Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
2190) Glauco (16.3.2010)
Glauco Villas-Boas, assassinado na semana passada em Osasco junto com seu filho Raoni, foi um dos cartunistas que ressuscitaram o humor brasileiro durante a década de 1980. Era uma turma enorme de paulistas nascidos ou adotivos: Glauco, Angeli, Laerte, Adão Iturrusgarai, Paulo & Chico Caruso, Nilson, e tantos outros. Circularam em fanzines, depois em revistas como Circo, Chiclete com Banana, entraram para a imprensa diária (Folha, Estadão), colaboraram na TV, e depois cada um estava lançando sua própria revista. Faço esse arrazoado para deixar claro que, se Roberto Carlos e os Beatles são chamados “a trilha sonora de uma geração”, esses cartunistas foram o muro, o grafito, a porta-de-banheiro, as páginas-do-fim do caderno onde a História desta geração foi escrita.
Glauco foi sem dúvida um dos traços mais não-parecidos-com-coisa-nenhuma que já apareceram no cartum e nos quadrinhos brasileiros. Suas tirinhas do Geraldão eram no início um desafio para os meus olhos acostumados a tiras graficamente mais bem-comportadas, como as de Angeli (o que é uma boa medida do mau-comportamento desenhístico de Glauco). Geraldão era aquele maluco desvairado que passa o dia em casa vendo TV, tomando todas as drogas imagináveis, levando Playboy pro banheiro, metendo-se em confusões. Um primo distante dos Freak Brothers. Geraldão aparecia aplicando-se com seringa, e alguns meses depois já caminhava entre dois quadrinhos com meia dúzia de seringas, sem explicações, cravadas em pontos diferentes do corpo. Fumava e bebia, tudo bem, mas daí a pouco lá vai Geraldão atender a campainha com cinco cigarros fumegando na boca e meia-dúzia de copos equilibrados na cabeça.
O delírio cubista de Glauco foi chegando a limites que fariam recuar Picasso e Braque. Geraldão se locomovia num universo quântico em que todas as possibilidades coexistiam e se superpunham, Geraldão com dez braços bebendo, fumando, cheirando, falando ao telefone e desdobrando uma “centerfold” ao mesmo tempo. O traço de Glauco era rigorosamente não-figurativo, era esquemático e histérico, uma mistura da economia de Nássara com o frenesi de Henfil.
É impressionante que um sujeito com um traço tão anti-Belas-Artes tenha sido capaz de não apenas sobreviver, mas tornar-se nacionalmente reconhecido. Isso diz muita coisa boa sobre o Brasil, e especificamente sobre o ambiente de imprensa e cultura gráfica de São Paulo, onde talento conta muito. É no cartum e nos quadrinhos que a gente percebe, num choque instantâneo de reconhecimento, o que é “estilo” (literário, musical, cinematográfico, etc.). Estilo é a superutilização concentrada e intensiva de tudo que a gente sabe fazer, depois de jogar pela janela o que não sabe e não consegue. Não adianta dizer ao garoto, “desenhe igual a Michelangelo, ou a Crumb”. O estilo resulta da mão, do olho e do juízo acelerado de cada um, e o resultado é único, incomparável, insubstituível. Salve, grande Glauco!
2189) Dioclécio (14.3.2010)
Dioclécio não era workaholic, mas em três anos passou de auxiliar a chefe de equipe. Para Darci, era Deus no céu e Dioclécio na terra, e casal mais unido era difícil. Ela dizia às outras, “pense num marido bom, fiel, companheiro...”. Sozinha, pensava na história deles e marejava os olhos. A sorte que tinha tido! Resolver fazer aquele curso noturno. Estar no corredor naquela noite. O livro cair no chão, o rapaz de barba loura vir passando, abaixar-se, entregar o livro sorrindo. E ela agradecer, e ele dizer, você me deve um cafezinho. O primeiro café que ela tomou em anos, ele só sorrindo e colocando as perguntas sem pressa, ela dizendo tudo. E agora os dois casados, o apartamento se pagando e quem sabe um filho no ano que vem.
