Conta-se que na antiga China, um caso grave foi levado ao Imperador. Num acampamento onde havia seis soldados, um amanheceu morto, e o criminoso só podia ser um dos outros cinco. O que fazer? O monarca cofiou as pontas dos bigodes e disse: “Executem os cinco. Assim teremos certeza de que a justiça foi feita.” Um ministro advertiu: “Mas, Majestade! E os quatro inocentes?” E ele: “A morte deles pesará também sobre o assassino, por não ter confessado. Assim, torturem todos antes de matá-los, para termos certeza de que ele recebeu a punição merecida.”
Não é muito diferente da solução encontrada por Herodes, no Evangelho Segundo Mateus. Não podendo identificar quem seria o rei dos judeus recém-nascido, mandou matar todos os bebês com menos de dois anos. A “Solução Herodes” é um tipo de solução a que muitas vezes recorremos na vida prática, quando, incapazes de identificar a alternativa que soluciona um problema, experimentamos cegamente todas as possibilidades até esbarrar na resposta certa. Na decifração de códigos, por exemplo, isto é conhecido como o método da “força bruta”: usar todas as substituições. O aparente absurdo desta estratégia foi atenuado com a evolução de computadores que executam bilhões de cálculos num curto espaço de tempo.
O filme Enigma (2001) de Michael Apted mostra como os ingleses “quebravam” os códigos nazistas na II Guerra. Cabia a um grupo de gênios matemáticos ter intuições que reduziam o número de combinações a serem testadas, para que os computadores mecânicos da época (numa fascinante reconstituição técnica) usassem a força bruta apenas na área delimitada por eles. Força bruta, sozinha, não resolve, como qualquer jogador de xadrez sabe desde a infância. Seria impossível hoje matar todos os bebês de um país para evitar o nascimento do Messias. Arnold Schwarzenegger, no primeiro filme da série O Exterminador do Futuro, vem a nossa época com a incumbência de matar “Sarah Connor”, a mãe do futuro líder rebelde. Como uma máquina que se preza, a solução que ele encontra é sair matando todas as “Sarahs Connor” que encontra na lista telefônica. São apenas três, mas o roteiro vem em socorro da mulher certa antes que ele a execute.
Na ficção científica, a “Solução Herodes” surge em contos como “Os Nove Bilhões de Nomes de Deus” de Arthur C. Clarke, onde um computador combina todos os nomes possíveis de Deus, e deleta o Universo. Sua inspiração original é a velha frase (que já resultou em muitas histórias): “Se déssemos máquinas de escrever a seis macacos, depois de um milhão de anos teclando ao acaso eles escreveriam todos os livros do Museu Britânico.” Jorge Luís Borges (em “O imortal”) dizia que Homero compôs a Odisséia, mas, postulando um prazo infinito, seria impossível alguém não compor a Odisséia. O Universo em que vivemos pode ser uma tentativa de Deus de dizer alguma coisa que faça sentido, usando o método da força bruta.
Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 7 de março de 2008
0089) A arte dos sonhos (4.7.2003)
Eu estava num bairro distante em Campina, como se fosse Zé Pinheiro ou Odon Bezerra. Era a hora do por-do-sol, e eu estava parado, olhando na direção do oeste.
O céu era de um azul que começava a esmaecer, e eu via um daqueles crepúsculos largos, horizontais, que Campina tantas vezes tem, com icebergs de nuvens, rubros e dourados, espalhando-se de ponta a ponta.
Então, vinha uma nuvem diferente pelo céu. Todas as outras nuvens estavam paradas, como pirâmides à espera de que o Tempo acabasse de desfilar diante delas; mas esta nuvem vinha se movendo em trucagem de câmara-acelerada, vinha se enovelando e desenovelando, borbotando formas de dentro de si como um cacho de bolhas de espuma que um menino soprasse por um talo oco de mamoeiro.
A nuvem era diferente também por causa de sua cor, que era cor de madeira escura, madeira de móveis de igreja, madeira de estantes de farmácia antiga, madeira de biblioteca. Essa nuvem vinha passando pelo céu, como se fosse um redemunho que furtasse substância às outras nuvens em redor e desse uma coloração diferente a essa substância.
Só então eu percebia que aquela nuvem era feita de madeira, mas uma madeira rápida, uma madeira que eu via mover-se e mudar como move-se e muda a madeira de uma árvore ao longo de vidas muito mais longas do que a minha.
Eu ouvia vozes ao meu redor, e por elas eu percebia que ninguém estava olhando para o alto, somente eu. Eles podiam me ver, mas não olhavam para aquilo que eu estava olhando. Eu não via a mim nem a eles, se não iria perder a visão de como aquele anjo se formava no céu, vindo dar início a algo. Só que suas linhas começavam a ficar borradas, os traços perdiam a proporção, alongavam-se de um lado, desuneravam-se de outro.
Quando ela foi chegando quase acima da minha cabeça, os raios do sol batiam de cheio sobre ela, e ela agora continuava da cor de madeira, mas uma madeira clara como chocolate, ou como aquelas raspas encaracoladas de madeira que um carpinteiro tira com a plaina.
Só que a câmara-acelerada me permitia ver as formas que ali brotavam. A nuvem era a escultura de um daqueles anjos de Aleijadinho que parecem suspensos no céu mesmo que a gente os esteja vendo pregados à parede. O anjo tinha cabelos encaracolados, vestes turbilhonantes, e empunhava uma trombeta de anunciar alguma coisa.
O anjo estava se desmanchando, porque a nuvem não parava. A forma final do anjo já tinha passado e eu tinha me distraído dela, porque estava escutando as pessoas ao meu redor. Daí a pouco nada mais de anjo, era só o tumulto de formas de madeira revoluteando céu afora, afastando-se por fim.
E eu pensei, vindo acordando: Tudo passa, tudo é nuvem passando, fases da lua, curvas da vida, rodada de campeonato, pesquisa de eleição, gráfico da Bolsa, vendagem do livro, juros do cartão, os estandartes do triunfo, as nebulosas da depressão, tudo é momento, tudo é movimento, tudo são nuvens de madeira se desfazendo pelo tempo afora.
Quando ela foi chegando quase acima da minha cabeça, os raios do sol batiam de cheio sobre ela, e ela agora continuava da cor de madeira, mas uma madeira clara como chocolate, ou como aquelas raspas encaracoladas de madeira que um carpinteiro tira com a plaina.
Só que a câmara-acelerada me permitia ver as formas que ali brotavam. A nuvem era a escultura de um daqueles anjos de Aleijadinho que parecem suspensos no céu mesmo que a gente os esteja vendo pregados à parede. O anjo tinha cabelos encaracolados, vestes turbilhonantes, e empunhava uma trombeta de anunciar alguma coisa.
O anjo estava se desmanchando, porque a nuvem não parava. A forma final do anjo já tinha passado e eu tinha me distraído dela, porque estava escutando as pessoas ao meu redor. Daí a pouco nada mais de anjo, era só o tumulto de formas de madeira revoluteando céu afora, afastando-se por fim.
E eu pensei, vindo acordando: Tudo passa, tudo é nuvem passando, fases da lua, curvas da vida, rodada de campeonato, pesquisa de eleição, gráfico da Bolsa, vendagem do livro, juros do cartão, os estandartes do triunfo, as nebulosas da depressão, tudo é momento, tudo é movimento, tudo são nuvens de madeira se desfazendo pelo tempo afora.
0088) Os tiranos e os comerciantes (3.7.2003)
No Romance da Pedra do Reino, em seu folheto 59, Ariano Suassuna põe na boca de um dos seus personagens a mais sucinta descrição possível do que foram os últimos cem anos da Humanidade. Arésio Garcia-Barretto é um sujeito revoltado contra todo tipo de autoridade, e sua revolta se traduz numa agressividade despudorada e cética, sem ideais e sem ilusões, baseada apenas na sua constatação de que no mundo ninguém é bonzinho, e que, como dizia Augusto dos Anjos, o sujeito que vive entre feras acaba tendo que virar fera também. E ele descreve assim o nosso mundo: “Por enquanto, só existem dois tipos de Governo: o dos opressores do Povo e o dos exploradores do Povo. O primeiro, é o dos Tiranos, o segundo é o dos Comerciantes. No primeiro tipo, o Povo é submetido e esmagado em nome da grandeza; no segundo é explorado em nome da Liberdade.”
Precisa dizer mais alguma coisa? De um lado estão as Ditaduras, seja a extinta União Soviética, a Coréia de Kim Jong-II, e as ditaduras militares latino-americanas em geral, que eram maioria no continente na época em que o livro de Suassuna foi publicado (1971). Do outro lado, estão as democracias republicanas capitalistas, onde quem manda é o Dinheiro. É uma grande ilusão pensar que indo de uma para outra alcançamos a liberdade. Na melhor das hipóteses, nos mudamos para uma cela mais ampla, com colchão de espuma, TV e direito a banho de sol.
Em seu prefácio ao seu romance Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley dizia que as ditaduras baseadas no chicote e na espora estavam com os dias contados, e iriam dar lugar às ditaduras baseadas na droga e no consumo. Um estado totalitário baseado no terror e na ameaça (como o de Orwell em 1984) equilibra-se numa corda-bamba permanente, mas um estado totalitário baseado na distribuição de prazer fica numa posição mais confortável. A ditadura de hoje não é a da Polícia, é a do Mercado. Em vez de ameaçar, seduz. Em vez de proibir que peguemos a agulha de que precisamos, ela derrama em cima de nós um palheiro de irrelevâncias.
O mundo de hoje é um carrossel de promessas de consumo infinito. O tom da propaganda me lembra o anúncio da turma do “Planeta Diário” (que depois virou “Casseta & Planeta”): “Leia o Planeta Diário... e coma muitas mulheres!” A publicidade faz de conta que todo mundo tem chances medianas de trabalhar feito um condenado das 9 às 17, para depois se empanturrar de cigarro, bebida e anti-depressivos, usando as roupas da moda, dirigindo o carro da moda, frequentando os lugares da moda... e comendo muitas mulheres. (É ponto pacífico, no mundo da propaganda, que há um número infinito de mulheres querendo dar para quem consome os produtos certos) Isto pode ser uma condição preferível à de quem vivia no Haiti de Papa Doc, ou na pequenina Albânia do camarada Enver Hoxha, mas quem chama isso de liberdade chama urubu meu-pombo-branco.
