática eficiente, entre envergadura moral e habilidade política? 

Laurie Penny torce o nariz para o conceito de Bom Rei, herança de milênios de monarquia.  A qual (agora sou eu) foi substituída por séculos de repúblicas presidencialistas. Um presidente não é mais que um rei de paletó e com prazo de validade. É um símbolo, uma encarnação terrena de um poder divino (quem foi que disse que nosso Estado é laico?). 

Vivemos em busca do Governante Ideal, achando que é mais fácil encontrar um ser humano perfeito do que conceber uma forma de administração pública que não se baseie no carisma de um candidato e nas suas venetas depois de empossado. Daí o fato de que temos cada vez mais “atores” e menos administradores ocupando os cargos de Poder (com exceções, é claro.) 

Ainda vamos precisar de muita banda-larga até construir um sistema pelo qual o Povo governe a si mesmo, e então nossas eleições pseudo-democráticas nos parecerão tão anacrônicas quando as guerras feudais de Westeros.

domingo, 15 de julho de 2012

2924) O fogo de Prometeu (15.7.2012)

A Humanidade está se encaminhando para um destino pós-orgânico, como pregam os inúmeros centros Trans-humanistas espalhados pelo mundo. Abandonaremos o corpo biológico e faremos o upload de nossas memórias para ambientes eletrônico-virtuais, onde passaremos a existir em forma de pura energia, pura memória de bits-e-bytes. A FC explora essa idéia há décadas.  A Ciência se encaminha para lá.  Seremos os mesmos de hoje?  É claro que não, mas não sentiremos saudade. Afinal, não sentimos saudade de ser antropóides pulando de galho em galho. 

Esta é uma das funções das redes sociais, por exemplo: digitalizar nossa vidinha, nossas preferências, opiniões, venetas, linguagens emotivas. Hoje somos seres biológicos que postam no Twitter coisas como: “Aí, galera, estou comendo uma pizza de calabresa... Quem vai?!”.  Amanhã, seremos softwares postando a mesma coisa; o fato de inexistirem pizzas físicas será irrelevante, porque os outros softwares responderão: “U-hu! Tô tomando um vinho, e desejo bom apetite!”.  Para os nossos trinetos de silício, o mundo será apenas linguagem e eles não sentirão falta das nossos cinco sentidos. Serão uma ficção e viverão num mundo de ficção, sem referencial físico nenhum, mas como serão ficção não conhecerão nenhum outro mundo além do seu, e serão felizes – ou infelizes, dependendo de para onde suas ficções os levarem.

Nesse futuro, filmes como Prometheus de Ridley Scott, The Thing de John Carpenter e outros filmes de terror repugnante cumprirão um papel importantíssimo.  Eles são o pesadelo da carne. A lembrança da existência de criaturas feitas de uma matéria orgânica pulsante, quente, coberta de epiderme, mucosa e pelos.  Criaturas que não se comunicam, apenas atacam, devoram e digerem outras criaturas igualmente repugnantes. Os monstros de Ridley Scott  nos provocam engulhos de nojo diante daquela sua biologia moluscóide, surreal, cheia de ventosas, esfíncteres e baba pegajosa. 

No mundo de silício (onde seremos almas sem corpos, realizando por vias transversas a profecia de todas as religiões) seremos assaltados por pesadelos de imagens e palavras evocando essas texturas latejantes, úmidas, recheadas de vísceras.  Uma lembrança ancestral, reprimida, de um mundo centrado na alimentação, excreção e reprodução. Quando o fogo eletrônico incinerar nossos corpos, no futuro pós-orgânico, os pesadelos serão orgânicos, porque representarão o medo da regressão ao mundo onde se come e se é comido, onde se mata e se morre.  Os aliens, monstros híbridos de tigre e cthulhu, são a nossa herança para o futuro dos Sem Corpo.  Para que eles, também, não consigam dormir em paz.

sábado, 14 de julho de 2012

2923) Woody Guthrie, 100 anos (14.7.2012)




O Brasil comemora o centenário de Luiz Gonzaga, e fico imaginando que tipo de comemorações estará havendo nos EUA pelo centenário do Luiz Gonzaga deles, o grande Woody Guthrie.  