Mas Dioclécio trabalhava tanto! Vou me deitar, dizia ela, rabo de olho vendo que eram onze e quinze. Tou terminando e vou já, dizia ele. Ela deitava, cochilava, olhava o relógio: uma e meia e o computador teleco-teco, teleco-teco. Às vezes ele até vinha, apagava a luz, enfiava-se nas cobertas, cheirava o cabelo dela, e quando iam adormecendo ela o sentia empertigar-se todo, pular da cama. Ia para a sala, ela escutava a musiquinha do computador ligando, e teleco-teco. Voltava. O que foi, bem? Esqueci de mandar o email com o trabalho, dizia ele. Ela passava o braço e a perna por cima dele, duvido sair mais daqui.
Tudo porque era virginiano, ela nunca vira alguém tão perfeccionista, seguríssimo, exigente, refazia as coisas dez vezes e conferia vinte. Um dia num almoço da empresa um dos sócios falou para ela: Cuide desse rapaz, viu, porque sem ele nada acontece aqui. Lá também, disse ela, num rompante de audácia, e se acanhou quando todo mundo riu. Preferia que ele não trabalhasse tanto! Que até gostasse dum futebol, dum pagode! Teleco-teco, teleco-teco.
Um dia, o telefone estridente cortou a vida dela ao meio como uma serra elétrica. Minto; foi o celular que tocou o carrilhãozinho de sempre, ela atendeu e era uma das moças da firma dizendo: Darci, venha urgente aqui no escritório, Dioclécio teve um problema grave. Mas o que foi, meu Deus? ela acertou a perguntar. E a moça, tensa: Ele está muito, muito, muito mal. E desligou. Aquela repetição era um recado, não é mesmo? “Vá se preparando...” Darci era valente, se preparou, trocou a blusa, prendeu o cabelo e foi. Cuidou de tudo, dos papéis, da cremação, da missa de sétimo dia. Voltou para casa. O mundo sem Dioclécio era um filme mudo. Ela botou pra tomar café.
Um dia encontrou na praça um colega dele. Conversaram casualmente, tomaram sorvete. O rapaz falou bem de Dioclécio o tempo todo. A certa altura, como se tirasse um peso, comentou de passagem: Nunca vi fazer as coisas com tanta dificuldade, trabalhos que a gente fazia numa tarde ele levava uma semana. Tinha medo de errar, era inseguro, vivia com um medo eterno de não conseguir... Eu sei, disse ela. Mas só soube então. Foi a última a saber.
2188) A Lista de Nabokov (13.3.2010)
Não, não tem nada a ver com A Lista de Schindler. Se se parece com alguma referência cinematográfica, talvez seja com A Escolha de Sofia.
Colhi no ótimo blog “So Many Books” (http://somanybooksblog.com/) esta lista que Vladimir Nabokov distribuiu com seus alunos numa das Universidades onde lecionou.
Ao que parece, Nabokov era de opinião que um bom leitor deveria ter pelo menos quatro qualidades. Para não dar de mão beijada quais eram, ele bolou uma lista de dez itens e perguntou aos seus alunos quais seriam as quatro qualidades que, na opinião deles, um bom leitor deveria ter.
O questionário pode ser vir como um ponto de partida interessante para analisar os hábitos do leitor médio norte-americano em idade universitária, não pelas respostas deles, mas pelas perguntas que um professor calejado e esperto decide fazer-lhes.
Eis as condições indagadas por Nabokov:
1) O leitor deve pertence a algum tipo de Clube do Livro?
2) O leitor deve identificar-se com o herói ou a heroína do livro que lê?
3) O leitor deve se concentrar nos aspectos sócio-econômicos?
4) O leitor deve achar preferível uma história com ação e diálogo a uma que não contenha isto?
5) O leitor deve ter visto a adaptação do livro para o cinema?