0087) Os “serial killers” (2.7.2003)
Não confundam os “serial killers” com os assassinos em massa, que abrem fogo num local público, e matam uma porção de gente. (Terroristas não valem. O terrorista tem uma ideologia, uma causa, por mais distorcida que seja.) O assassino em massa quer simplesmente matar, por desabafo, ou para fazer explodir uma neurose acumulada. Nos EUA, são muitas vezes veteranos de guerra, ou, no caso de adolescentes como os da escola de Columbine, rapazes inadaptados, ridicularizados pelos colegas, que descobrem esse modo de se vingar. Já o assassino serial é diferente. Em vez de matar 20 de uma vez só, ele mata as pessoas de uma em uma, às vezes com meses ou anos de intervalo. Seu crime é planejado com minúcia e executado com precisão. Sua neurose é de outro tipo. Ele precisa matar, mas basta-lhe uma morte por vez. Em alguns casos pode esperar semanas, meses, até anos, antes de atacar de novo.
O primeiro assassino serial famoso foi Jack o Estripador, que entre agosto e novembro de 1888 assassinou cinco prostitutas no bairro miserável de Whitechapel, em Londres. Até então, o único fenômeno parecido eram os “esfaqueadores” (“stabbers”) – indivíduos que apunhalam as nádegas ou seios das pessoas na multidão e fogem sem ser identificados. Na década de 1880, havia casos de esfaqueadores registrados em Londres, Paris, no Texas, na Nicarágua e em Moscou. Quando morei em Salvador em 1977, havia um tal “Homem do Canivete” que praticava esse tipo de proeza, que sem dúvida tem um componente de frustração sexual.
Jack o Estripador, contudo, bateu todos os recordes. Além da precisão cirúrgica das mutilações, ele deixava mensagens para a polícia, e enviava provocações em verso para os jornais. Serviu de modelo para criminosos como Peter Kuerten (o “Vampiro de Dusseldorf”), e muitos outros. O mais famoso assassino serial de tempos recentes foi Jeffrey Dahmer, que praticava arrepiantes cenas de canibalismo com suas vítimas, e foi preso em 1991. Não duvido que tenha servido de inspiração para um dos heróis do cinema contemporâneo, o Hannibal Lecter interpretado por Anthony Hopkins em três filmes.
Milhões de pessoas financiam livros e filmes sobre estes vampiros e lobisomens da vida real. O assassino serial é a cara do nosso mundo industrial-bélico-capitalista. Metade de sua mente é viciada numa droga, o assassinato ritual; a outra metade racionaliza e administra este objetivo. Uma metade mantém uma fachada “normal”, para que a outra possa de vez em quando torturar, mutilar, matar, e se refestelar nos cadáveres de suas vítimas. Nele, o crime deixa de ser um rompante de fúria e se torna objeto de planejamento e preparação logística. A maior parte dos assassinos seriais são fascinados por armas, uniformes, execuções rituais, insígnias nazistas (ou militares em geral); são sexualmente desajustados, ou impotentes. Precisa Freud, para explicar?
O primeiro assassino serial famoso foi Jack o Estripador, que entre agosto e novembro de 1888 assassinou cinco prostitutas no bairro miserável de Whitechapel, em Londres. Até então, o único fenômeno parecido eram os “esfaqueadores” (“stabbers”) – indivíduos que apunhalam as nádegas ou seios das pessoas na multidão e fogem sem ser identificados. Na década de 1880, havia casos de esfaqueadores registrados em Londres, Paris, no Texas, na Nicarágua e em Moscou. Quando morei em Salvador em 1977, havia um tal “Homem do Canivete” que praticava esse tipo de proeza, que sem dúvida tem um componente de frustração sexual.
Jack o Estripador, contudo, bateu todos os recordes. Além da precisão cirúrgica das mutilações, ele deixava mensagens para a polícia, e enviava provocações em verso para os jornais. Serviu de modelo para criminosos como Peter Kuerten (o “Vampiro de Dusseldorf”), e muitos outros. O mais famoso assassino serial de tempos recentes foi Jeffrey Dahmer, que praticava arrepiantes cenas de canibalismo com suas vítimas, e foi preso em 1991. Não duvido que tenha servido de inspiração para um dos heróis do cinema contemporâneo, o Hannibal Lecter interpretado por Anthony Hopkins em três filmes.
Milhões de pessoas financiam livros e filmes sobre estes vampiros e lobisomens da vida real. O assassino serial é a cara do nosso mundo industrial-bélico-capitalista. Metade de sua mente é viciada numa droga, o assassinato ritual; a outra metade racionaliza e administra este objetivo. Uma metade mantém uma fachada “normal”, para que a outra possa de vez em quando torturar, mutilar, matar, e se refestelar nos cadáveres de suas vítimas. Nele, o crime deixa de ser um rompante de fúria e se torna objeto de planejamento e preparação logística. A maior parte dos assassinos seriais são fascinados por armas, uniformes, execuções rituais, insígnias nazistas (ou militares em geral); são sexualmente desajustados, ou impotentes. Precisa Freud, para explicar?
0086) O fantástico (1.7.2003)
Organizei recentemente para a editora Casa da Palavra (Rio) uma antologia de contos fantásticos brasileiros, “Páginas de Sombra”, com ilustrações do paraibano Romero Cavalcanti. São dezesseis autores, desde clássicos como Machado de Assis e Aluísio Azevedo até contemporâneos relativamente jovens, como Rubens Figueiredo, Heloísa Seixas e Carlos Emílio Corrêa Lima. Este trabalho me deixou matutando sobre a questão: por que motivo no Brasil não se desenvolveu uma literatura fantástica mais rica? Até parece que é contravenção.
Os pontos altos da literatura brasileira, aquelas obras fundadoras que demarcam territórios e se transformam involuntariamente em modelos, são obras realistas. Numa direção, fica o realismo psicológico, de Machado a Clarice Lispector. Na outra, o realismo social de Jorge Amado, Érico Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Roberto Drummond, Rubem Fonseca. Em cada um desses autores (e dos outros) podemos até achar momentos de linguagem alegórica, sátira absurdista, breves tentativas de “realismo mágico”; mas ninguém poderia classificar nenhum como um típico autor de literatura fantástica.
Guimarães Rosa ajusta o pincenê e ergue o dedo, perguntando: “E eu?” Eis uma pergunta complicada. Rosa é por um lado um dos nossos maiores realistas, porque ninguém mais tinha um tal olho detalhista para decorar, um tal ouvido atento para aprender. Sua obra é um esforço monumental de trazer para o papel um mundo inteiro, com boiadas, plantas, gírias, armas, superstições, vaqueiros, bichos, capiaus, raparigas, almocreves, matriarcas... Por outro lado, existe ali uma infusão mágica permanente, um senso místico de que o mundo que vemos é apenas uma cortina fininha de filó, coberta de imagens, através da qual enxergamos imagens maiores, de um mundo mais verdadeiro. Por trás daqueles galopes, colinas, sertões e carabinas, as legendas de Minas Gerais são sombras ou reflexos de outra Guerra que ocorre noutro Plano, que só a literatura nos permite captar e transcrever.
Rosa, contudo, é um morro solitário, que só nos manda recados quando passamos perto dele. Em nosso trajeto, o que encontramos são autores realistas, autores que, com talento igual ao dele, fazem com palavras o que Rembrandt ou Velázquez faziam com pincéis. Vai ver que a literatura brasileira ainda não se sentiu tomando posse do Brasil. Como se o Brasil ainda estivesse para ser domesticado a poder de histórias. Poucos impulsos são tão fortes em nossa vida cultural (nossas universidades, nossa imprensa, nossas artes, nossas conversas de botequim ou de salões intelectuais) quanto o impulso de responder: “O que é o Brasil? O que são os brasileiros?” Uma angústia de auto-definição de quem mal acabou de emergir das trevas do Inconsciente, e precisa tomar pé, saber que lugar é este, o que está acontecendo em volta. Pedir a esta Literatura que explore o Fantástico é pedir-lhe que volte para estas trevas das quais ela ainda está úmida.
Os pontos altos da literatura brasileira, aquelas obras fundadoras que demarcam territórios e se transformam involuntariamente em modelos, são obras realistas. Numa direção, fica o realismo psicológico, de Machado a Clarice Lispector. Na outra, o realismo social de Jorge Amado, Érico Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Roberto Drummond, Rubem Fonseca. Em cada um desses autores (e dos outros) podemos até achar momentos de linguagem alegórica, sátira absurdista, breves tentativas de “realismo mágico”; mas ninguém poderia classificar nenhum como um típico autor de literatura fantástica.
Guimarães Rosa ajusta o pincenê e ergue o dedo, perguntando: “E eu?” Eis uma pergunta complicada. Rosa é por um lado um dos nossos maiores realistas, porque ninguém mais tinha um tal olho detalhista para decorar, um tal ouvido atento para aprender. Sua obra é um esforço monumental de trazer para o papel um mundo inteiro, com boiadas, plantas, gírias, armas, superstições, vaqueiros, bichos, capiaus, raparigas, almocreves, matriarcas... Por outro lado, existe ali uma infusão mágica permanente, um senso místico de que o mundo que vemos é apenas uma cortina fininha de filó, coberta de imagens, através da qual enxergamos imagens maiores, de um mundo mais verdadeiro. Por trás daqueles galopes, colinas, sertões e carabinas, as legendas de Minas Gerais são sombras ou reflexos de outra Guerra que ocorre noutro Plano, que só a literatura nos permite captar e transcrever.
Rosa, contudo, é um morro solitário, que só nos manda recados quando passamos perto dele. Em nosso trajeto, o que encontramos são autores realistas, autores que, com talento igual ao dele, fazem com palavras o que Rembrandt ou Velázquez faziam com pincéis. Vai ver que a literatura brasileira ainda não se sentiu tomando posse do Brasil. Como se o Brasil ainda estivesse para ser domesticado a poder de histórias. Poucos impulsos são tão fortes em nossa vida cultural (nossas universidades, nossa imprensa, nossas artes, nossas conversas de botequim ou de salões intelectuais) quanto o impulso de responder: “O que é o Brasil? O que são os brasileiros?” Uma angústia de auto-definição de quem mal acabou de emergir das trevas do Inconsciente, e precisa tomar pé, saber que lugar é este, o que está acontecendo em volta. Pedir a esta Literatura que explore o Fantástico é pedir-lhe que volte para estas trevas das quais ela ainda está úmida.
0085) A mula-sem-cabeça (29.6.2003)
Poucas criaturas me parecem tão fascinantes, na mitologia popular, quanto a nossa mula-sem-cabeça. Nunca vi uma, mas já me conformei com a minha impossibilidade de ver coisas que todo mundo já viu.
Tive uma infância urbana em Campina, morando em ruas tranquilas como a Padre Ibiapina, a Solon de Lucena, a Miguel Couto, a Castro Pinto (atrás do campo do Treze) e finalmente a Estilac Leal, no Alto Branco, que é o mais próximo que cheguei de uma zona rural.