Assim como Gonzaga, foi um cara que viajou seu país de ponta a ponta, cantando a vida das pessoas simples nos campos de trabalho, nos sítios, nas praças, nas estações de rádio, nos comícios, nas festas.  

Gonzaga inventou o baião sintetizando elementos rítmicos, melódicos, instrumentais, poéticos.  Guthrie trabalhou dentro da canção folclórica de origem irlandesa ou escocesa, da música country tradicional, do forrozinho hillbilly que eles dançam até hoje, de um ou outro elemento negro do blues, das baladas em compasso ¾, e daquelas quilométricas canções narrativas em estrofes fechadas, que a canção em língua inglesa tanto aprecia. (E nós também – vide “Triste Partida”.)

Guthrie é menos conhecido pelas canções do que por ter sido o “poeta andarilho” que serviu de modelo a uma geração inteira de “trovadores hippies”: Bob Dylan, Phil Ochs, “Ramblin” Jack Elliott, etc.; e ter sido interpretado por David Carradine (o ator da série “Kung Fu”) no filme Esta terra é minha terra (1976), inspirado em sua autobiografia Bound for Glory (1943).  

Acho que há poucos CDs de Guthrie lançados no Brasil.  Nos tempos do vinil era ainda mais difícil encontrar alguma obra sua, e o que me salvou foram alguns elepês da biblioteca da ACBEU, na Vitória, no tempo em que eu morava em Salvador.

Ele foi o menestrel ambulante da América no tempo da Grande Depressão, pegando carona em trens, dormindo nos acampamentos dos sem-terra, metendo-se em agitações políticas.  No filme dylaniano Não estou lá, de Todd Haynes, seu nome é dado a um adolescente negro, fluente ao violão. 

Sua carreira de trovador brotou num ambiente idêntico ao de As Vinhas da Ira (livro de John Steinbeck, filme de John Ford).  Esquerdista por natureza, Guthrie escreveu em seu violão: “Esta máquina mata fascistas”, mas suas canções não são incendiárias, nem falam de revolução.  Em sua grande maioria são celebrações da vida simples das pessoas do interior (tal como em Luiz Gonzaga) e reafirmações da fé democrática fundamental dos norte-americanos.

Guthrie nasceu em 14 de julho de 1912 e morreu aos 55 anos, de uma doença nervosa degenerativa. Seu filho Arlo Guthrie é um dos grandes nomes do folk rock.  Sua obra continua a ser gravada e reverenciada, canções como “This land is your land”, “Pastures of Plenty”, “I ain’t got no home”, e seus numerosos “talkin’ blues”, aquele estilo de monólogo semi-cantarolado enquanto se rasqueia o violão, usado por Dylan, Arlo e tantos outros.










sexta-feira, 13 de julho de 2012

2922) Não dá pra ler tudo (13.7.2012)








O aumento exponencial de textos eletrônicos disponíveis e gratuitos causa uma euforia sem limites e um pessimismo sem volta. Centenas de milhares de livros, milhares de filmes, milhões de músicas!  Tudo ao alcance de um clique, de graça!  O único senão é o fato de que o dia continua tendo apenas 24 horas.  Nosso tempo de leitura é o mesmo de que dispunham os leitores do século 18, ou mesmo os leitores da Grécia Antiga (e mesmo eles certamente se queixavam de que “não dava pra ler tudo”).  Esse “não dá pra ler” é relativo, e não faz muita diferença. Digamos que eu conseguisse ler um livro por dia; seriam 30 livros por mês.  Se meu limite é esse, não faz muita diferença se estou deixando de ler 100 livros ou um milhão.  Leio trinta, e acabou-se.

