quinta-feira, 29 de abril de 2010

1975) “Spook Country” (8.7.2009)



O romance mais recente de William Gibson mostra que o criador do movimento cyberpunk está cada vez mais longe da ficção científica tradicional, fazendo literatura “mainstream” sobre um mundo transformado pela tecnologia. Gibson não mais escreve sobre realidade virtual, sobre ciberespaço, sobre mentes plugadas nos computadores. Seus personagens continuam sendo fetichistas tecnológicos, mas suas aventuras acontecem “aqui fora”. Spook Country (que tanto pode ser “País dos Fantasmas” como “País dos Espiões”) é um thriller de espionagem em que a tecnologia tem um papel essencial. Não é um livro de ficção científica. É um romance realista sobre um mundo que foi irremediavelmente transformado pela ficção científica e pela ciência.

Como em todo livro de Gibson, os capítulos se alternam em linhas narrativas convergentes. São três grupos de personagens, que não interagem entre si, mas fazem parte, todos, da mesma história. De vez em quando, seguindo a linha narrativa “A”, temos um vislumbre dos personagens da linha “B”, vistos através dos olhos daqueles. Pouco a pouco, vai se desenhando uma trama. Algo está para acontecer. Alguns personagens trabalham para que aconteça, e outros trabalham para evitá-lo. Alguns deles têm um papel importante na trama mas não têm uma compreensão geral do que está havendo, e em geral são estes que servem de pontos-de-vista para Gibson. O leitor os acompanha, e compartilha suas descobertas, perplexidades e revelações.

Um dos “gimmicks” mais gibsonianos deste romance é a Arte Locativa, uma mistura de realidade virtual com GPS. Os artistas produzem um programa que superpõe imagens a uma paisagem real qualquer; estas imagens só podem ser vistas com um sistema de capacete e óculos especiais, com uma antena que recebe e transmite coordenadas GPS via satélite. Indo numa determinada praia de Los Angeles, o espectador coloca o capacete, liga o botão... e vê o corpo de uma Estátua da Liberdade emergindo das águas. Essa imagem só é visível para quem esteja precisamente naquelas coordenadas: mesmo com o capacete, se o observador se afastar dali algumas dezenas de metros deixa de receber o sinal, a obra deixa de ser visível.

Num dos primeiros capítulos, um personagem diz: “Tudo começou em 1o. de maio de 2000. O governo desligou o sistema de Disponibilidade Seletiva, e as coordenadas de GPS, do posicionamento global por satélite, ficaram pela primeira vez ao alcance de qualquer civil.” O resultado mais prático disto é já termos, por exemplo, táxis com aquele pequeno visor onde aparece um mapa mostrando onde estamos e para onde estamos indo. Rastreamentos desse tipo aparecem o tempo inteiro em “Spook Country”, o que leva um personagem a dizer que “o ciberespaço está sendo virado pelo avesso”, ou seja, ele não reside mais “lá dentro”, mas ajuda as pessoas a navegarem “aqui fora”, e se superpõe (como na Arte Locativa) às próprias imagens que enxergamos com os olhos.

1974) “Profanação”(7.7.2009)



A TV a cabo exibiu este filme de Jules Dassin, de 1962, que já tentei assistir no cinema mas era proibido para menores de 18 anos. Hoje passou na TV proibido para doze. Alguns detalhes justificam em parte essa censura: um caso de incesto (madrasta e enteado se apaixonam) e uma sugestão de lesbianismo. Diante do que vemos nos cinemas em 2009, é um filme quase puritano. Até mesmo pela mensagem do seu final, que, como em qualquer tragédia grega, pune os transgressores com a morte.

Dassin foi um cineasta transnacional. Nascido nos EUA, filho de um judeu russo, tornou-se cineasta, foi perseguido pelo macartismo, mudou-se para a França onde fez nova carreira, e depois criou uma ligação muito forte com a Grécia, onde fez numerosos filmes, alguns deles com sua esposa grega Melina Mercouri. O roteiro de Profanação (cujo título original é “Phedra”) se inspira superficialmente numa peça de Eurípides (Hipólito). Fedra (Melina Mercouri) é casada com o armador grego Thanos (Raf Vallone) e se apaixona pelo seu filho Alexis (Anthony Perkins). Os dois têm um caso. Ela não pode se divorciar, pois isto seria a ruína do marido (que depende do dinheiro do pai dela). Alexis se revolta e passa a desprezá-la. Ela volta a persegui-lo. No final, todos saem perdendo.