Infelizmente, mulas-sem-cabeça nunca galoparam pelo Alto Branco, nem mesmo quando ali chegamos no longínquo ano de 1961, e aquilo era uma imensidão verde, com um pedaço de rua aqui, outro acolá.
Nessa minha infância órfã de prodígios de carne e osso, sobraram para mim os prodígios de tinta e papel. Todo mundo já sonhou com botija, menos eu; todo mundo conhece alguém que é lobisomem por ser o sétimo filho, menos eu; todo mundo já conversou com o fantasma de um antepassado, enquanto que eu mal consigo trocar duas palavras com os vizinhos reais com quem desço no elevador.
Não é de admirar que, de binóculo em punho a noite inteira, eu ficasse procurando mulas-sem-cabeça desde a Ladeira da Guabiraba até os matagais em volta do Seminário, as moitas da Lavanderia Pública e os barrancos em volta da subida para o Anel do Brejo. Nunca vi nenhuma. Se não fôssem mestre Cascudo e mestre Lobato, teria ficado no zero ate hoje.
O mais impressionante na mula-sem-cabeça é sua natureza contraditória. Numa das muitas obras-primas de Monteiro Lobato, O Saci, os netos se Dona Benta se espantam: “A mula-sem-cabeça que bota fogo pelas ventas?! Mas, se não tem cabeça, como pode ter ventas?”
Segundo Câmara Cascudo, para que a Mula seja desencantada basta que alguém arranque o freio de ferro que ela traz preso entre os dentes. Mas, se não tem cabeça, como tem dentes?
Estas contradições metafísicas fazem da mula-sem-cabeça, mais do que uma mera criatura sobrenatural, uma criatura fantástica. Não é apenas a sua existência física que parece impossível, mas é impossível sequer imaginá-la, como aqueles seres das gravuras de M. C. Escher – seres possuidores de duas características que, a ser verdadeira uma delas a outra é necessariamente falsa.
Por que um minotauro nos parece mais ameaçador do que um touro? Porque o touro é apenas um animal feroz, e o minotauro, além de feroz, fere o nosso senso comum, nos impõe a presença de uma impossibilidade zoológica.
Nesta ordem de raciocínio, a mula-sem-cabeça ameaça algo ainda mais precioso: a nossa convicção de que o mundo faz sentido. Mordendo o freio de ferro e pondo fogo pelas ventas, a mula-sem-cabeça não pertence ao domínio do lobisomem, do vampiro ou do centauro, e sim ao domínio da raiz quadrada de menos 1, do Teorema de Gödel (que eu teria muito prazer em demonstrar aqui, mas o espaço não dá) e de frases auto-contraditórias como: “Isto é uma mentira”.
0084) A arte do anagrama (28.6.2003)
Falei dias atrás sobre a arte do palíndromo, que é primo do anagrama.
Um palíndromo é uma frase ou palavra que, lida de trás para diante, é a mesma coisa. Um anagrama é uma frase ou palavra cujas letras são misturadas, formando uma frase diferente.
Talvez o anagrama mais famoso de nossa língua seja o nome IRACEMA, que, reza a lenda, José de Alencar formou a partir das letras de AMÉRICA.
Anagramas serviram muitas vezes como pseudônimos literários. Bocage, cujo primeiro nome era Manoel, adotou o pseudônimo de Elmano; e François Rabelais assinou-se às vezes como Alcofribas Nasier.
Como o jeitinho brasileiro já existia mesmo antes do Brasil existir, os anagramatistas da antiguidade permitiam-se algumas liberdades na transposição de letras, como fazer equivaler o “U” e o “V” (traço característico da escrita romana), ou o “I” e o “J”. O que não muda, no entanto, é a contagem: se na frase original a letra Q aparece cinco vezes, tem que aparecer cinco vezes na frase resultante.
A maioria dos anagramas só têm a ver com o nome original por uma forçação de barra no raciocínio: “Humberto Castelo Branco” resulta em “Combater contra esbulho”, e “Carlos Lacerda” nos dá “Calor de lascar”.
No entanto, muitos praticantes desta arte procuram descobrir, entre os anagramas possíveis de um nome, algum que pareça revelar uma verdade oculta, uma profecia, uma premonição. Nada mais adequado do que o nome “Clint Eastwood” resultar em “Old West action”; muitos maridos ingleses entenderão que “mother-in-law” (“sogra”) resulte em “woman Hitler” e “William Shakespeare” nos dê “We all make his praise” (“Nós todos o elogiamos”). Quem procura, acha.
No meu próprio nome achei a frase “Tu és ar, bar, viola”, e não consigo pensar numa auto-descrição melhor do que esta.
Não se deve, contudo, levar a coisa longe demais. Um francês chamado André Pujom descobriu em seu nome “pendu à Riom” (“enforcado em Riom”), e acabou cometendo um crime e sendo enforcado naquela cidade, num desses casos de profecia que cumpre a si mesma.
O misticismo associado a esta arte parece advir dessas coincidências. Será coincidência que as letras de The Life and Adventures of Nicholas Nickleby resulte em “Fine tale; find thou a novel by Charles Dickens” (“Bela história; descubra um romance de Charles Dickens”)?
Daí que os interpretadores de Nostradamus, usando esta arte combinatória, encontram em suas Centúrias profecias para tudo, desde a ascensão dos Sex Pistols até o resultado da Batalha do Riachuelo. Os cabalistas fazem isto há séculos com o texto hebraico da Bíblia, e ainda não pararam, como prova o recente best-seller O Código da Bíblia.
Os computadores aceleraram enormemente a penosa tarefa da transposição de letras, e hoje é possível achar na Internet saites dedicados a fornecer anagramas (em inglês) para qualquer palavra ou frase. Confiram em http://www.anagramgenius.com/server.html, e http://www.wordsmith.org/anagram/index.html.
Um palíndromo é uma frase ou palavra que, lida de trás para diante, é a mesma coisa. Um anagrama é uma frase ou palavra cujas letras são misturadas, formando uma frase diferente.
Talvez o anagrama mais famoso de nossa língua seja o nome IRACEMA, que, reza a lenda, José de Alencar formou a partir das letras de AMÉRICA.
Anagramas serviram muitas vezes como pseudônimos literários. Bocage, cujo primeiro nome era Manoel, adotou o pseudônimo de Elmano; e François Rabelais assinou-se às vezes como Alcofribas Nasier.
Como o jeitinho brasileiro já existia mesmo antes do Brasil existir, os anagramatistas da antiguidade permitiam-se algumas liberdades na transposição de letras, como fazer equivaler o “U” e o “V” (traço característico da escrita romana), ou o “I” e o “J”. O que não muda, no entanto, é a contagem: se na frase original a letra Q aparece cinco vezes, tem que aparecer cinco vezes na frase resultante.
A maioria dos anagramas só têm a ver com o nome original por uma forçação de barra no raciocínio: “Humberto Castelo Branco” resulta em “Combater contra esbulho”, e “Carlos Lacerda” nos dá “Calor de lascar”.
No entanto, muitos praticantes desta arte procuram descobrir, entre os anagramas possíveis de um nome, algum que pareça revelar uma verdade oculta, uma profecia, uma premonição. Nada mais adequado do que o nome “Clint Eastwood” resultar em “Old West action”; muitos maridos ingleses entenderão que “mother-in-law” (“sogra”) resulte em “woman Hitler” e “William Shakespeare” nos dê “We all make his praise” (“Nós todos o elogiamos”). Quem procura, acha.
No meu próprio nome achei a frase “Tu és ar, bar, viola”, e não consigo pensar numa auto-descrição melhor do que esta.
Não se deve, contudo, levar a coisa longe demais. Um francês chamado André Pujom descobriu em seu nome “pendu à Riom” (“enforcado em Riom”), e acabou cometendo um crime e sendo enforcado naquela cidade, num desses casos de profecia que cumpre a si mesma.
O misticismo associado a esta arte parece advir dessas coincidências. Será coincidência que as letras de The Life and Adventures of Nicholas Nickleby resulte em “Fine tale; find thou a novel by Charles Dickens” (“Bela história; descubra um romance de Charles Dickens”)?
Daí que os interpretadores de Nostradamus, usando esta arte combinatória, encontram em suas Centúrias profecias para tudo, desde a ascensão dos Sex Pistols até o resultado da Batalha do Riachuelo. Os cabalistas fazem isto há séculos com o texto hebraico da Bíblia, e ainda não pararam, como prova o recente best-seller O Código da Bíblia.
Os computadores aceleraram enormemente a penosa tarefa da transposição de letras, e hoje é possível achar na Internet saites dedicados a fornecer anagramas (em inglês) para qualquer palavra ou frase. Confiram em http://www.anagramgenius.com/server.html, e http://www.wordsmith.org/anagram/index.html.
0083) A “tomada” (27.6.2003)
Um tema literário que não me parece ser muito abordado pela crítica é o que eu chamo de “a tomada”, a partir do conto “Casa Tomada” de Julio Cortázar (filmado na Paraíba por Marcus Vilar, tendo no elenco W. J. Solha). Neste conto, um casal de irmãos vê sua mansão decadente ser invadida aos poucos por ocupantes cuja identidade ou intenções nunca são reveladas. Nessa invasão invisível, cada aposento, e depois cada andar, vai se tornando inacessível aos moradores, que acabam trancando a casa e ir embora. Eles não lutam, não enfrentam o problema; apenas recuam, e cedem terreno aos invasores.
Muito semelhante em espírito é o conto “A máscara de prata” de Hugh Walpole (1929). Uma senhora rica de meia-idade encontra na rua um rapaz bonito, educado, passando dificuldades. Ela lhe dá uma ajuda financeira, mas ele volta a fazer pedidos, e ela acaba contratando-o como secretário. Daí a pouco, a família do rapaz está instalada na casa dela. Ela procura inventar pretextos para mandá-los embora, mas tem bom coração, e acaba sempre fraquejando. No fim do conto, doente, enfraquecida, ela está morando no sótão, e a família, a esta altura dona da casa tomada, dá uma festa de arromba para uma turma de amigos.
Cinéfilos mais grisalhos hão de recordar O criado, filme inglês de Joseph Losey (1963), em que o excelente Dirk Bogarde faz o papel de um criado que entra para o serviço de um jovem aristocrata (James Fox) ocioso, influenciável e hesitante. Aos poucos, o criado vai ganhando total ascendência psicológica sobre o patrão, e manipulando-o até tornar-se, virtualmente, o dono da casa. E o conto de Kafka “Um velho manuscrito” nos mostra uma cidade que, invadida por tribos nômades do norte, vê os invasores acampados em plena praça diante do palácio imperial, sem que o imperador seja capaz de expulsá-los dali. Os nômades ignoram as pessoas da cidade, e invadem seus armazéns e seus açougues para pegar comida, sem encontrar resistência. O narrador diz: “É tudo um enorme mal-entendido, mas este mal-entendido está acabando conosco.”