A questão é: Que trinta?  Porque era mais fácil escolher trinta entre 100 do que trinta entre um milhão. Não teríamos desculpa para estar lendo algo a contragosto, porque teríamos acesso, se não a tudo, pelo menos a uma quantidade inesgotável de obras que de fato queremos ler.  Tem muitos leitores de bibliotecazinhas humildes do interior, mundo afora, que ficam relendo seus autores preferidos, ou avançando aos bocejos por entre obras que não lhes interessam, apenas porque não aparecem livros novos.

E como ter acesso a informações novas, a autores que ainda não conhecemos? Cory Doctorow (do saite BoingBoing) diz: “Twitter e blogs são a única maneira de administrar a enorme quantidade de material disponível. Sem isto, ninguém sairia de sua órbita de contatos sociais, ninguém trocaria idéias com os milhões de pessoas que conhecem outros milhões, os polinizadores que pegam uma informaçãozinha aqui e levam para acolá. Sem eles, a conversa morreria. Essas pessoas garantem que o que é realmente bom acabará chegando ao topo da pilha e ficando acessível”.

O dia continua tendo apenas 24 horas, mas por isso mesmo é preciso preenchê-las bem. O leitor não deve imaginar que os milhões de livros possíveis de ler já lhe pertencem, ou estão de alguma maneira a cobrar-lhe um posicionamento. O leitor deve se perguntar: Entre trabalho e outras atividades, hoje em terei meia hora para ler.  Ou duas horas, ou cinco, etc.  Vou preencher esse tempo com que?  Você não precisa ter um iPod com mil romances, basta ter um livro por perto, um livro que lhe interesse. (Tanto pode ser digital quanto de papel.) Se você pensar nos mil livros extraordinários que gostaria de ler, não vai sair do canto. Basta ter sempre coisas boas por perto, e todo dia pensar: vou ler o que?  O fato de haver 100 vezes mais títulos disponíveis não me obriga a ler 100 vezes mais, apenas me ajuda a escolher melhor.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

2921) Ciência vs. Fantasia (12.7.2012)



Nem sempre (ou melhor, quase nunca) é fácil traçar uma linha separando FC e fantasia, pelo modo peculiar como os elementos das duas sempre aparecem misturados. 

Arthur C. Clarke já afirmou que qualquer história onde se viaje mais rápido do que a luz é fantasia, e não FC, porque uma tal viagem é cientificamente impossível.

Há uma história de Ursula LeGuin (uma das primeiras que ela publicou) em que elementos dos dois gêneros estão misturados de um modo muito inteligente. 

“Semley’s Necklace” (1964) conta a história de um povo humanóide num planeta remoto, que tem uma civilização meio artesanal (suas armas são espadas, lanças, etc.), e que monta cavalos alados, uma espécie de “pégasos” naturais do planeta. Um mundo de fantasia heróica, por assim dizer. Semley é uma jovem que por uma série de motivos precisa reaver um precioso colar que foi subtraído do seu povo e levado para um museu em outro planeta. 

Ela viaja até a base dos colonizadores, e insiste tanto que eles a levam ao planeta onde a jóia foi guardada, prevenindo-a de que a viagem é longa mas vai durar apenas uma noite. Ela consegue a jóia de volta, mas quando retorna para sua aldeia descobre que não se passou um dia inteiro, mas nove anos. Seu marido morreu na guerra, e sua filha pequena é agora da mesma idade que ela.  

É um conto que contrapõe duas civilizações, uma “medieval” e a outra tecnológica, e mostra o choque cultural de uma pessoa ingênua ao se deparar com os efeitos relativísticos de um voo espacial.  Jamais passaria pela cabeça de Semley, em sua cultura, que uma viagem pudesse durar uma noite num lugar e nove anos em outro. A ciência vale inclusive para os que a desconhecem.

Um divertido filme de FC é Viagem Fantástica (1966) de Richard Fleischer.  Nele, um cientista tem um coágulo no cérebro que precisa ser operado; a única maneira de chegar lá é miniaturizando um submarino com uma equipe de médicos e injetando-o na corrente sanguínea do paciente, para que o veículo chegue até o cérebro e a operação possa ser feita.  