6) O leitor deve ser um pretendente a escritor?
7) O leitor deve ter imaginação?
8) O leitor deve ter boa memória?
9) O leitor deve ter um dicionário?
10) O leitor deve possuir algum senso artístico?
Eu tinha lido a lista original, mas o trabalho de traduzir e digitar tornou a coisa tão óbvia que vou me dispensar de dizer ao leitor quais as quatro qualidades aconselhadas pelo autor de Fogo Pálido.
Um detalhe importante, para mim, é um certo grau de responsabilidade que Nabokov projeta sobre o leitor. Ouço gente reclamar de certos livros, que os livros são difíceis, e que o autor parece estar dificultando de propósito a leitura. Parece não ocorrer a esses leitores que a leitura de um livro, mesmo um livro de entretenimento, pressupõe algum tipo de esforço intelectual. E é muito difícil ler um livro quando o leitor não sente prazer em realizar esforços intelectuais.
A historiadora Margaret Dalziel definia literatura popular como sendo aquela que exigia um mínimo de esforço por parte do leitor. São os folhetins baratos, a pulp fiction de aventuras policiais ou de FC, a literatura de amor tipo Bianca ou Sabrina... Essa literatura dirige-se em princípio a pessoas que têm apenas a instrução básica, e que leem livros para se distrair. Não querem – e não podem – alçar voos nas estratosferas da intelectualidade.
Leem para passar o tempo; são proletários fatigados querendo descansar o juízo depois de um dia estafante. O problema é que quem lê esses livros são cada vez menos os proletários (para eles existe a TV) e cada vez mais uma classe média que poderia, sim, ler uma literatura mais desafiadora, e não o faz por mero conformismo e inércia mental.
2187) A Era dos Avatares (12.3.2010)
O filme de James Cameron, Avatar, está sendo discutido como um filme sobre a guerra entre as máquinas e a natureza. Um planeta com uma fauna e uma flora espantosas, habitada por humanóides inteligentes, sofre a invasão militarizada dos terrestres, e começa aquilo que vemos todo dia no Jornal Nacional. A Peleja da Sequóia contra a Motosserra. A Peleja das Mineradoras contra o Mico-Leão Dourado. A Peleja da Extração de Matérias Primas contra a Preservação da Memória Étnica. E assim por diante. Confesso que em alguns momentos Avatar me trouxe à mente um gibi de Mandrake lido na infância, em que o mágico de casaca e cartola, criado por Lee Falk, chega a dois “reinos” contíguos chamados Mecana e Flora. No primeiro, tudo é realizado e produzido através de máquinas; no segundo, através de plantas.
Cameron deita e rola na criação de máquinas colossais e de uma natureza surrealista e magnífica. Algumas paisagens do filme me deram um choque comparável ao que senti, quando menino, ao ver o desenho dos três baobás do Pequeno Príncipe de Exupéry. Avatar é aquilo elevado ao cubo e em três dimensões. Eu diria, contudo, que essa oposição entre máquinas e natureza, embora se agigante em primeiro plano, é secundária. O que Avatar nos propõe é que comecemos a nos adaptar a um mundo em que máquinas e natureza não poderão mais existir separadas uma da outra.
O Avatar é uma projeção física de nós mesmos, controlada à distância. O primeiro exemplo é o clone humanóide que o soldado Jack Scully “habita” para se locomover no planeta Pandora: um ser humano é plugado a um humanóide, que vira uma extensão do seu corpo. Depois, temos aqueles imensos “transformers”, nos quais um soldado entra e maneja lá de dentro. A máquina gigantesca repete e amplia seus gestos: é um ser humano plugado num robô. Esse recurso, contudo, não é apenas um cacoete tecnológico dos terrestres, pois em Pandora os humanóides também se plugam naqueles animais que por falta de melhor termo chamo de dragões voadores. E a tal Árvore da Vida, que no final promove a transferência de Jack Scully para o corpo do humanóide, também se pluga nos corpos que são levados para ela, ligando-se a eles por filamentos luminosos que pra mim não passam de superfibras óticas conduzindo milhões de terabytes de memória genética.