Nestas narrativas, há sempre um movimento vagaroso de aproximação, de cerco, de invasão, de tomada do poder. Em geral não há violência, não há um conflito declarado. Há uma espécie de ameaça sustida, pairando sobre a vítima, que não reage porque não sabe o que acontecerá caso venha a reagir. Por um lado pode-se descrever esse processo como uma invasão; por outro, ele sugere também um caso de vampirismo, ou parasitismo, onde a criatura aparentemente mais fraca apega-se à criatura mais forte e passa a sugar-lhe as energias. São histórias que, mesmo quando não invadem o terreno do sobrenatural, nos dão a impressão de uma presença maligna que nunca podemos apontar com certeza – o invasor tem em geral os mais inocentes propósitos, as melhores intenções. Mas quando a vítima assume de fato a consciência do que está ocorrendo, e quer meter os pés... aí já é tarde. A casa já está tomada.
0082) Como escapar de uma anaconda (26.6.2003)
Recebo tudo quanto é de besteira pela Internet. Ofertas de Viagra pelo correio, ofertas de hipotecas a juros baixos, ofertas de férias gratuitas em Orlando. Recebo piada de loura, piada de bicha, piada de quanta gente precisa pra trocar uma lâmpada, piada de galinha atravessando rua.
Recebo denúncia de criança sequestrada, corrente de criança leucêmica, mensagens de moribundo atribuídas a Jorge Luís Borges ou Garcia Márquez, oração para a Santa Que Ajuda Pessoas Míopes a Enfiar Linha na Agulha, mensagens de otimismo sem propósito, ofertas para depositar em minha conta bancária 250 milhões de dólares do ex-ministro da fazenda da Nigéria ou do Zimbábue...
Já recebi tanta besteira que, algum tempo atrás, resolvi mandar para alguns dos meus correspondentes o único texto que considerei realmente útil.
Chama-se “Como sobreviver ao ataque de uma anaconda” (“anaconda” é mais ou menos o mesmo que sucuri ou jibóia), e, ao que parece, tem sua origem no livro Os lugares mais perigosos do mundo, de Robert Young Pelton.
Ele nos explica que a anaconda é uma das serpentes que mais matam no mundo, não porque seja venenosa, mas porque é a famosa quebra-ossos, que tem “aquele abraço” do qual nem mesmo o Incrível Hulk conseguiria se safar. Ocorre, no entanto, que, assim como o Hulk, a anaconda também tem seus pontos fracos, ou, forçando um pouco a metáfora, seu calcanhar de Aquiles.
Eis as instruções de Pelton:
1) Não corra. A serpente é mais rápida do que o ser humano.
2) Deite no chão ao comprido, braços apertados ao longo do corpo, pernas apertadas uma ao encontro da outra.
3) Pressione o queixo de encontro ao peito para proteger o pescoço.
4) A serpente vai deslizar sobre seu corpo, farejando-o.
5) Não entre em pânico.
6) A serpente começará a engolir primeiro os seus pés.
7) Mantenha-se totalmente imóvel. Isto irá demorar bastante.
8) Quando a boca da serpente estiver mais ou menos à altura dos seus joelhos, pegue sua faca, estire o braço, enfie a lâmina na boca da serpente, entre o canto da boca e a sua perna. Com um movimento brusco, puxe a faca para cima. Isto decepará a cabeça da anaconda.
9) Certifique-se de que conduz uma faca consigo.
10) Certifique-se de que a faca é bem afiada.
Parece o conselho dado pelo jagunço de Guimarães Rosa quando lhe pediram uma receita para um sujeito medroso ficar valente: “Basta degolar uma onça e beber o sangue dela, o cabra fica valente na hora...”
Bem; fica o conselho. Até hoje nunca fui atacado por nenhuma serpente, e a única anaconda que conheço é a simpática Angela Anaconda dos filmes de animação no canal FoxKids. Mas me ocorreu, assim, durante uma madrugada insone, que as instruções acima valem para relacionamento com patrões (editoras, gravadoras, etc.), com os governos, com megacorporações multinacionais; valem para matrimônios sufocantes, mães e pais controladores, penitentes de mesa de bar... As possibilidades, como sempre, são infinitas.
0081) Quem foi Landell de Moura? (25.6.2003)
O Brasil é cheio de gênios desconhecidos.
Entre eles, um dos mais interessantes é o padre jesuíta gaúcho Roberto Landell de Moura (1861-1928), um precursor da rádio-telefonia sem fio.
Depois da invenção do telégrafo com fio, de Morse (1837), os últimos anos do século 19 foram a época das grandes invenções na telecomunicação à distância, com Graham Bell criando o telefone em 1876 e Marconi a telegrafia sem fio em 1895.
Landell de Moura, entre 1890 e 1894, realizou experiências em São Paulo, onde vivia, transmitindo sinais e vozes a uma distância de 8 km. A imprensa noticiou, mas Landell tinha dificuldades em conseguir as famosas verbas oficiais para pesquisa e fabricação de equipamento, tendo chegado a oferecer suas descobertas, gratuitamente, ao cônsul da Grã-Bretanha.
Landell foi em 1901 para Nova York, onde morou por três anos, e requereu sucessivas patentes de seus inventos, que consistiam basicamente na transmissão de ondas luminosas moduladas, reproduzindo os sons que nelas interferiam.
O livro de Ernâni Fornari O incrível Padre Landell de Moura (Rio, Biblioteca do Exército, 1984, 2a edição) detalha as numerosas variantes dos aparelhos criados pelo cientista, além de reproduções em fac-símile das patentes norte-americanas, dos diagramas técnicos e de matérias de jornal sobre o cientista.
Voltando ao Brasil em 1904, Landell tentou oferecer seu invento ao Presidente Rodrigues Alves. Ao ser recebido pelo oficial de gabinete do presidente, deixou-se levar pelo entusiasmo ingênuo de tantos cientistas. Sendo perguntado sobre o alcance das transmissões do aparelho, afirmou que não havia limites, e que no futuro seu invento poderia ser usado até para a comunicação com outros planetas. Foi mandado de volta para casa com uma promessa de que o Presidente o chamaria em breve para conversar. Tu chamasse? Nem ele.
Landell era olhado com desconfiança até pelas autoridades eclesiásticas, que estranhavam aquele padre construindo caixas cheias de fios elétricos e falando dentro delas. Aos poucos foi se desiludindo. As patentes norte-americanas caducaram sem que ele pudesse fabricar os equipamentos.
Morreu em 1928, tido como um sujeito esquisito, mas adorado pelos paroquianos. Deixou dezenas de cadernos manuscritos onde estuda eletricidade, psicologia, mecânica.
B. Hamilton Almeida (Landell de Moura, Porto Alegre, Editora Tchê, Coleção Esses Gaúchos, 1984) compara o ostracismo sofrido por ele ao do filósofo e paleontólogo Teilhard de Chardin, que não foi autorizado a publicar em vida a maior parte das suas obras.
O padre Landell é uma metáfora da ciência no Brasil. Não precisa ter sido um gênio; foi apenas mais uma mente com aptidões que não eram consideradas necessárias em seu ambiente social. Pior do que as fogueiras da Inquisição são os baldes de água fria da indiferença.
0080) Deus é brasileiro? (24.6.2003)
Dias atrás tive uma experiência que me deu calafrios. Saí de casa para ver o filme Deus é brasileiro, que segundo o jornal estava em exibição no Cine Largo do Machado, numa agradável galeria que frequento há vinte anos. Ao entrar na galeria, olhei de longe e tive um susto, pois no quadro fluorescente onde está anunciado o título do filme estava escrito: “Igreja Universal do Reino de Deus”. Não era alucinação: o cinema tinha sido comprado na véspera, e agora, em vez do filme de Cacá Diegues, estava rolando um culto.
Deus é brasileiro? A Igreja Universal, do bispo Edir Macedo, foi criada no Rio de Janeiro em 1977, e já foi apontada como a religião que mais cresceu no mundo inteiro nos últimos 25 anos. Ficou conhecida pelos mega-eventos que promove, colocando 200 mil pessoas no Maracanã para um dia inteiro de preces e arrecadação de donativos. Está presente hoje em todos os continentes. Só na Califórnia (EUA) são 26 templos, atraindo principalmente a população “chicana” local. Está na Rússia desde 1997, na Itália e na Suíça desde 1993; são milhares de templos, sendo mais de 300 fora do Brasil, e milhões de fiéis. Os fiéis atribuem à IURD tudo que de bom aconteceu em suas vidas. Os seus críticos (como os críticos da maioria das igrejas) dizem que é uma empresa capitalista como qualquer outra, e de caráter lotérico: cobra pouco, promete muito, e você só sabe se ganhou ou não depois que morre.
Tenho observado uma diferença interessante entre as religiões da Antiguidade e as contemporâneas. No mundo antigo, as religiões se expandiam militarmente, através de exércitos de soldados possuídos pelo fervor da fé. “Deus o quer!” era o grito dos cruzados que partiam para libertar o Santo Sepulcro, “desbaratando o Turco, o Sarraceno e o Mouro”, como dizia Bilac. Se Deus queria, era lícito passar a fio de espada quem se atravessasse no caminho. É famosa a história do Abade de Citeaux, que ao invadir um reduto onde cristãos se misturavam aos hereges Cátaros, ordenou: “Matem todos; Deus saberá quem são os seus.” Já vi esta mesma história ser atribuída a um muçulmano. Faz diferença?
Em vista disto, muita gente perdoa as religiões que se expandem ao estilo das franquias de fast-food e das redes de vendas de bugigangas, tipo Amway. Pode ser que arrancar tostões de quem ganha um salário mínimo seja um processo meio brabo de acumulação de capital, mas pior ainda é queimar gente na fogueira e saquear cidades. Por outro lado, supondo que Deus exista, tudo fica claro de repente. Deus está querendo nos dizer que, sendo verdadeira a mensagem, não importa quem seja o mensageiro. Se um médico falso lhe dá um remédio verdadeiro, você fica bom do mesmo jeito. Deus está como um relojoeiro, com uma lupa aplicada ao olho, vigiando e monitorando a alma e as intenções de cada um – pastores e ovelhas. Se no mundo de fato um Deus existe, ele sabe entre nós quem são os seus.