O filme impressiona até hoje pelos efeitos especiais, excelentes para a época, mas tem uma falha fundamental. Um submarino com sua tripulação, mesmo com seu tamanho diminuído para uma fração de milímetro, continuaria pesando as mesmas toneladas que pesa, porque sua massa continua sendo a mesma – apenas os espaços intra-atômicos foram reduzidos (mais ou menos como um livro sem espaços em branco mas com o texto completo gastaria a mesma tinta para ser impresso).  

O próprio Asimov, autor da novelização, teve que aceitar essa premissa obviamente anticientífica, e ela contamina de fantasia toda a narrativa subsequente.








quarta-feira, 11 de julho de 2012

2920) "Prometheus" (11.7.2012)








O novo filme de Ridley Scott parece iniciar uma fusão entre os dois clássicos que ele dirigiu na FC (Alien, o 8. passageiro, 1979, e Blade Runner, 1982).  Os filmes ocorrem em diferentes universos, oriundos de autores não relacionados um ao outro, mas que Scott parece querer botar esses universos embaixo da sua própria asa.  Em ambos os filmes existiam andróides (chamados “replicantes” em Blade Runner) e parece ser este o elo entre as duas linhas ficcionais.  Em Alien e Prometheus não vemos a Terra, a não ser em duas cenas curtas no início do segundo filme, cenas em lugares desertos, que nada nos mostram da realidade urbana desse futuro. Uma Terra capaz de gastar um trilhão de dólares mandando uma nave a um planeta distante, para que dois arqueólogos confirmem ou não sua tese sobre a origem de humanidade. Será a mesma Terra cuja Los Angeles em 2019 produzia  replicantes?

Se as histórias vão se mesclar através do enredo, contudo, é menos importante do que o fato de que se mesclam através da temática.  A expressão “encontrar o seu criador” (“to meet thy maker”), usada em Blade Runner, é retomada insistentemente neste filme, só que desta vez não são os replicantes que querem um tête-à-tête com o engenheiro que os criou (Tyrell, da Tyrell Corporation) e sim os humanos que descobrem (ou imaginam ter descobertos) indícios de que a humanidade foi criada por uma raça de Engenheiros que veio de outra parte da Galáxia.

Blade Runner já questionava a frieza com que os humanos tratavam os replicantes, frieza e insensibilidade dignas de qualquer andróide.  O David de Prometheus é um andróide que trata os humanos com a polidez impecável e desdenhosa de um mordomo inglês administrando uma família nobre mas disfuncional; mas a executiva de carne e osso interpretada por Charlize Theron não é mentalmente menos andróide do que ele.  Ela e David confirmam a frase de Philip K. Dick de que alguém que não se preocupa com o sofrimento de uma criatura viva é uma máquina, mesmo que seja uma criatura viva.

Prometheus deve elementos aos filmes já citados mas também a 2001 de Kubrick (sinais achados na Terra remetem expedição a um planeta distante) e a Missão: Marte de Brian de Palma (montanha oca, estatuária colossal, tempestade de areia, nave soterrada, fecundação dos oceanos terrestres com DNA alienígena). É o próprio DNA do gênero que Ridley Scott está mais uma vez dissecando e recombinando, e em termos de perfeição técnica e ousadia visual ele está mais próximo de Kubrick do que de De Palma.  Esta primeira metade da sua nova narrativa justifica a expectativa pela segunda.

terça-feira, 10 de julho de 2012

2919) Anderson x Sonnen (10.7.2012)








Sábado passado, a luta UFC 148, em que o brasileiro Anderson Silva derrotou o norte-americano Chael Sonnen no 2o. assalto, deu a bilheteria mais alta na história desse esporte: 7 milhões de dólares de ingressos, sem contar os lucros de patrocínio e de transmissões na TV aberta e em pay-per-view. A publicidade foi incrementada pelas entrevistas e declarações de Sonnen, que, derrotado na primeira luta, soltou o verbo contra o brasileiro (e contra o Brasil).  Nos dias antes da luta, falava-se: “Não vai ser uma luta, vai ser um massacre”, ou então “Não vai ser uma luta esportiva, vai ser uma briga entre dois caras que estão cheios de ódio um pelo outro”. 