É o futuro da nossa humanidade, queiramos ou não, e o filme de Cameron nos prepara para um mundo em que será normal e até necessário termos avatares, projeções do nosso corpo controladas por nossa mente. Alguns serão máquinas maiores e mais maciças do que nossos próprios corpos. Outros serão clones ou outro tipo de desdobramentos biológicos. Outros serão avatares virtuais, imateriais, vapor de informação cibernética, constelação de sinais eletrônicos. Sem essas projeções de nós mesmos não conseguiremos nos relacionar com o mundo, assim como não podemos ver um filme 3-D sem a máquina ótica que nos é fornecida na entrada.
2186) O pulo do gato (11.3.2010)
Volta e meia estou tropeçando nesta cena. Hoje me aconteceu de estar zapeando na TV a cabo e ir parar no épico de Nicholas Ray 55 Dias em Pequim (aquele que, segundo os piadistas, recebeu no Ceará o título de “Quage dois mês longe de casa”).
Numa recepção em Pequim, no meio do ambiente tenso entre Inglaterra e China, três guerreiros chineses dão a costumeira exibição de artes marciais. Um lutador esquiva-se com impressionante rapidez dos golpes de espada desferidos pelos outros dois.
Quando o número se encerra, uma espada é oferecida ao capitão inglês interpretado por Charlton Heston, e lhe pedem que tente atingir o lutador. Ele obtempera que se ferir ou matar um chinês pode causar um incidente diplomático. O líder chinês sorri: “Não há a menor possibilidade de que isto aconteça”.
Heston pega a espada, encara o lutador, e, sem aviso, gira o corpo e enfia (só de leve) a ponta da espada no estômago do outro lutador que, desprevenido, observava a cena. Empurra-o recuando, na direção da mesa do banquete, onde o guerreiro se estatela no chão, num estardalhaço de pratos quebrados.
Chamo a esta cena O Pulo do Gato. Ela aparece com recorrência admirável em filmes de ação em que o herói é posto diante de um impasse aparentemente insuperável, mas encontra uma saída hábil, uma volta por cima, um recurso heterodoxo que lhe devolve o comando da situação.
Em Butch Cassidy, quando Butch volta a encontrar sua quadrilha, da qual estivera afastado, fica sabendo que quem manda nela agora é Fulano, um dos pistoleiros. Fulano faz cara dura, engrossa o cangote, ajeita o cinturão com os coldres e desafia Butch a sacar o revólver mais depressa do que ele.
Butch se faz de desentendido, caminha na sua direção falando em voz alta com o grupo, e, quando está mesmo à frente do desafiante, planta-lhe de baixo para cima um vigorosíssimo pontapé exatamente no lugar onde eu o faria, caso estivesse na mesma situação. O camarada desaba, manso como um anjo, e a autoridade de Butch ressurge das cinzas.
Para tornar minha teoria mais eloquente, cito o exemplo seminal. Em Os Caçadores da Arca Perdida, Indiana Jones está sendo perseguido por bandidos através de uma feira oriental. A certa altura, a ruazinha por onde tenta fugir é bloqueada por um árabe enorme, vestido de preto, que puxa do cinto uma gigantesca cimitarra e faz com ela malabarismos ameaçadores. Um frisson de “Está tudo perdido!” percorre os neurônios ansiosos dos adolescentes na platéia, mas Indiana não conta conversa, puxa o revólver e abate o espadachim com um único tiro.
Isso é o Pulo do Gato: qualquer solução radical que de certo modo viola os dados do problema – mas salva a pátria.
Uma (digamos) pequena infração às regras do fair-play, mas uma infração facilmente perdoável, em vista da sinuca em que o cidadão está metido.
Talvez o primeiro exemplo histórico disto seja Alexandre, o Grande, cortando o “Nó Górdio”, em vez de tentar desatá-lo.