Deus é brasileiro? A Igreja Universal, do bispo Edir Macedo, foi criada no Rio de Janeiro em 1977, e já foi apontada como a religião que mais cresceu no mundo inteiro nos últimos 25 anos. Ficou conhecida pelos mega-eventos que promove, colocando 200 mil pessoas no Maracanã para um dia inteiro de preces e arrecadação de donativos. Está presente hoje em todos os continentes. Só na Califórnia (EUA) são 26 templos, atraindo principalmente a população “chicana” local. Está na Rússia desde 1997, na Itália e na Suíça desde 1993; são milhares de templos, sendo mais de 300 fora do Brasil, e milhões de fiéis. Os fiéis atribuem à IURD tudo que de bom aconteceu em suas vidas. Os seus críticos (como os críticos da maioria das igrejas) dizem que é uma empresa capitalista como qualquer outra, e de caráter lotérico: cobra pouco, promete muito, e você só sabe se ganhou ou não depois que morre.
Tenho observado uma diferença interessante entre as religiões da Antiguidade e as contemporâneas. No mundo antigo, as religiões se expandiam militarmente, através de exércitos de soldados possuídos pelo fervor da fé. “Deus o quer!” era o grito dos cruzados que partiam para libertar o Santo Sepulcro, “desbaratando o Turco, o Sarraceno e o Mouro”, como dizia Bilac. Se Deus queria, era lícito passar a fio de espada quem se atravessasse no caminho. É famosa a história do Abade de Citeaux, que ao invadir um reduto onde cristãos se misturavam aos hereges Cátaros, ordenou: “Matem todos; Deus saberá quem são os seus.” Já vi esta mesma história ser atribuída a um muçulmano. Faz diferença?
Em vista disto, muita gente perdoa as religiões que se expandem ao estilo das franquias de fast-food e das redes de vendas de bugigangas, tipo Amway. Pode ser que arrancar tostões de quem ganha um salário mínimo seja um processo meio brabo de acumulação de capital, mas pior ainda é queimar gente na fogueira e saquear cidades. Por outro lado, supondo que Deus exista, tudo fica claro de repente. Deus está querendo nos dizer que, sendo verdadeira a mensagem, não importa quem seja o mensageiro. Se um médico falso lhe dá um remédio verdadeiro, você fica bom do mesmo jeito. Deus está como um relojoeiro, com uma lupa aplicada ao olho, vigiando e monitorando a alma e as intenções de cada um – pastores e ovelhas. Se no mundo de fato um Deus existe, ele sabe entre nós quem são os seus.
0079) Os Role Playing Games (22.6.2003)
Os RPGs já fazem parte até mesmo da programação do Encontro Para a Nova Consciência, em Campina. A sigla RPG serve para muita coisa. Pode ser “Report Program Generator”, uma linguagem de computador desenvolvida pela IBM nos anos 60. Pode ser “Reeducação Postural Global”, uma espécie de terapia para correção corporal, criada em 1980 pelo francês Philippe Souchard. Mas o RPG que nos interessa aqui são os “Role-Playing Games”, ou, em tradução aproximada, “jogos onde se interpretam papéis”, esta última palavra no sentido cênico, teatral do termo.
Num jogo de RPG, escolhe-se uma aventura, e cada participante escolhe um personagem num Manual que se compra nas livrarias, e que pode vir acompanhado de mapas, tabelas, dados, etc. O jogo conta com um Mestre, que não interpreta nenhum personagem, mas serve de coordenador, consultando o Manual, esclarecendo dúvidas, interpretando as regras quando elas são obscuras, e criando por conta próprias situações ou soluções não previstas no Manual.
O RPG é uma evolução de jogos mais antigos. Lembram-se do “War”? É um RPG primitivo, onde cada jogador faz o papel de um país, e todos têm missões conflitantes. No Banco Imobiliário, ou Monopólio, cada jogador faz o papel de um capitalista procurando ganhar dinheiro no mercado de imóveis. Nos RPGs atuais, contudo, os Manuais criam cidades, países, faunas e floras; criam um elenco de dezenas de personagens onde os jogadores podem escolher seus papéis; e regras complicadíssimas para governar as aventuras. Porque em última análise trata-se disso: escolhidos os personagens, os jogadores começam a criar uma aventura, inventar uma história. É uma peça teatral improvisada em conjunto.
Devido ao predomínio do mercado dos EUA, criou-se uma impressão de que todo RPG se refere ao universo dos heróis da fantasia do tipo Tolkien, com elfos, dragões, magos, reis, guerreiros, etc. Mas há RPGs de ficção científica, de terror, de crime e mistério. Os RPGs criados no Brasil utilizam tipos históricos (os índios, os bandeirantes, os escravos, os senhores de engenho). O mais fascinante deste tipo de jogo é o fato de ser algo criado totalmente de improviso, porque são os próprios jogadores que discutem e decidem, a todo instante, o que vão fazer em seguida. Rodear a montanha através da floresta, cruzar o rio, ou subir até o castelo? Resgatar o companheiro raptado, ou seguir em frente na missão? Combater, fugir, negociar? Confiar ou não num desconhecido?
Já vi amigos meus ficarem envolvidos numa aventura dessas, em volta de uma mesa, das duas da tarde à meia-noite. Sei de jogos onde o pessoal se encontra uma vez por semana, e a aventura já dura dois anos. Num encontro de RPGs organizado no Rio por Sonia Rodrigues, no Museu Nacional, vi 50 grupos de jovens jogando em 50 mesas, numa barulheira ensurdecedora, e com uma adrenalina contagiante. Literatura oral improvisada coletivamente! E eu pensava que não havia mais o que inventar.
Num jogo de RPG, escolhe-se uma aventura, e cada participante escolhe um personagem num Manual que se compra nas livrarias, e que pode vir acompanhado de mapas, tabelas, dados, etc. O jogo conta com um Mestre, que não interpreta nenhum personagem, mas serve de coordenador, consultando o Manual, esclarecendo dúvidas, interpretando as regras quando elas são obscuras, e criando por conta próprias situações ou soluções não previstas no Manual.
O RPG é uma evolução de jogos mais antigos. Lembram-se do “War”? É um RPG primitivo, onde cada jogador faz o papel de um país, e todos têm missões conflitantes. No Banco Imobiliário, ou Monopólio, cada jogador faz o papel de um capitalista procurando ganhar dinheiro no mercado de imóveis. Nos RPGs atuais, contudo, os Manuais criam cidades, países, faunas e floras; criam um elenco de dezenas de personagens onde os jogadores podem escolher seus papéis; e regras complicadíssimas para governar as aventuras. Porque em última análise trata-se disso: escolhidos os personagens, os jogadores começam a criar uma aventura, inventar uma história. É uma peça teatral improvisada em conjunto.
Devido ao predomínio do mercado dos EUA, criou-se uma impressão de que todo RPG se refere ao universo dos heróis da fantasia do tipo Tolkien, com elfos, dragões, magos, reis, guerreiros, etc. Mas há RPGs de ficção científica, de terror, de crime e mistério. Os RPGs criados no Brasil utilizam tipos históricos (os índios, os bandeirantes, os escravos, os senhores de engenho). O mais fascinante deste tipo de jogo é o fato de ser algo criado totalmente de improviso, porque são os próprios jogadores que discutem e decidem, a todo instante, o que vão fazer em seguida. Rodear a montanha através da floresta, cruzar o rio, ou subir até o castelo? Resgatar o companheiro raptado, ou seguir em frente na missão? Combater, fugir, negociar? Confiar ou não num desconhecido?
Já vi amigos meus ficarem envolvidos numa aventura dessas, em volta de uma mesa, das duas da tarde à meia-noite. Sei de jogos onde o pessoal se encontra uma vez por semana, e a aventura já dura dois anos. Num encontro de RPGs organizado no Rio por Sonia Rodrigues, no Museu Nacional, vi 50 grupos de jovens jogando em 50 mesas, numa barulheira ensurdecedora, e com uma adrenalina contagiante. Literatura oral improvisada coletivamente! E eu pensava que não havia mais o que inventar.
0078) O país de Dorian Gray (21.6.2003)
Todo mundo já parou um dia para imaginar como seria o país ideal. A escritora norte-americana Ursula K. LeGuin parou também, e imaginou num conto uma cidade utópica chamada Omelas.
Ela descreve uma festa popular nessa cidade: jovens e anciãos desfilando com guirlandas de flores, as ruas ensolaradas, as crianças sorrindo, a música ressoando no ar. Diz ela:
"Não conheço as leis e as regras dessa sociedade, mas desconfio que eram poucas. Assim como eram capazes de viver sem a monarquia e a escravidão, eles conseguiam viver sem bolsa de valores, sem publicidade, sem polícia secreta e sem bomba atômica.”
Nessa cidade, “a felicidade se baseava na percepção equilibrada do que é necessário, do que não é necessário nem destrutivo, e do que é destrutivo.”
Ao cabo de algumas páginas, depois de descrever belezas e mais belezas, ela pede licença para revelar um último aspecto de Omelas.
No porão de um dos edifícios da cidade há um quartinho, sem janelas, e com uma porta que vive trancada. Dentro desse quarto há uma criança, que não se sabe ao certo se é menino ou menina. Tem dez anos, mas aparenta ter no máximo seis. A criança está suja, doente, e mal sabe falar; consegue apenas dizer às vezes, na direção da porta: “Por favor, deixe eu sair. Eu vou me comportar bem.”
Uma vez por dia a porta se abre, e alguém traz um prato de comida e um jarro com água. E a porta se fecha novamente.
Todas as pessoas em Omelas sabem que a criança existe. Este fato é explicado a todas as outras crianças quando elas chegam aos oito ou dez anos; algumas são levadas até lá para vê-la. E aprendem que a felicidade em Omelas tem um preço. Se um dia a criança fôr libertada, medicada, e alimentada, toda a prosperidade de Omelas irá desmoronar.
Valeria a pena sacrificar a felicidade de milhares de pessoas para agradar a uma só? Seria justo? Não se sabe, mas a verdade é que de vez em quando há pessoas que saem caminhando até os subúrbios e vão embora. Para onde? Não sabem: só sabem que estão indo embora de Omelas.
O conto intitula-se “Aqueles que vão embora de Omelas” (“The ones who walk away from Omelas”), e ganhou o Prêmio Hugo de Ficção Científica de 1973. É uma história de ficção científica, sim. Não tem espaçonaves nem alienígenas, mas é uma extrapolação futurista, um modelo de sociedade projetado a partir de características da nossa.
O país de Omelas me lembra o romance de Oscar Wilde O retrato de Dorian Gray, onde um playboy da alta sociedade se mantém jovem e belo a vida inteira, enquanto um retrato seu, trancado no sótão, envelhece em seu lugar. Toda vez que elogiam minha inteligência ou meu talento eu fico pensando que em algum lugar por aí existe um cara com meu rosto e meu nome, trancado num porão, a quem nunca foi dado o direito de aprender a ler, de trabalhar, de pensar por conta própria e de ser gente. Não é que Omelas seja um mau lugar, mas acaba dando uma vontade danada de ir embora.