Dassin é um cineasta de narrativa tradicional, criando imagens de valor simbólico mas justificadas pelo contexto. A festa noturna em que os convidados atiram pratos brancos ao mar; Alexis ferido deitando-se sob uma torneira aberta para lavar o sangue; Thanos e Alexis subindo num andaime e contemplando os enormes navios em construção. Objetos adquirem valor simbólico: Alexis chama de “my girl” o carro em que morrerá no final, e o naufrágio do navio “Fedra” anuncia a destruição da personagem.

Profanação pertence a um gênero cinematográfico que floresceu nos anos 1960, a Tragédia Amorosa da Burguesia Européia. Nunca os desencontros amorosos dos milionários europeus foram descritos com tanta beleza plástica e tanta impiedade, antes ou depois. Antonioni (quase toda sua obra na época), Fellini (Doce Vida), Resnais (Marienbad), Pasolini (Teorema), Visconti (vários filmes), e inúmeros outros cineastas deram à burguesia capitalista daqueles tempos uma importância cósmica semelhante à que tinham os reis e as rainhas no teatro elizabetano. Ou na tragédia grega, que no caso deste filme serviu de inspiração direta.

Não vejo hoje em dia muitos filmes com essa temática. É uma mitologia que os intelectuais europeus cultivaram com fascinação, como se vissem um significado transcendental naquelas pessoas riquíssimas, frias, ressecadas por dentro, tempestuosas e cruéis, hedonistas e introvertidas, consumidas pelo torpor de quem pode tudo mas não deseja nada. Filmes assim encorparam o “cinema de autor” daquele tempo. Por alguma razão misteriosa deixaram de ser feitos, não sei se por falta de artistas à altura ou por esgotamento do tema.

1973) Os castigos eternos (5.7.2009)



Na infância, amedrontavam a gente com o Inferno através da descrição de torturas físicas horrorosas. As aulas de Religião nos ameaçavam com o Fogo Eterno, em que nossas almas iriam arder para sempre, caso a gente morresse em pecado. Um dia, um aluno mais blasê retrucou: “Eu não ligo, porque é a alma, alma não sente dor”. A freira o fuzilou com o olhar: “Pois fique sabendo que quando a alma está no fogo do Inferno ela sente muito mais dor do que o corpo! E o que é pior: não morre! É um fogo tão grande que o corpo não ia aguentar nem um minuto, mas como a alma é imortal, ela queima ali eternamente!” Era o quanto bastava para de noite eu cair de cama e arder numa febre antecipatória.

Teólogos adultos são mais sofisticados. Dizem-nos que “o Inferno é a ausência de Deus”, o mais intolerável dos castigos. Imagino que para uma pessoa religiosa a ausência de Deus deve provocar uma Náusea, uma ausência de sentido nas coisas, mil vezes maior do que a do protagonista do livro de Sartre quando olha para a raiz de uma árvore e percebe que ela não significa nada, apenas está ali, e isso é tudo. Será que este castigo é mesmo o mais cruel de todos? Parece ser assim para Neil, o protagonista do conto “Hell is the absence of God”, de Ted Chiang (2001), no qual ele vai parar no Inferno, um lugar de onde Deus está ausente a ponto de não saber que Neil está ali. Diz o autor: “Neil sabe que, estando fora da percepção de Deus, seu amor por Ele não é retribuído. Isto não afeta os seus sentimentos, porque o amor incondicional nada pede em troca, nem mesmo reciprocidade. Mas ele continua a amar Deus, pois essa é a natureza da verdadeira devoção”.