Nem tanto.  Sonnen atacou mais no primeiro assalto e Anderson se defendeu com perfeição. No segundo foi a vez do brasileiro ir para cima e nocautear o outro.  Fez mais ou menos como seu time, o Corinthians, fez nos dois tempos contra o Boca Juniors semana passada.  No final, Anderson (que cultiva a imagem “bom rapaz”) puxou para perto de si um Sonnen contrafeito (ele cultiva a imagem “bad boy”), falando ao microfone que aquilo era apenas um esporte, que nada tinham um contra o outro, etc.

Temos milhões de anos de luta gravados em nosso DNA, e poucos séculos de esporte. O esporte é luta sublimada, esvaziada de raiva real, transformada num ritual simbólico onde se confrontam as respectivas habilidades (futebol, tênis, natação, basquete, tudo).  As lutas tipo box e luta-livre, no entanto, são esportes ainda perigosamente próximos da selvageria primitiva. Deslizam com facilidade para o terreno da raiva, do impulso matador, predador. 

E o público oscila entre as duas experiências. Uns (eu, por exemplo) querem o jogo, a luta violenta mas sem raiva, em que depois do fim os lutadores se abraçam, o perdedor parabeniza o vencedor, que por sua vez o elogia, e depois vão comer churrasco juntos. Mas existe uma parte do público a quem esse fingimento incomoda.  Eles querem briga de verdade.  Não querem essa “hipocrisia” de dois caras quebrando a cara do outro e depois dizendo-se amigos.  Querem ter certeza de que está acontecendo alguma coisa de verdade, de que aquela luta exprime um conflito real entre minha raça e a sua, meu país e o seu.

É como nos velhos tempos da Cantoria de Viola, quando o cantador-de-fora tentava humilhar o cantador-local dentro do seu reduto, e o outro tentava defender a honra de seu vilarejo. Quando Sonnen insultou o Brasil em suas entrevistas, estava tentando recuperar esse espírito de briga-de-verdade. Algumas pessoas (basta lembrar Mike Tyson) só brigam bem quando estão sentindo raiva.  Sonnen, pelo que foi visto, nem assim. 

segunda-feira, 9 de julho de 2012

2918) "Memorial de Aires" (9.7.2012)








É o que chamam de “o romance crepuscular de Machado”.  A viuvez do protagonista deste romance é a mesma do escritor, a viuvez sem filhos, que aliás é um dos temas centrais do livro, tanto quanto o amor entre dois jovens que (a julgar pelo narrador) parecem ter sido feitos um para o outro.  Reli agora esse livro, se é que o li todo aos vinte e poucos anos.  Dele só me lembrava que nele não acontece nada.  Aqueles chás contemplativos de fim de tarde entre uma porção de gente com cabelos brancos e roupas pretas européias.  O mundo descrito por um introspectivo. E os personagens realistas de Machado mantêm pelo menos um elo em comum com os personagens de folhetim: parecem amarrados a um destino de ferro.  Os personagens do melodrama eram pessoas desesperadas que veem a vida ser destruída por forças que elas não conseguem sequer imaginar; os personagens realistas veem sua vida destruídas por eles mesmos.  Profetizam, contemplam, descrevem, choram, celebram, rememoram a própria destruição.  Mas não a evitam.  Estava escrito.

A expressão “estava escrito” sugere a imagem de algo gravado com cinzel no mármore ou escrito a laser no metal.  Comparada à palavra falada, a palavra escrita parece ter um peso de infalibilidade.  O Memorial, que é um diário mantido pelo Conselheiro Aires entre 1888 e 1889, é o contrário da palavra impressa.  Mal nos dá conta do que acontece no país, quanto mais no mundo.  O Conselheiro, diplomata aposentado, sexagenário, sujeito caladão e observador, vem a conhecer uma jovem viúva, e fica meio balançado para o lado dela.  Aproxima-se dela, que é meio filha adotiva de um casal idoso e sem filhos, os Aguiar.  O Conselheiro escreve comentando que sabe que após sua morte alguém vai ler aquelas páginas. Conta-nos a história de como um outro meio filho adotivo dos Aguiar, o jovem Tristão, voltou de Portugal (onde morava há muitos anos).  Tristão e Fidélia (a jovem viúva) são o casal de filhos quie os Aguiar nunca tiveram. O Conselheiro frequenta os saraus, conversa, ouve os jovens tocando piano, e de volta a casa lamenta não ser músico. Seu espetáculo é aquele casal que parece se aproximar por uma fatalidade simétrica do destino humano.

