Morrerá no ano que vem, num quarto-e-sala na rua Silveira Martins, esquecido, endividado, coberto pela poeira da indiferença, o ator carioca Mário de Sousa.
Ninguém lembra o seu nome. Mesmo no prediozinho de quatro andares, sem elevador, onde morou a vida inteira, nem todos os vizinhos sabiam da sua profissão. Sabiam a da esposa, que aposentou-se como enfermeira e foi o fiel da balança, como se diz, nos momentos em que os cachês diminuíam ou rareavam.
Mário Sousa não tinha talento; tinha um amor ao teatro capaz de superar qualquer limitação. Seu currículo surpreendente a partir dos 20-e-poucos anos foi construído à base de amizade. Fez uns poucos papéis principais que não entusiasmaram ninguém, e depois deslizou para a trincheira, sempre repleta, dos coadjuvantes confiáveis. Não percebeu que isso tinha acontecido; achou que tinha se imposto profissionalmente.
Aos 60 anos já tinha se despedido do teatro (numa remontagem
de Testemunha de Acusação de Agatha Christie, no teatro da EMERJ) quando lhe
chegou um convite.
Cid Monteiro, autor e diretor que fora seu aluno, lhe oferecia uma pequena ponta num “vaudeville” inédito, Sarau no Castelo de Mondestan. Faria um velho mordomo, mas teria algumas falas. Ele aceitou e agradeceu a delicadeza, depois de calcular quanto aquilo lhe renderia por semana e por mês.
Seu papel consistia em ir ao palco no primeiro e no segundo atos, sempre ajudando alguém a se locomover, dizendo frases como “boa noite” e “com licença”.
No terceiro ato, contudo, Cid colocara uma frase para ele. O dono da mansão, o Marquês de Mondestan, lhe pergunta: “Victor, fez o que lhe mandei?”, e o mordomo responde: “Sim, senhor. Coloquei as gotas-para-dormir no cofre do seu escritório, e o envelope cor-de-rosa na mesa de cabeceira de madame”.
Cid Monteiro, autor e diretor que fora seu aluno, lhe oferecia uma pequena ponta num “vaudeville” inédito, Sarau no Castelo de Mondestan. Faria um velho mordomo, mas teria algumas falas. Ele aceitou e agradeceu a delicadeza, depois de calcular quanto aquilo lhe renderia por semana e por mês.
Seu papel consistia em ir ao palco no primeiro e no segundo atos, sempre ajudando alguém a se locomover, dizendo frases como “boa noite” e “com licença”.
No terceiro ato, contudo, Cid colocara uma frase para ele. O dono da mansão, o Marquês de Mondestan, lhe pergunta: “Victor, fez o que lhe mandei?”, e o mordomo responde: “Sim, senhor. Coloquei as gotas-para-dormir no cofre do seu escritório, e o envelope cor-de-rosa na mesa de cabeceira de madame”.
E o teatro vinha abaixo.
Todas as noites.
Entrevistei mês passado Mário Sousa, que me mostrou cópias fotostáticas (ele as chamou assim!) do histórico de apresentações e turnês do grupo. Durante quinze anos, o grupo Nós Cegos realizou 2.235 apresentações desse sucesso inaudito, e não houve (segundo Mário) nenhuma noite em que, naquela frase, o teatro não viesse abaixo, fosse pelo “timing”, fosse pelo “delay”, fosse pela expressão furiosa ou desconcertada do ator que fizesse o marquês...
“Era meu momento”, suspirou Mário, inalando no aparelho. “Escreva isso. Todo mundo tem seu momento, não importa se são dez linhas ou cem páginas, é o seu momento. Ou acontece ou não acontece”.
Mário de Sousa teve seu momento; morrerá no ano que vem, num quarto-e-sala na rua Silveira Martins, esquecido, endividado, coberto pela poeira da indiferença.
Entrevistei mês passado Mário Sousa, que me mostrou cópias fotostáticas (ele as chamou assim!) do histórico de apresentações e turnês do grupo. Durante quinze anos, o grupo Nós Cegos realizou 2.235 apresentações desse sucesso inaudito, e não houve (segundo Mário) nenhuma noite em que, naquela frase, o teatro não viesse abaixo, fosse pelo “timing”, fosse pelo “delay”, fosse pela expressão furiosa ou desconcertada do ator que fizesse o marquês...
“Era meu momento”, suspirou Mário, inalando no aparelho. “Escreva isso. Todo mundo tem seu momento, não importa se são dez linhas ou cem páginas, é o seu momento. Ou acontece ou não acontece”.
Mário de Sousa teve seu momento; morrerá no ano que vem, num quarto-e-sala na rua Silveira Martins, esquecido, endividado, coberto pela poeira da indiferença.
Clap, clap, clap!
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