2185) Capotraste ou braçadeira (10.3.2010)
É um pequeno acessório de metal e borracha que muitos violonistas usam, afixado transversalmente ao braço do violão, prendendo as cordas. Braçadeira é o nome mais comum, mas em outros países se usa “capotraste” (em inglês, diz-se apenas “capo”), para indicar que sua função é servir como se fosse a nova cabeça (capo, em italiano) do violão, aquela extremidade onde ficam as tarrachas. Serve para diminuir artificialmente a extensão do braço, fazendo-o começar mais em baixo, e iniciando a partir dali a área útil, a área onde a mão esquerda pode formar os acordes.
A braçadeira é apenas um recurso mecânico, que nada altera no instrumento. Todo mundo que toca produz a mesma coisa de maneira não-mecânica quando faz a chamada “pestana”, com o dedo indicador prendendo transversalmente as cordas. Ele é de grande utilidade quando a gente sabe acompanhar uma música qualquer com uma série de acordes difíceis, e em certa hora precisa cantar essa música num tom mais alto. Transpor os acordes para outro tom exigiria fazer novos acordes, e isso nem todo mundo sabe. Com a braçadeira, basta prendê-la no ponto necessário, e tocar, na nova posição, os mesmos acordes que já fazia, só que agora eles estão produzindo notas mais altas (mais agudas). A gente continua tocando do jeito que sabia, mas o tom da música fica mais alto. (E se a intenção for cantar a música num tom mais baixo, pode-se fazer a mesma coisa, e cantá-la uma oitava abaixo).
A braçadeira me permite pegar, por exemplo, as numerosíssimas músicas que sei tocar em ré maior (um dos meus tons preferidos para dedilhar), e transpô-las instantaneamente para qualquer um dos tons sucessivos: mi, fá, sol, etc. É um recurso para violonistas limitados. Você raramente vê um violonista de jazz ou de bossa nova usando braçadeira. Ela é típica da folk music norte-americana, por exemplo, porque esse gênero é pródigo em moças e rapazes bem intencionados, que querem se exprimir através da canção popular (e quem não quer?), mas só sabem tocar as músicas em ré maior. Sem braçadeira, não tinha show de Bob Dylan, de Joan Baez, de Peter, Paul & Mary, de Phil Ochs, de Donovan. Cada um subia no palco e tocava suas musiquinhas nos acordes de dó maior ou de ré, a noite inteira, variando os tons de acordo com o traste em que a braçadeira ia sendo afixada entre uma música e outra.
A subida de tom provocada pelo uso da braçadeira acarreta também uma mudança de timbre que os aficionados, como eu, acham muito agradável. O violão todo fica mais agudo, as cordas de aço soam de uma maneira mais metálica, e as cordas de nylon ficam soando quase como cordas de viola. Tudo soa com mais intensidade, e nesse caso a má afinação do violão, quando é o caso, chama muito mais a atenção do que num violão normal, com as cordas soltas. Curiosamente, é um acessório típico do violão acústico, e não consigo lembrar nenhum músico que costume usá-lo para tocar guitarra elétrica.
2184) Conversações de Borges (9.3.2010)
A Editora Hedra, de São Paulo (www.hedra.com.br) lançou, numa caixa com três pequenos e charmosos volumes, as conversações mantidas entre Jorge Luís Borges e o jornalista Osvaldo Ferrari para a Rádio Municipal de Buenos Aires, entre 1984 e 1985.
São ao todo 90 programas, ou capítulos, que resultam em três volumes com cerca de 230-240 páginas cada um. Seus títulos são enganosos: Sobre a Filosofia e outros diálogos, Sobre os Sonhos e outros diálogos e Sobre a Amizade e outros diálogos.
Cada volume traz 30 diálogos sobre assuntos diferentes, e, no interior de cada um deles, Borges e seu interlocutor passeiam com agilidade e leveza por tudo que lhes dá na cabeça. Sempre num tom ameno do qual não estão ausentes a crítica ferina, o aforismo espirituoso, o “insight” inesperado, a comparação surpreendente entre idéias e assuntos.