0077) Se fosse fácil não tinha graça (20.6.2003)
Um dos mandamentos da criação artística é: “Se fosse fácil, que graça tinha?” Muitas vezes o artista é seduzido pelo prazer de encarar e vencer um desafio à sua habilidade, aos seus recursos. Em toda criação artística vigora um pouco desse “fator dificultante”. Não conheço um termo específico em português. Em francês se diz “contrainte” (pronuncia-se “contrent”), e quer dizer “constrangimento, embaraço, dificuldade”. Em inglês é “constraint”, com as conotações de “coação, coerção”.
Existem “constraints” que decorrem do próprio meio que está sendo empregado. O crítico Rudolf Arnheim demonstrou que a riqueza da linguagem do cinema nascia dos limites obrigatórios, insuperáveis, que o cinema tinha no início: imagem retangular e plana, ausência de cor, ausência de som, e assim por diante. Cor e som surgiram depois, mas a limitação retangular da imagem é uma coerção que não foi superada. É impossível mostrar tudo; a escolha sobre “o que mostrar” é sempre uma escolha estética.
Um grupo literário francês levou ao extremo o uso da “contrainte”: a Oulipo (“Ouvroir de Littérature Potentielle”). Georges Perec, por exemplo, escreveu um romance inteiro, La Disparition sem usar a letra “E”. Este feito já havia sido praticado pelo norte-americano Ernest Vincent Wright em seu romance de 1939 Gadsby, igualmente sem o “E” (que pode ser lido em: http://gadsby.hypermart.net/index.htm). Por que motivo um sujeito arranja tanto problema para si próprio? Ora, porque se fosse fácil não tinha graça.
Todas as regras relativas a rima e métrica, por exemplo, são exemplos de coerções desse tipo. O soneto tem inúmeras variantes, mas sempre no limite de 14 linhas. O hai-kai são três linhas, com 5, 7 e 5 sílabas. Dados os limites, cabe ao artista criar o máximo dentro deles. Soneto e hai-kai são exemplos de limitações que se consagram, viram um teste de habilidade, acabam se transformando num gênero de poesia. Cada poeta, contudo, pode, antes de começar o poema, propor a si próprio uma regra meio arbitrária, e obrigar-se a segui-la. A “terza rima” em que Dante escreveu a Divina Comédia e o modelo do romanceiro ibérico adotado por Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência são exemplos clássicos.
Como sabem os físicos, um gás só tem utilidade prática quando é comprimido. A mente dos poetas deve ser também uma coisa meio gasosa, meio propensa à dispersão e ao devaneio, e é preciso encaixotá-la, espremê-la, dizer-lhe: “Tu agora vai ter que escrever uma estrofe onde a primeira linha rime com a 4ª e a 5ª , a 2ª com a 3ª, a 6ª e a 7ª rimem com a última e a 8ª com a penúltima, e o acento em cada verso tem que ser na terceira, na sexta e na décima sílabas! Visse, rapaz?!” Parece encomenda de um doido pra outro. Mas começou gente a topar o desafio dessa “contrainte”, e temos aí o martelo agalopado, uma das maiores contribuições nordestinas á Poética Brasileira.
0076) Lolita (19.6.2003)
O jornal “O Globo” lançou uma coleção de clássicos da literatura em bancas de jornais, e o primeiro livro é Lolita de Vladimir Nabokov. Li esse livro aos 19 anos, época em que, por alguma razão misteriosa, eu tinha uma queda por garotinhas de quinze. Esperávamos (refiro-me à minha turma no Estadual da Prata) um romance erótico como Sexus de Henry Miller, mas depois de algumas dezenas de páginas só encontramos um texto cheio de girândolas verbais. Lolita não é sobre a nudez do corpo feminino, e sim sobre a nudez da mente masculina. É uma história de Nelson Rodrigues contada com o virtuosismo verbal de Joyce e o distanciamento emocional de Donald Barthelme.
Lolita é a paixão de um europeu quarentão por uma meninota norte-americana, e a crítica viu nisto uma metáfora do deslumbramento e da perplexidade da cultura européia, velha e decadente, diante da cultura norte-americana, jovem, ousada, e em última análise indecifrável. É engraçado que uma leitura oposta era feita do romance Giovanni de James Baldwin, também muito popular nessa época, onde um rapaz norte-americano deixa-se arrastar numa paixão homossexual por um rapaz europeu. Outra parte da crítica viu nisto uma metáfora do deslumbramento e da perplexidade da cultura norte-americana, rasa e provinciana, diante da cultura européia, secular, profunda e em última análise indecifrável. O que mostra, pelo menos a mim, o risco de generalizar o significado das histórias individuais.
Nabokov é impiedoso com seus personagens, embora Lolita não seja um livro tão cruel quanto Gargalhada na escuridão, onde um sujeito respeitável deixa-se apaixonar por uma perua bem desclassificada, fica cego num acidente, e passa o resto do livro às apalpadelas pela casa, sendo traído pela amante a torto e a direito. Depois que fechamos um livro de Nabokov, somos tomados de descrença na humanidade. Não é autor para espíritos vacilantes ou depressivos.
Lolita foi filmado por Stanley Kubrick; o elenco tem Peter Sellers e James Mason. Mason tem inúmeras cenas memoráveis, como aquela em que faz sexo com a mãe de Lolita olhando o retrato da filha na mesa de cabeceira, e outra em que (de roupão, se bem me lembro) pinta as unhas dos pés da ninfeta. Mentes diabólicas como as de Kubrick, Mason, Sellers e o próprio Nabokov (que roteirizou o filme) devem ter se divertido muito.
Lolita tem uma tradução muito elogiada de Jório Dauster, que já ajudou a renegociar a dívida externa brasileira, e deve gostar de descascar abacaxis. Fêz escândalo quando foi lançado; hoje é apenas um precursor da cultura de massas que celebra, como nunca se celebrou, a sexualidade magra, pré-púbere, angulosa e felina das modelos, a quem Manuel Bandeira implorava premonitoriamente: “Teu corpo dúbio, irresoluto de intersexual disputadíssima, teu corpo, magro não, enxuto, lavado, esfregado, batido, destilado, asséptico, insípido e perfeitamente inodoro é o flagelo de minha vida, ó esquizóide! ó leptossômica!”
Lolita é a paixão de um europeu quarentão por uma meninota norte-americana, e a crítica viu nisto uma metáfora do deslumbramento e da perplexidade da cultura européia, velha e decadente, diante da cultura norte-americana, jovem, ousada, e em última análise indecifrável. É engraçado que uma leitura oposta era feita do romance Giovanni de James Baldwin, também muito popular nessa época, onde um rapaz norte-americano deixa-se arrastar numa paixão homossexual por um rapaz europeu. Outra parte da crítica viu nisto uma metáfora do deslumbramento e da perplexidade da cultura norte-americana, rasa e provinciana, diante da cultura européia, secular, profunda e em última análise indecifrável. O que mostra, pelo menos a mim, o risco de generalizar o significado das histórias individuais.
Nabokov é impiedoso com seus personagens, embora Lolita não seja um livro tão cruel quanto Gargalhada na escuridão, onde um sujeito respeitável deixa-se apaixonar por uma perua bem desclassificada, fica cego num acidente, e passa o resto do livro às apalpadelas pela casa, sendo traído pela amante a torto e a direito. Depois que fechamos um livro de Nabokov, somos tomados de descrença na humanidade. Não é autor para espíritos vacilantes ou depressivos.
Lolita foi filmado por Stanley Kubrick; o elenco tem Peter Sellers e James Mason. Mason tem inúmeras cenas memoráveis, como aquela em que faz sexo com a mãe de Lolita olhando o retrato da filha na mesa de cabeceira, e outra em que (de roupão, se bem me lembro) pinta as unhas dos pés da ninfeta. Mentes diabólicas como as de Kubrick, Mason, Sellers e o próprio Nabokov (que roteirizou o filme) devem ter se divertido muito.
Lolita tem uma tradução muito elogiada de Jório Dauster, que já ajudou a renegociar a dívida externa brasileira, e deve gostar de descascar abacaxis. Fêz escândalo quando foi lançado; hoje é apenas um precursor da cultura de massas que celebra, como nunca se celebrou, a sexualidade magra, pré-púbere, angulosa e felina das modelos, a quem Manuel Bandeira implorava premonitoriamente: “Teu corpo dúbio, irresoluto de intersexual disputadíssima, teu corpo, magro não, enxuto, lavado, esfregado, batido, destilado, asséptico, insípido e perfeitamente inodoro é o flagelo de minha vida, ó esquizóide! ó leptossômica!”
0075) As quatro etapas da vida (18.6.2003)
(minha mãe)
Na primeira etapa da nossa vida, do nascimento até os vinte e poucos anos, somos Filhos dos Nossos Pais. São eles que nos sustentam, nos formatam, nos ensinam o básico do básico, nos preparam para as batalhas do mundo. Ao longo disso, também nos massacram, nos reprimem, entulham nossa mente com advertências terríveis, sufocam nossa iniciativa com ordens, regras, proibições. Chega uma idade em que tudo que a gente quer é cair fora dali, ir morar fora, cometer os próprios erros, sem ninguém nos explicando o tempo todo como evitar uma topada. Aí a gente vai embora, topa até não poder mais, e acaba casando.
Aí começa a segunda etapa: crianças aparecem, e nos tornamos os Pais dos Nossos Filhos. Começamos a ver o mesmo filme, só que agora estamos do outro lado. Somos nós que começamos a dar duro para alimentar, cuidar, prover. Chega a nossa vez de negar o brinquedo, de mandar pentear o cabelo, de obrigar a tomar sopa, de ralhar, de proibir. E também é a nossa vez de pôr no colo, acarinhar, ensinar a ler (tem coisa mais bonita do que um filho lendo, uma filha escrevendo?). Mas a lei do mundo é de ferro. Eles crescem. Sentem-se sufocados. O dedão começa a coçar-lhes, pedindo-lhes a chance de sair de mundo afora, dando as próprias topadas. Adeus!
Pensamos que o filme acabou, mas quando nos viramos de lado, avistamos quem? Eles, nossos pais, que agora estão velhinhos e meio escangalhados pelo catabis da vida. As crianças sumiram, não precisam mais de nós, mas aqui estão estas crianças enrugadas, de cabelos brancos, já batendo biela e precisando de uma supervisão técnica. E nessa terceira fase, por volta dos quarenta, viramos Pais dos Nossos Pais. É nossa vez de proibir coisas (“Papai, largue esse cigarro agora mesmo, onde já se viu”), de dar ordens (“Pois pode ir trocar de roupa que a senhora vai pro médico é agora”). Velamos as suas febres, aturamos seus achaques, pagamos agora em paciência a paciência que velou tantas noites (só agora reconhecemos a cena) à nossa cabeceira.