Há algum reflexo biográfico em três casais: os Aguiar, os jovens Tristão e Fidélia, e o narrador e sua irmã Maria Rita.  Machado tinha enviuvado há poucos anos, e não acho que teve irmã.  Maria Rita é meio fofoqueira, é um pouco a irmã do Dr. Shepard, o narrador não confiável de O assassinato de Roger Ackroyd (1926) de Agatha Christie.  Brás Cubas, Dom Casmurro, Aires: todos três parecem corresponder a um arquétipo oracular que um escritor produz para si próprio, o da velhice a sós.

domingo, 8 de julho de 2012

2917) O poeta Ronaldo (8.7.2012)








Ronaldo Cunha Lima foi de uma geração de poetas boêmios, uns com um pé na advocacia, outros com um pé no jornalismo, todos com um olho na política.  Uma geração que incluiu Palmeira Guimarães, Raimundo Asfora, Orlando Tejo...  Eu os conheci primeiro pelas histórias contadas por meu pai, poeta boêmio de uma geração mais velha, que via essa rapaziada com admiração e bom humor.  O poeta boêmio é aquele que não escreve pensando na Literatura Brasileira, escreve para si mesmo e para as pessoas que o cercam.  A poesia é reflexo da vida, parte da vida, não tem sentido se lida em separado. 

Esses poetas faziam sonetos impecáveis em cinco minutos, pegando como deixa uma frase que alguém soltou na mesa do restaurante. Neste sentido, se assemelham ao cantador repentista.  Essa geração que nomeei acima conviveu muito com os repentistas, porque a escada que dava acesso à Rádio Borborema ficava entre o Café São Braz e a Sorveteria Flórida, numa cidade que não existe mais, ou que a cada dia existe menos.

Depois de adulto, eu próprio passei a conviver com Ronaldo, que, longe da política (era um ex-prefeito cassado) vivia no Rio de Janeiro, advogando, e doido por um pretexto para vir passar uns dias em Campina Grande.  Esse pretexto, da minha parte, foi o Congresso de Violeiros, em cuja organização eu trabalhava, e onde Ronaldo várias vezes fez parte do júri ou da comissão de seleção de assuntos, a convite nosso.  Fornecia motes românticos, apaixonados, falando de amor e saudade, e que quando caíam no sorteio para uma dupla bem inspirada induziam glosas de grande popularidade junto à platéia feminina.

A política chamou o boêmio de volta. A política é um destino grego ao qual não se desobedece. O que mais marcou as campanhas de Ronaldo, e que vive até hoje na memória dos que as assistiram, foram seus discursos em redondilha, naqueles versos simples de rimas exatas que o povo reconhece tão prontamente, porque faz parte de nossa memória cultural. Improvisador fluente, familiarizado com os truques dos repentistas, Ronaldo era capaz de versificar a propósito de tudo que estivesse ao alcance do olho: o garçon que demorava, a gravata torta de Fulano, o uísque com gelo demais, a TV ligada, o casal na mesa vizinha.

Augusto dos Anjos foi o poeta que marcou sua carreira.  Bastava abrir o livro ao acaso e ler uma linha qualquer: Ronaldo dizia de imediato as linhas seguintes.  Isto lhe valeu a fama num programa de TV e provavelmente o fez ganhar um sem-número de apostas.  A aposta maior, claro, era fazer da poesia o bálsamo em cada purgatório, o salva-vidas em todo naufrágio, o brinde em cada triunfo, e o espelho na manhã seguinte.