Espíritos céticos, no entanto, continuam a se alinhar com a opinião daquele meu colega blasê da escola. É o caso de Oscar Wilde e sua famosa frase: “Livre-me Deus da dor física, e pode deixar que da dor espiritual eu mesmo me encarrego”. Tem razão, em parte. Quando eu tinha 12 anos tive uma dor de dentes que durou dias, tão violenta que pensei em me suicidar. Em alguns momentos o medo de ir para o Inferno me detinha. Em outros eu pensava: “Dane-se o Inferno, eu quero é acabar com essa dor!” E então me veio a idéia salvadora. Compreendi que o Inferno era aquela mesma dor – só que em todos os dentes ao mesmo tempo, e por toda a Eternidade. Essa noção pode ter salvado minha vida.

E tem a história de Rudyard Kipling dando conselhos ao jovem escritor Ford Maddox Ford, então um garoto. “Se você for bom, Fordie”, disse ele, “irá um dia para um lugar cheio de nuvens e de harpas. Você vai sentar numa nuvem e cantar hinos em louvor ao Senhor, para sempre, e sempre, e sempre. Você vai vestir eternamente uma túnica branca, e estará cercado por criaturas parecidas com sua mãe, só que todas têm asas. Mas se você for um menino mau...” Aí ele fazia uma pausa ameaçadora e concluía: “Se você for mau, vai parar num lugar muito, muito pior do que esse”.

1972) A Jovíssima Guarda (4.7.2009)



Os puristas irão torcer o nariz diante do superlativo do título, mas sinto muito, a Língua se faz com “a contribuição milionária de todos os erros”, como disse Oswald de Andrade. Passemos ao assunto. Vi dias atrás, pela primeira vez, um show do Skank, o que não deixa de ser surpreendente, pois o grupo mineiro está na estrada há pelo menos uns quinze anos. Não é um dos meus preferidos. As bandas do Rock Brasil que sempre ouvi com prazer são Paralamas, Titãs e Barão Vermelho. Mas por trás destas existem, ou existiram, pelo menos umas vinte em cujo rock em vejo qualidades, mesmo quando tende para o lado bobinho do Kid Abelha ou o lado truculento do Sepultura.

O que ficou martelando com insistência no meu juízo, durante o show do Skank, foi a enorme distância entre essas bandas e as bandas que eu próprio ouvi no começo da adolescência, nos tempos da Jovem Guarda. Muita gente vê a Jovem Guarda com nostalgia, dizendo que “eram tempos mais puros”, e reclama que o rock dos anos 1980 em diante foi um movimento comercialesco, manipulado pelas gravadoras multinacionais. Parece. Mas não é.

Vejo com o maior carinho a Jovem Guarda dos anos 1960. Se deixarem, sou capaz de pegar o violão e tocar 50 músicas seguidas sem errar a letra. Bom ou mau, aquilo fez parte da minha formação, e sou capaz de me despir de qualquer intenção crítica ao cantar músicas de Wanderléia, Golden Boys, Renato e Seus Blue Caps, Os Vips, Jerry Adriani, Bobby de Carlo... São bobinhas? Sem dúvida. Mas eu as conheci numa época em que era tão bobinho quanto elas. Tocá-las e cantá-las, de misturada com a MPB e o Tropicalismo nascentes, dava a sensação de lidar com algo confortavelmente unidimensional.

Com poucas exceções, as letras da Jovem Guarda eram no nível mental dos gibis de Luluzinha ou Pato Donald. As versões, comparadas aos originais, eram de uma vacuidade assombrosa. E vejam, naquele tempo as gravadoras mandavam e desmandavam, embora comparadas às dos anos 1980 fossem tão bobinhas quanto os intérpretes. O Rock Brasil dos anos 1980 em diante, mesmo num ambiente de gravadoras muito mais multinacionais e poderosas, teve um lado de rebeldia e de “atitude” que a Jovem Guarda nunca foi capaz de sonhar. Sendo uma cópia ou transcrição do rock que se fazia fora, o Rock Brasil copiou também muitas coisas boas daquele rock. Não apenas o vigor eletrificado e a postura desafiadora, mas uma consciência crítica nas letras, uma disposição de dizer verdades incômodas, uma irreverência que, mesmo diluindo-se com frequência em mera “atitude”, produziu canções notáveis que ainda hoje são lembradas e cantadas.