E eles se vão. Tantos outros estão a ir-se que começamos a pensar se um dia não nos iremos nós também. E na curva vagarosa dos setenta percebemos que nos cansamos um pouco: criamos os filhos, cuidamos dos pais, será que a vida é só trabalho? Será que ninguém vê que a gente não é de ferro, que a gente se cansa, que a pessoa se estressa? E aí, por uma dessas simetrias que parecem desenhadas por mão divina, os papéis mais uma vez se invertem. E viramos os Filhos dos Nossos Filhos. Tudo que demos voltamos a receber. “Vivendo e aprendendo”, diz a sabedoria popular. E ensinando também. Se a vida se limitasse só a aprender, ou só a ensinar, seria de um egoísmo insuportável. Recebemos, e passamos adiante. A melhor maneira de pagar um favor, às vezes, não é devolvê-lo, é passá-lo adiante. Pagar, mas não a quem nos deu, e sim a quem esteja precisando. Se a vida não ensinar isso, não ensinou nada.
0074) Mídia ambiente (17.6.2003)
A crítica contemporânea de artes plásticas e de comunicação áudio-visual criou um utilíssimo termo para descrever nossa sociedade. Em inglês, eles chamam de “media landscape” ao ambiente artificial que nos cerca, o conjunto de imagens e sons produzidos pelos meios de comunicação de massas: rádio, TV, revistas, jornais, cartazes e out-doors de propaganda, etc. É um conceito também muito usado pela crítica de literatura futurista ou de ficção científica.
A tradução ao pé da letra de “media landscape” seria “paisagem da mídia” (ou “dos meios de comunicação”), mas proponho a tradução “mídia ambiente”, que deixa mais visível o fato de nosso mundo urbano ser um meio ambiente artificial, feito de mensagens de todo tipo. Se, como afirmam os teóricos da comunicação, tudo é mensagem, tudo é linguagem, torna-se quase impossível distinguir, nessa mídia ambiente, algum elemento natural. Mesmo quando atravessamos uma praça com gramados, riachos, árvores e canteiros de flores, esses singelos elementos vegetais foram plantados (ou transplantados para) ali por um grupo de operários, obedecendo às instruções de um paisagista. Houve uma escolha, um planejamento prévio, e esses elementos bucólicos estão ali com o intuito de dar um recado à população – algo como “eis aqui um oásis de natureza no meio da selva de pedra... venha... traga seus filhos... mostre a eles como era o mundo antes da civilização passar por cima de tudo.” É mensagem. Não pertence mais à natureza, e sim à cultura, à mídia. Está ali com um propósito, com uma segunda intenção.
Tudo é mensagem, tudo é código. Arquitetura é uma linguagem: os traçados dos prédios produzem impressões diferentes, dão mensagens diferentes. O mesmo quanto às roupas que usamos, os carros que dirigimos, os adornos que dão personalidade a nosso rosto (um bigode ou um batom, um par de óculos ou um piercing). Para onde nos voltamos, estamos vendo uma colagem de efeitos visuais produzidos industrialmente, massificados pela propaganda, e escolhidos por nós meio ao acaso, mas com a intenção de criar para nós mesmos uma imagem que possa ser aceita (ou que escandalize), que nos revele (ou que nos disfarce) – cada um escolhe as mensagens que emite.
Para a crítica de ficção científica isto já é, desde os anos 1950, o começo da realidade virtual, da Matrix. Ainda não podemos plugar nossas mentes num super-computador com interfaces sensoriais que inventam um mundo artificial, mas já vivemos num mundo artificial. Quem quiser saber o que é meio ambiente, o que é “o mundo real”, vá para a floresta. Nas cidades, tudo já pertence à Matrix. Tudo já pertence ao mundo das ilusões, ao mundo manipulado que nos manda o tempo todo instruções subliminais. São recados que passam por sob o limiar de nossa consciência. Eles nos guiam ou nos seduzem; nos erotizam ou nos advertem; nos policiam ou nos distraem. Abaixe este jornal. Olhe em redor. Você está na Matrix.
0073) O “Bloomsday” (15.6.2003)
Nesta segunda-feira, dia 16 de junho, centenas de milhares de pessoas se reúnem em cidades do mundo inteiro para cumprir um ritual. Elas se encontram em auditórios, residências, academias, faculdades, mas principalmente em bares onde, numa noitada regada a muita cerveja (de preferência a irlandesa Guiness), comemoram o dia em que um casal começou um namoro.
O dia foi 16 de junho de 1904, e o local era Dublin. O rapaz chamava-se James, e estava num momento complicado em sua vida; a mãe tinha morrido, deixando nove filhos para criar. Seu pai estava endividado até o pescoço, e ele morava num quarto alugado onde praticava piano e canto (tinha uma bela voz), e escrevia um gigantesco romance autobiográfico.
Tímido, cheio de fantasias sexuais e perseguido pelo moralismo cristão, James era do tipo que nunca arranja namorada.
No dia 10 de junho ele tinha visto na rua uma jovem alta, de cabelo castanho-avermelhado, que caminhava com passos decididos. Puxou conversa com ela, e percebeu que, mesmo longe de ser uma intelectual, ela era inteligente e bem-humorada. Marcaram um encontro, que ocorreu no dia 16.
O que aconteceu entre os dois nesse dia não é da nossa conta, mas foi o bastante para que James Joyce escolhesse a data de 16 de junho como o dia descrito em seu maior livro, o Ulisses. Neste romance enorme (as edições atuais variam entre 680 e 1100 páginas, dependendo do formato) ele narra um único dia na vida de um judeu dublinense, Leopold Bloom, numa linguagem tão cheia de realismo e de inovações que o livro virou para muitos a obra literária mais importante do século 20.
Os joyceanos reúnem-se todo 16 de junho para celebrar o “Dia de Bloom”, o dia descrito por Joyce, em seu livro, com esmagadora imaginação verbal; e por tabela estão celebrando o dia em que Joyce, aos 22 anos, apaixonou-se por Nora Barnacle, a mulher que o acompanhou até a morte dele em 1941.
Nora era uma flor do Lácio: inculta e bela. Nunca entendeu os livros do marido, mas apenas se queixava às vezes de que ele dificultava as coisas para si próprio, escrevendo de um jeito tão estranho.
Muito da sua personalidade foi transposto para a mulher de Bloom, Molly, a quem cabe o monólogo final do livro, dezenas de páginas de tirar o fôlego.
Hoje, Joyce foi seqüestrado pelo saber acadêmico, e seus livros são monumentos cercados de tantas explicações e exegeses que não se consegue chegar até eles. É um erro. Joyce era um gênio meio ingênuo meio erudito, como Hermeto Paschoal. Sua obra mistura o popular e o sofisticado, o obsceno e o lírico, o vanguardista e o labacé, a transcendência mística e a esculhambação de botequim.
Nas comemorações do “Bloomsday”, seus admiradores lêem trechos do Ulisses, cantam baladas folclóricas irlandesas, promovem conferências, bebem cerveja. Celebram as coisas boas da vida, coisas que foram amadas por Joyce: música, literatura, sexo, bebida, gréia. Existe algo mais afora isso?
0072) A lenda de Robert Johnson (14.6.2003)
Poucos músicos terão, numa vida tão curta, deixado tantas influências e uma lenda tão enigmática quanto o bluesman negro Robert Johnson, “o Rei dos Cantores de Blues do Delta”. O Delta é o do rio Mississippi, que, antes de desaguar no Golfo do México, perto de New Orleans, percorre uma planície de aluvião que se espalha por quatro Estados (Tennesse, Arkansas, Mississippi e Lousiana) da região chamada “as profundezas do Sul” ou “o coração do Sul” dos EUA. É a terra dos escravos que colhem algodão, dos fazendeiros orgulhosos, de uma mistura étnica que ainda guarda influência das colônias francesas. É o mundo da “casa grande e senzala”, o mundo da literatura de William Faulkner e Tennessee Williams; e o mundo dos grandes cantores negros de blues.
Robert Johnson nasceu em 1911, de pais separados, numa família pobre e cheia de filhos. Como sua vista não era muito boa, largou a escola cedo, e passou a adolescência acompanhando músicos de blues, tentando aprender com eles. Era esnobado pelos mais velhos, até o episódio que deu origem a sua lenda. Depois de sumir alguns meses, reencontrou os amigos músicos, que ficaram abismados: Johnson agora estava tocando violão melhor do que todos. Surgiu daí a lenda (aparentemente confirmada em algumas de suas canções posteriores, como “Me and the Devil Blues” ou “Hellhound on my Trail”) de que ele teria feito um pacto com o Diabo, a alma em troca de talento.
Viajando sem parar, como um violeiro nordestino, Johnson, um rapaz magro, tímido, sempre namorava moças feias; seus biógrafos vêem nisso uma estratégia de sobrevivência, pois em cada cidade ele assegurava para si uma mulher dedicada e sem outros compromissos. Um dia, resolveu namorar uma que era bonita, e casada. Durante um baile, alguém lhe estendeu um frasco de uísque envenenado. Johnson agonizou por alguns dias e morreu em 16 de agosto de 1938. Tinha 27 anos.
O que conhecemos hoje de Robert Johnson são duas fotografias, alguns documentos, e as 29 canções que ele gravou para o produtor Don Law, em quartos de hotel do Texas, em San Antonio (novembro de 1936) e Dallas (junho de 1937). O filme de Walter Hill “Crossroads”, com Ralph Macchio e trilha sonora de Ry Cooder, é a história de um garoto e um bluesman que saem em busca de uma lendária “30ª canção” que Johnson teria gravado. Hoje, Johnson é um mito. Eric Clapton o considera o bluesman mais importante que já existiu, e diz: “O que me impressiona em seus discos é que ele não faz nenhum esforço para agradar, ele não toca pensando num público. Quando ele toca, parece estar mergulhando fundo em si mesmo.” Keith Richard, dos Rolling Stones, conta que ao ouvir pela primeira vez o álbum famoso de Johnson, “King of the Delta Blues Singers”, perguntou a Brian Jones: “Mas quem é o outro cara que toca com ele?” Não havia outro cara: Johnson fazia tudo aquilo sozinho. A menos que o outro cara fosse... bom, mas lendas são lendas, e essas coisas não existem.
Robert Johnson nasceu em 1911, de pais separados, numa família pobre e cheia de filhos. Como sua vista não era muito boa, largou a escola cedo, e passou a adolescência acompanhando músicos de blues, tentando aprender com eles. Era esnobado pelos mais velhos, até o episódio que deu origem a sua lenda. Depois de sumir alguns meses, reencontrou os amigos músicos, que ficaram abismados: Johnson agora estava tocando violão melhor do que todos. Surgiu daí a lenda (aparentemente confirmada em algumas de suas canções posteriores, como “Me and the Devil Blues” ou “Hellhound on my Trail”) de que ele teria feito um pacto com o Diabo, a alma em troca de talento.