No volume sobre “Filosofia”, por exemplo, vemos Borges discorrer sobre os Estados Unidos, sua história, sua língua. Borges comenta que o México e o Estado de Michigan têm uma origem filológica semelhante através do termo intermediário “Michoacán”. Ao se referir ao “Deep South”, Borges observa que a tradução literal “Sul Profundo” não funciona, mas que “Sul Secreto” parece mais próxima do sentido da expressão inglesa.
No volume sobre “Sonhos”, ele faz pela enésima vez o elogio da literatura fantástica, dizendo que o realismo literário é “uma invenção funesta” e que “talvez desapareça”. E reafirma mais uma vez seu apreço pela fabulação, comentando as fábulas de Esopo (ou “dos gregos que chamamos Esopo”):
“Seria muito estranho que alguém começasse por algo tão abstrato como a moral, e que depois chegasse a uma fábula. Parece mais natural supor que se comece pela fábula”.
No volume sobre a “Amizade”, é curiosamente no diálogo sobre pintura que Borges, provocado por Ferrari, reafirma seu amor pela música: os “blues”, os “spirituals” e George Gershwin. Comentando o jazz, o escritor se sai com uma imagem surpreendente:
“Quando escuto jazz, o que me chama a atenção é que ouço sons que não ouço em nenhuma outra música, sons que parecem sair do fundo de um rio, não? Como se fossem produzidos por elementos distintos, sim, e isso determina uma riqueza, ter incorporado novos sons”.
Sou meio suspeito para elogiar Borges. Ele me parece o tipo ideal de erudito: o que pensa o tempo todo, o que não apenas lê livros mas compara as idéias desses livros, o que medita profundamente sobre o que faz um texto ser superior a outro, e que cita mil autores, não para exibir erudição, mas para demonstrar o quanto as idéias são costuradas por milhões de mentes humanas e podem ser acessadas de diferentes pontos, diferentes obras.
Os 90 diálogos destes livros (dos quais li apenas três para redigir esta coluna) certamente são 90 portas diferentes para o mesmo labirinto.
Jessier Quirino diz que o poeta é um “prestador de atenção”, e pouca gente terá prestado tanta atenção ao nosso mundo mental quanto Borges.
2183) Voz de cabeça raspada (7.3.2010)
Em 1968, Caetano Veloso defendeu num festival, sob vaias, a música “É Proibido Proibir”, vestindo roupas de plástico, acompanhado por guitarras e toda a parafernália tropicalista. Um dos elementos de choque usado por ele era a invasão do palco por John Danduran, “um gringo evidente, alto, muito branco, envolto num poncho hippie, sem um fio de cabelo em todo o corpo” (Verdade Tropical, p. 301).
Passou-se. Alguns anos atrás, Caetano, entrevistado no programa de Jô Soares, referiu-se a essa época, e Jô perguntou pelo gringo – quem era ele, por onde andava, etc. Caetano respondeu que depois dessa época John tinha retornado para os EUA, e completou: “Aliás, na minha última turnê pelos EUA conversei com ele, lembramos os velhos tempos, etc.” Jô perguntou: “É mesmo? E ele ainda continua com a cabeça raspada?” Caetano: “Sim, continua”. Jô: “Vocês se encontraram onde?” Caetano: “Na verdade não nos encontramos, ele telefonou para o hotel em que eu estava e batemos um papo”. Jô: “Se foi assim, como você sabe que ele estava com a cabeça raspada?” E Caetano: “Olha, Jô, não sei... mas ele estava com uma voz-de-cabeça-raspada danada!” A platéia morreu de rir e aplaudiu com entusiasmo.