Comparados aos ingênuos rapazes de franjinha e às mocinhas de minissaia da Jovem Guarda, os roqueiros dos anos 1980 fizeram rock de verdade, um similar nacional que imitou com sucesso as qualidades do original estrangeiro. Comparado a eles, a Jovem Guarda foi algo tão infantil quanto o repertório de Xuxa e Angélica.

1971) O automóvel e o petróleo (3.7.2009)




Michael Moore, o cineasta de Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/11, publicou uma carta aberta sobre a estatização da General Motors, a maior e mais tradicional fábrica de automóveis dos EUA, cuja “quebra” obrigou o governo a absorvê-la para evitar prejuízos maiores. 

Passei a vida vendo a imprensa brasileira criticar o nosso capitalismo subdesenvolvido, comparando-o ao capitalismo moderno dos EUA. Diziam que nos EUA o capitalismo era capitalismo mesmo, era uma iniciativa de risco, onde era possível ter lucro ou prejuízo. 

No Brasil, ao contrário, predominava a mentalidade paternalista em que quando uma empresa dava certo o lucro era seu, e quando dava errado o prejuízo era absorvido pelo Governo, ou seja, era pago pelo bolso do contribuinte. 

A enxurrada de estatizações de empresas nos EUA e na Europa parece dizer que o problema não é brasileiro, é uma coisa que está no DNA do capitalismo. Quando perdem dinheiro em suas aventuras financeiras, eles exigem que o povo pague seus prejuízos. 

Diz Michael Moore: 

“Assim como o Presidente Roosevelt fez depois do ataque a Pearl Harbor, o Presidente (Obama) deve dizer à nação que estamos em guerra e que devemos imediatamente converter nossas fábricas de carros em indústrias de transporte coletivo e veículos que usem energia alternativa. Em 1942, depois de alguns meses, a GM interrompeu sua produção de automóveis e adaptou suas linhas de montagem para construir aviões, tanques e metralhadoras. Esta conversão não levou muito tempo. Todos apoiaram. E os nazistas foram derrotados. Estamos agora em um tipo diferente de guerra - uma guerra que nós travamos contra o ecossistema, conduzida pelos nossos líderes corporativos. Essa guerra tem duas frentes. Uma está em Detroit. Os produtos das fábricas da GM, Ford e Chrysler constituem hoje verdadeiras armas de destruição em massa, responsáveis pelas mudanças climáticas e pelo derretimento da calota polar. 

"As coisas que chamamos de ‘carros’ podem ser divertidas de dirigir, mas se assemelham a adagas espetadas no coração da Mãe Natureza. Continuar a construir essas ‘coisas’ irá levar à ruína a nossa espécie e boa parte do planeta. A outra frente desta guerra está sendo bancada pela indústria do petróleo contra você e eu. Eles estão comprometidos a extrair todo o petróleo localizado debaixo da terra. Eles sabem que estão ‘chupando até o caroço’. E como os madeireiros que ficaram milionários no começo do século 20, eles não estão nem aí para as futuras gerações. 

"Os barões do petróleo não estão contando ao público o que sabem ser verdade: que temos apenas mais algumas décadas de petróleo no planeta. À medida que esse dia se aproxima, é bom estar preparado para o surgimento de pessoas dispostas a matar e serem mortas por um litro de gasolina. Agora que o Presidente Obama tem o controle da GM, deve imediatamente converter suas fábricas para novos e necessários usos.”





1970) "Oito e Meio" de Fellini (2.7.2009)



Fui rever este filme num curso que está ocorrendo no Rio, “História da Filosofia em 40 Filmes”, ministrado por Alexandre Costa e Patrick Pessoa. Entrada franca, mas mesmo assim me surpreendi em ver mais de 300 pessoas, às 10 da manhã de um sábado, vendo e debatendo filmes de arte. A vida presta! Melhor ainda rever este filme em tela grande, reencontrar as imagens de Fellini, que faz com o preto-e-branco o que João Gilberto faz com a voz-e-violão.

Oito e Meio (1963) já foi descrito, na época de seu lançamento, como “o filme mais hermético da história do cinema”. Vi-o pela primeira vez no Capitólio, quando era um cineclubista de 18 anos, com as mãos banhadas de suor frio, com “medo de não entender”. Teria sido difícil, porque já lera o que uma dúzia de críticos tinham a dizer a respeito. Quando surgiu aquele túnel silencioso, aquele engarrafamento de trânsito, aqueles automóveis asfixiantes, e quando Marcello Mastroianni, todo vestido de preto, emergiu do carro e começou a flutuar, elevando-se nos ares, tudo desapareceu. Elevei-me nos ares, eu também, e deixei-me levar por duas horas ao longo daquela galeria de rostos deformados por uma grande angular, de ambientes insólitos, de mulheres sensuais e cafonas, de cançonetas, mágicos de salão, querelas conjugais... E ao fundo de tudo, uma imensa plataforma de lançamento de um foguete espacial. Para que? Talvez um resíduo do tempo em que Fellini traduzia baluns das histórias em quadrinhos de Flash Gordon.

Não existe coisa mais chata do que um livro a respeito de um escritor que tenta e não consegue escrever um livro. Não conheço nenhum que preste. Por outro lado, um filme sobre as atribulações de um cineasta que tenta fazer um filme é algo fascinante. Por que? Não sei. Mas aí estão O Desprezo (Godard), Noite Americana (Truffaut), O Estado das Coisas (Wim Wenders) e tantos outros filmes de fascínio inesgotável. Lembro-me que quando vi pela primeira vez o filme de Truffaut, há mais de trinta anos, escrevi algo mais ou menos assim: “É um filme que desvenda todos os truques e todos os segredos técnicos de como os filmes são feitos, e torna isso ainda mais misterioso e fascinante do que era antes”. Não acho necessário mudar uma letra sequer.

Numa crítica publicada quando do lançamento de 8 ½, Truffaut disse: “A acreditar em Fellini, um diretor é antes de tudo um homem a quem todos incomodam, de manhã, de tarde, de noite. Fazem-lhe perguntas que ele ou não sabe ou não quer responder. Sua cabeça está às voltas com mil idéias contraditórias, impressões, sentimentos, desejos em botão, e no entanto todo mundo lhe pede certezas, nomes precisos, números exatos, lugares, cronogramas”. Não há dúvida de que o filme de Fellini foi uma grande inspiração para que Truffaut fizesse Noite Americana dez anos depois, dando a sua versão pessoal da Arte de Padecer no Paraíso.

1969) Resposta de nordestino (1.7.2009)



“Quais foram as leituras básicas da minha infância? Ih, esta entrevista está começando bem. Estou vendo que vocês querem coisas do fundo do baú. Bem, infância você sabe como é. A gente não escolhe o que vai ler, ou melhor, a gente lê o que tem à mão. Nesse sentido eu tive uma infância privilegiada. Não porque foi uma infância rica, com tudo entregue de bandeja. Meus pais passaram dificuldades, mas nunca faltou o básico. E básico inclui leitura, não é mesmo? O grande problema da infância de hoje, principalmente na classe média alta, é que está havendo uma industrialização da infância. Criança não lê, não brinca. É um verdadeiro treinamento que elas recebem: judô, natação, inglês, violão... A criança é vista como um pré-profissional, alguém em processo de profissionalização, que aos 10 anos já está se preparando para competir no mercado, para fazer sucesso... Novos tempos!

“Existe uma coisa que eu acho essencial: saber brincar. O tal do espírito lúdico. A criança não pode ficar condicionada a esse negócio de pra quê que vai servir. Criança tem que descobrir as coisas movida pela própria curiosidade dela. Se botar aquilo como obrigação, não dá em nada. Se você obrigar uma criança a fazer uma conta de somar, ela vai levar meia hora, vai ficar mordendo o lápis, balançando a perna, olhando pela janela. Mas se ela ganha um jogo de armar, passa a mesma meia hora montando e desmontando o negócio até entender como funciona, e ai de você se tentar montar também, porque provavelmente não vai conseguir. Criança é movida a curiosidade. E quem diz curiosidade diz brincar, diz: isto parece com isso, que dá certo com aquilo, que me lembra aquilo-outro... E não tem mais fim.