A história acaba aí; vamos à análise. O que a motiva é o fato de que eu, pessoalmente, também gargalhei, e também tive vontade de aplaudir a resposta. E não foi por tietagem com Caetano. Se isso tivesse surgido num diálogo entre Sílvio Santos e Wando, eu aplaudiria do mesmo modo. Achei uma resposta excelente; por quê? Porque é puramente literária, não no sentido de linguagem elaborada, cheia de retórica. Literária no sentido de ser (lápis e papel na mão, por favor) “um uso inesperado e criativo da linguagem como resposta emotiva a uma situação psicologicamente instável”. No caso, para uma função de auto-ironia e auto-afirmação, por mais que as duas pareçam contraditórias.
Caetano percebeu que tinha dito uma coisa infundada, pois num mero telefonema não poderia saber se o cara estava de cabeça raspada ou não. Questionado, ele podia admitir o erro de maneira pedestre, normal: “Ih, pois é, foi mal, me equivoquei...”. Mas ele insistiu no erro através de uma afirmativa absurda (e imageticamente criativa). Foi uma saída auto-irônica (“vejam só a doidice que estou dizendo só para não dar o braço a torcer!”) e auto-afirmativa (“vejam só como eu não entrego os pontos”). O público gargalhou e aplaudiu porque a imagem absurda produzida foi a vitória da imaginação, um gesto puramente emotivo (de auto-defesa verbal) sem o menor apelo à razão ou à lógica. Uma volta-por-cima depois do tombo. Gestos assim fazem parte de nossos diálogos em bar, colégio, praia, reunião de amigos, papo de escritório, mesa de almoço. Surgem onde quer que alguém invente uma maluquice inesperada para reconhecer um erro reafirmando-o “ad absurdum”, o que é literariamente mais satisfatório do que meramente admitir que errou.
2182) “Os Estranhos” (6.3.2010)
Neste filme de terror, escrito e dirigido por Bryan Bertino em 2008, um casal jovem, James (Scott Speedman) e Kristen (Liv Tyler) resolve passar a noite na casa de campo dos pais dele. O casal está ligeiramente em crise, porque James acabou de pedir Kristen em casamento e ser recusado. Ela dá mostras de gostar dele, mas casamento não está nos seus planos. Os dois chegam à casa, tomam champanhe, meio sem assunto, pois nada está acontecendo de acordo com o que ele planejava. E de repente, às 4 da manhã, pessoas estranhas começam a bater na porta, a tentar entrar à força na casa, e o terror começa.
O filme não tem a pornografia-de-violência com que se delicia tanto o cinema de hoje: membros decepados, mutilações explícitas, etc. Não se trata de Jogos Mortais ou O Massacre da Serra Elétrica. Toda a narrativa é baseada na desinformação do casal sobre o que está acontecendo. Quem são aquelas pessoas? O que querem elas? Por que vieram justamente para ali? Do que são capazes? Encurralados na casa, eles tentam se proteger e se defender à espera de que o dia amanheça e a normalidade das coisas retorne. O filme, a partir dos primeiros ataques, parece acontecer quase em tempo real. As violências se sucedem, cada vez mais próximas, e a gente tem a sensação de que o dia não vai amanhecer nunca – que é justamente o que as vítimas sentem em situações assim.
O melhor terror (dizem) sugere em vez de mostrar. O ser humano é um animal que foge de predadores há um milhão de anos. É cheio de antenas ligadas em todas as direções para captar o mais leve sopro de perigo. Essas antenas são retráteis, como as unhas dos gatos, e no dia-a-dia elas se recolhem a uma hibernação provisória. Para reaparecerem, basta estarmos num lugar remoto, altas horas da noite, olhando pela vidraça e vendo três pessoas mascaradas marchando na direção da casa. Desse momento em diante, qualquer sopro de vento, qualquer estalido da madeira, qualquer flutuar de cortina nos faz dar um pinote de dois metros de altura. (E a platéia do cinema pinota junto.)