“Leitura é a mesma coisa. É preciso deixar por perto, elogiar em voz alta para alguém para que a criança ouça. Dar risadas enquanto lê um livro. Dizer para alguém; “Não sei se vou dormir direito hoje... fiquei muito impressionado com o que eu li nesse livro!” E deixar o livro de bobeira, como que por acaso, em cima da mesa da sala. Criança não quer o que os adultos procuram forçar para dentro do seu mundo. Quer o que faz parte do mundo dos adultos e lhes é vedado.

“Me lembro de meu avô, que lia a Bíblia em silêncio, depois fechava com uma pancada seca e dizia: ‘Isso não é coisa que se faça com um filho de Deus!’ Eu ficava me roendo de curiosidade de saber o que era. A Bíblia é uma grande influência, mas o defeito dela é que não é um livro, é uma biblioteca inteira. Ali a gente acha o que procura e o que não procura, acha guerra, violência, intriga, história, geografia, sacanagem... Sim, sacanagem, vejam a história de Noé com as filhas, vejam Sodoma e Gomorra... criança fica de olho, não perde uma chance. Não que eu tenha lido muito a Bíblia, meus interesses eram outros. Como é mesmo a pergunta? Minhas leituras básicas? Pode botar aí: Monteiro Lobato, Malba Tahan... E a Bíblia. Pra dar credibilidade, né?”

1968) Bafana Bafana (30.6.2009)



A simpática seleção da África do Sul, comandada por Joel Santana, deu um calor no Brasil na partida semi-final da Copa das Confederações. Só nos classificamos nos últimos minutos, com um gol de falta de Daniel Alves , num desfecho que foi uma ameaça à condição cardíaca de qualquer torcedor. Há rumores de que Michael Jackson estava vendo esse jogo e não resistiu à emoção. Os Bafana Bafana (apelido que significa “os meninos”) mostraram as qualidades e os defeitos de qualquer seleção da África. Nunca isso foi tão claro quanto na decisão do terceiro lugar, quando perderam para a Espanha, num jogo que bastava ter um pouco de malícia e experiência para ter ganho por 1x0.

Já o Brasil, no jogo final, enfrentou a zebra dos EUA, que surpreendeu a Espanha e veio para cima do Brasil com um esquema bem montado, jogadores aplicados e velozes, com certa habilidade. Se os EUA continuarem investindo no “soccer”, talvez nunca cheguem a ter um time que se equipare a Espanha ou Itália, mas nada impede que, ao seu estilo atlético, batalhador, com muita aplicação tática, possam vir a ter no futuro equipes comparáveis a certas boas seleções que Alemanha ou Inglaterra já tiveram.

Os ianques botaram 2x0 no 1º. tempo e foram para o vestiário já mascando o chiclete da vitória. Do jeito que sabem se defender – provaram isso contra a Espanha – não era difícil que conseguissem bloquear o ataque brasileiro por mais 45 minutos e saíssem dali com a taça. O destino foi cruel com o time americano. Fê-los provar as altitudes inebriantes do triunfo, apenas para jogá-los de volta no vale das lamentações.

Os 2x0 no 1º. tempo não foram justos – o Brasil dominava o jogo, finalizava mais, só que tomou dois gols por descuido. O que nos salvou, além da mexida que Dunga fez no intervalo, foi o gol de Luís Fabiano com um minuto do 2º. tempo. Reduzindo a vantagem do adversário para um gol, ele permitiu que o Brasil se acalmasse, visse o empate como um objetivo alcançável a curto prazo, e a vitória idem um pouco mais adiante. Se esse primeiro gol só tivesse saído aos 20 minutos, não sei se seria a mesma coisa.

Fabiano fez o segundo, e tiro o chapéu para ele. Não o considero um grande jogador, não é um dos melhores atacantes brasileiros da atualidade, mas bem ou mal é ele quem tem feito gols decisivos para a Seleção de Dunga. Tem estrela, está vivendo o momento certo no lugar certo, e quando isso acontece, meu amigo, melhor deixar dez ronaldos no banco. Jogador que está dando certo é titular absoluto.

Lúcio fez o gol da vitória na única bola cruzada pelo alto que resultou numa cabeçada rumo ao gol. No segundo tempo, o Brasil não foi tecnicamente brilhante mas fez o que todo time grande tem obrigação de fazer quando decide um título com um adversário mais fraco: ir para cima, se impor, martelar, pressionar, jogar com autoridade, aplicação, e, principalmente, ousadia. Ah, se já estivéssemos em 2010! Mas daqui a um ano muita coisa pode mudar.

1967) Antonio Cândido e as frivolidades literárias (28.6.2009)





(Antonio Cândido)

Jornalistas gostam de elaborar listas dos “Dez Melhores do Ano”, construir tabelas comparativas, item por item, entre dois tipos sociais (“O Carioca x O Paulista”, “O Conectado x O Gutemberguiano”) ou fazer pequenos testes de trivialidades: Em que filme de Hitchcock ele aparece através de uma porta envidraçada? Qual o diretor famoso que faz uma ponta em Contatos Imediatos? Qual o livro de poemas que Anna Karina está lendo em Alphaville?

Uma função dessas brincadeiras é serem brincadeiras mesmo, atividades sem utilidade prática realizadas num contexto de pouca tensão. 

Outra envolve um certo exibicionismo: quer apostar que eu sou mais bem informado do que você, conheço mais detalhes sobre algo que nós dois apreciamos? 

Outra envolve esse fetichismo inocente de quem sente prazer em extrair, de uma obra que lhe dá prazer, a derradeira gota de significado ou de informação, por mais irrelevante que seja.

Em seu livro O Albatroz e o Chinês, num ensaio intitulado “Dos livros às pessoas”, Antonio Cândido faz uma comparação entre as personalidades e os estilos de Machado de Assis e Eça de Queiroz, e relembra seus tempos de estudante e jovem intelectual, num ambiente – princípio do século XX – que comparado ao mundo de hoje é de uma notável sobriedade. Ainda assim essas atividades um tanto frívolas não eram estranhas aos leitores da época. Diz Cândido:

“Machado era menos lido, menos conhecido e menos estimado. Sobretudo, menos incorporado aos hábitos mentais. De fato, muitos sabiam de cor trechos dos livros de Eça e os seus personagens eram comentados como gente viva. No ginásio e na universidade fazíamos estes testes divertidos de conhecimento, como: 

"Quem, e em que romance, é visto com seus bigodes louros no fundo de uma frisa? Qual o personagem cujo alfinete de gravata é um macaco comendo uma pera? Qual a cor da gravata de André Cavaleiro quando jantou pela primeira vez na casa dos Barrolos? Que autor Jorge está lendo no começo d’O Primo Basílio? 

"Machado nunca teve esse tipo de popularidade, por ser menos pitoresco e menos aberto, o que não quer dizer que seja maior ou menor. É uma questão de naturezas literárias diferentes que tornam difícil a avaliação comparativa, como também nos casos de Stendhal e Balzac, Dostoiévski e Tolstoi, Proust e Joyce”.

Esta pequena rememoração dá um perfil curioso da época da juventude de Cândido. Vê-se que os romances de Eça não apenas eram lidos em grupo – ou seja, todo mundo lia os mesmos livros no mesmo tempo – mas eram relidos, quase que decorados, a ponto de ser possível fazer perguntas com esse grau de minúcia, pois se alguém as fazia era porque sabia a resposta, e porque confiava que algum outro leitor as saberia também. 

Uma brincadeira inconsequente que hoje em dia se repete no âmbito de livros como os da série Harry Potter ou O Senhor dos Anéis. Literaturas que despertam o impulso lúdico e afetivo, tanto quanto o intelectual e analítico.