Se me perdoam a comparação bárbara, eu diria que acontece com o medo algo semelhante ao que acontece com a excitação sexual. Os manuais conjugais dos anos 1950 nos advertiam que era contraproducente passar logo aos “finalmentes” sem uma preparação prévia, pois o corpo humano tem as chamadas zonas erógenas, que precisam ser estimuladas para que os finalmentes atinjam um máximo de intensidade. Ocorre o mesmo com o medo numa narrativa de terror. De nada adianta o filme ficar fazendo um cerca-lourenço inócuo e de repente o monstro saltar pela vidraça adentro. Qualquer pequeno susto ganha em intensidade se previamente trabalhado mediante ruídos estranhos, ângulos tortos ou movimentos inexplicáveis de câmara, inquietações que só se dissipam em parte, farfalhar de folhas, tiquetaques de relógio... Maior a tensão, maior a descarga. E as possibilidades, como sempre, são infinitas.
2181) José Mindlin (5.3.2010)
Faleceu dias atrás um dos maiores bibliófilos brasileiros, o industrial José Mindlin. Tinha uma das maiores bibliotecas particulares do Brasil, e há alguns anos, depois que completou os 80, doou grande parte dela à USP. Mindlin era um desses colecionadores que buscam o livro raro, o livro único, o livro que tem importância não só pelo seu texto ou sua edição, mas pelas peripécias que cercam sua existência. Seu livro de memórias Uma Vida Entre Livros (Edusp/Companhia das Letras, 1997) é uma jóia para se reler e folhear, contendo dezenas de reproduções de capas, folhas de rosto, dedicatórias, autógrafos, manuscritos, documentos, mapas... Além de fotos de estantes cheias de livros, que para mim estão entre as imagens mais bonitas que existem (cada lombada de um livro na estante é um portal para outros mundos). E de um relato franco, divertido, inteligente, do que é conviver a vida inteira com os livros e seus autores.
Mindlin era uma dessas pessoas de quem todo mundo gosta. Vários amigos meus visitaram sua casa-biblioteca em São Paulo, e falam do jeito afável com que ele acolhia qualquer amante de livros que o visitava. Não o conheci pessoalmente, embora tenhamos trocados alguns emails anos atrás, em função de um artigo que publiquei num jornal de São Paulo, e que lhe agradou. Eu sempre pensava em marcar um dia e aparecer lá, para dois dedos de prosa e para entrar na biblioteca, mas nunca o fiz. Tive medo de, tomado por um impulso, puxar duma arma, sequestrar Mindlin e sua esposa D. Guita, barricar por dentro as portas e janelas, entrincheirar-me e negociar resgates absurdos com a Polícia, quando o que queria mesmo era alojar-me ali para sempre e desfrutar dos livros. O Destino e minha indolência nos pouparam desta cena tarantinesca.
Mindlin afirmava reiteradamente que nunca foi apenas um cara que compra livros raros, mas um cara que gostava de ler, e que sempre achou tempo para ler no meio de seus afazeres (foi um dos sócios da indústria Metal Leve, foi Secretário de Cultura de São Paulo, teve cargos na Fiesp, na Fundação Getúlio Vargas, etc etc). Nada é desculpa para não ler, e mesmo o mais atarefado dos executivos pode separar uma hora por dia para a leitura calma e atenta – basta gostar, basta querer. Diz ele: “Não importa o que se leia de início, porque, uma vez criado o gosto, ele se refina. (...) O principal desses obstáculos é o tempo. Por mais que se leia, não se consegue ler tudo o que se deseja, e, por isso mesmo, a seletividade se impõe. Mas cada um deve fazer sua própria escolha, ou, mesmo que siga alguma das numerosas listas de livros tidos como os mais importantes, ninguém deve se ater a critérios rígidos, nem se considerar culpado de grandes pecados por ocasionais desvios, passando de Machado de Assis a Asterix, ou de Shakespeare a Agatha Christie: é bem possível que Machado e Shakespeare tenham lido os Asterix ou Agatha Christies de seu tempo, que aliás têm também boas qualidades”.