Viajando sem parar, como um violeiro nordestino, Johnson, um rapaz magro, tímido, sempre namorava moças feias; seus biógrafos vêem nisso uma estratégia de sobrevivência, pois em cada cidade ele assegurava para si uma mulher dedicada e sem outros compromissos. Um dia, resolveu namorar uma que era bonita, e casada. Durante um baile, alguém lhe estendeu um frasco de uísque envenenado. Johnson agonizou por alguns dias e morreu em 16 de agosto de 1938. Tinha 27 anos.
O que conhecemos hoje de Robert Johnson são duas fotografias, alguns documentos, e as 29 canções que ele gravou para o produtor Don Law, em quartos de hotel do Texas, em San Antonio (novembro de 1936) e Dallas (junho de 1937). O filme de Walter Hill “Crossroads”, com Ralph Macchio e trilha sonora de Ry Cooder, é a história de um garoto e um bluesman que saem em busca de uma lendária “30ª canção” que Johnson teria gravado. Hoje, Johnson é um mito. Eric Clapton o considera o bluesman mais importante que já existiu, e diz: “O que me impressiona em seus discos é que ele não faz nenhum esforço para agradar, ele não toca pensando num público. Quando ele toca, parece estar mergulhando fundo em si mesmo.” Keith Richard, dos Rolling Stones, conta que ao ouvir pela primeira vez o álbum famoso de Johnson, “King of the Delta Blues Singers”, perguntou a Brian Jones: “Mas quem é o outro cara que toca com ele?” Não havia outro cara: Johnson fazia tudo aquilo sozinho. A menos que o outro cara fosse... bom, mas lendas são lendas, e essas coisas não existem.
0071) No arranco do grito (13.6.2003)
O título acima foi utilizado por Maria Ignez Ayala para seu ótimo livro sobre Cantoria de Viola, e me vem à mente sempre que revejo uma cena do filme de Peter Weir, Sociedade dos Poetas Mortos, quando o professor Keating (Robin Williams) pede aos alunos que recitem seus próprios poemas.
O jovem Anderson, o mais tímido, diz que não escreveu nada. Keating o faz ficar de pé, pede-lhe que grite, manda-o repetir o grito cada vez mais alto, pensando no verso de Walt Whitman: “Eu faço soar meu grito bárbaro sobre os telhados do mundo”. Quando extrai do rapaz um princípio de reação, Keating tapa seus olhos e o faz dizer o que está vendo, o que está pensando, o que está sentindo; faz com que gire em círculos, com os olhos tapados, e diga a primeira coisa que lhe vem à cabeça.
O rapaz acaba improvisando alguns versos que deixam a turma inteira perplexa, o professor fascinado, e tudo se encerra com uma salva de palmas. O rapaz volta confuso e excitado para sua cadeira, enquanto o professor toca com a testa na testa dele e lhe diz em voz baixa: “Nunca esqueça isto”.
Em poucos minutos, vimos algumas coisas básicas sobre o improviso verbal.
Em primeiro lugar, a necessidade de quebrar a barreira do “não sei, não posso, não vou conseguir, vão mangar de mim”.
Depois, é preciso um “mote”, um ponto de partida, para que o sujeito não seja forçado a tirar tudo de dentro de si. Keating consegue isto através do verso de Whitman e de um retrato do próprio na parede, que ele força o aluno a descrever como “um louco espumando”.
Em seguida, estímulos físicos que fazem o sangue correr mais depressa (tapar os olhos, girar em círculos); os repentistas se valem de um instrumento que os força a movimentos físicos ritmados (viola, pandeiro, ganzá, etc.).
No filme, depois de atingido o grau ideal de excitação, as palavras do rapaz brotam meio balbuciadas, meio desconexas, mas trazem em si um tipo de verbalização que (com muita sensibilidade por parte do roteirista) reproduz o que o rapaz está sentindo/pensando, e reflete também o momento exato que está vivendo na companhia das outras pessoas.
Todo mundo tem capacidade verbalizadora. Já me ocorreu, em ocasiões onde estava improvisando versos por brincadeira, não saber exatamente o que ia dizer, até o instante exato em que minha boca pronunciava aquelas palavras.
Diversos poetas repentistas já me descreveram exatamente a mesma experiência. Ao que parece, há em nós um “centro verbalizador instintivo” que não está necessariamente ligado aos “centros verbalizadores conscientes” que usamos ao escrever ou falar. No caso dos poetas repentistas, prova-se que regras de rima e métrica são assimilados por esse “centro instintivo”, de tal forma que o indivíduo planeja rimas e metros de forma não-consciente.
Seria interessante comparar a atividade dos repentistas com a escrita automática que André Breton e os surrealistas propunham, e com as técnicas verbalizadoras dos médiuns espíritas.
070) A arte do palíndromo (12.6.2003)
(ilustração: blog O Dia A História)
Palíndromo é uma palavra ou frase que, lida de trás para diante, é a mesma coisa. O exemplo mais conhecido em português é “Roma me tem amor”. Meu preferido é “Socorram-me! Subi no ônibus em Marrocos!”, que sempre me traz à memória uma cena com James Stewart na parte inicial do filme “O homem que sabia demais”, de Hitchcock.
O saudoso Malba Tahan incluiu num dos seus livros de distrações matemáticas um longo palíndromo, ao que parece atribuído ao poeta Bocage: “Luza Rocelina, a namorada do Manuel, leu na Moda da Romana: ´anil é cor azul´”. São 15 palavras e 58 letras, nada mau.
O escritor Rômulo Teixeira Marinho reivindica para si o mais longo palíndromo em português publicado em livro: “O Gal. Leno Roca, à porta da cidade, a portador relata fatal erro da tropa e dá dica da tropa a Coronel Lago”, com 23 palavras e 83 letras. O mesmo escritor exibe em sua página no saite “Oficina das Letras” um poema-palíndromo ainda mais longo, com 173 palavras e 478 letras, intitulado “Coisas, Bichos e Gente”.
É coisa que vem dos gregos e romanos. O grande Osman Lins construiu seu romance Avalovara sobre um palíndromo em latim, “Sator Arepo Tenet Opera Rotas”, que tanto significa “O lavrador mantém cuidadosamente o arado nos sulcos” quanto “O Criador mantém cuidadosamente o Mundo em sua órbita”; é atribuído a um escravo da cidade de Pompéia, e diz-se que tinha poderes cabalísticos.
Pode até ser. No romance fantástico Expiration Date, do norte-americano Tim Powers, palíndromos são usados por médiuns como armadilhas para atrair e aprisionar fantasmas; lendo e relendo estas frases que não acabam nunca (porque é sempre possível recomeçar tudo de trás para diante) os espíritos dos mortos acabam se auto-hipnotizando e ficando presos ao local onde a frase está escrita.
A cultura palindrômica está em todos os idiomas. Talvez o mais famoso palíndromo em inglês seja: “A man, a plan, a canal: Panama!”. Construir agregados de palavras que possam ser lidos com o mesmo efeito de trás para diante é fácil; o maior problema de quem cria palíndromos é fazer com que isso tudo exprima algum sentido.
Um exemplo longo e bem razoável é “Doc, note, I dissent. A fast never prevents a fatness. I diet on cod.” (“Doutor, preste atenção, eu discordo. Jejum jamais evita a obesidade. Minha dieta se baseia em bacalhau”) Outro que me agrada (e também com mensagem terapêutica) é: “Cigar? Toss it in a can, it is so tragic” (“Charuto? Joga isso numa lata, é tão trágico”).
Um dos maiores palíndromos do mundo, com mais de cinco mil palavras, é em francês, e foi criado pelo escritor Georges Perec. “Le Grand Palindrome” está disponível na Internet no endereço: http://pages.infinit.net/mou/textes/palingp.htm.
A arte do palíndromo não é nem mais nem menos absurda ou fascinante do que a do xadrez, das palavras cruzadas, dos sonetos, ou qualquer outra que vise à única perfeição possível: a das coisas banais e finitas.
0069) Uma glosa de Lourival Batista (11.6.2003)
Lourival Batista (1915-1992), também chamado “Louro do Pajeú”, passou para a história da Cantoria de Viola como o “rei do trocadilho”.
Era o mais velho da trinca de irmãos repentistas complementada por Dimas e pelo mestre Otacílio, que vive em João Pessoa. [falecido em 5 de agosto de 2003]
Louro era uma surpresa para os que pensam que os cantadores nordestinos são talentos brutos, intocados pela cultura urbana. Os Batista, como muitos grandes violeiros, tiveram variadas leituras e cuidadoso aprendizado. Não perderam as raízes sertanejas, mas fizeram versos em pé de igualdade com os dos poetas das cidades.
Reza a lenda que o poeta Raimundo Asfora propôs a Louro o mote: “Não tive amores, sonhei-os / mas possuí-los não pude.”
A glosa de Lourival (que não sei se foi glosa pensada, ou de improviso) é registrada com pequenas variantes em numerosos livros sobre Cantoria:
Senti das paixões abalos
e desesperos medonhos:
sonhos, sonhos e mais sonhos
sem poder realizá-los.
Na fronte senti os halos
das auras da juventude
mas nunca tive a virtude
de dormir entre dois seios.
Não tive amores, sonhei-os
mas possuí-los não pude.
Quando alguém dá um mote de duas linhas, o poeta compõe duas quadras para completar com ele uma décima (4+4+2).
Cada poeta tem suas técnicas e seus truques, mas às vezes é possível reconstituir o fio criador de seu pensamento.
Os violeiros chamam de “queda do verso” as últimas linhas antes do mote; e geralmente é por ela que começam. Começam pelo fim, como os Parnasianos com a “chave de ouro” dos seus sonetos.
Neste caso, Louro usou uma rima rica, um substantivo (“seios”) para rimar com o verbo+pronome “sonhei-os”. Não duvido que Louro, poeta e trocadilhista, conhecesse o famoso trocadilho do seu colega Emílio de Menezes, a quem uma dama perguntou: “Sr. Emílio, o sr. sabe quais são os encantos da mulher?”, e ele respondeu: “Sei-os”.
A obrigação de rimar com “sonhei-os” inspirou a Louro uma “queda” brilhante: “mas nunca tive a virtude / de dormir entre dois seios”.
Após preparar o desfecho da segunda quadra, ele voltou mais atrás e preparou o da primeira. Note-se que as linhas 3 e 4 (“sonhos, sonhos e mais sonhos / sem poder realizá-los”) são uma transposição fiel do mote (“não tive amores, sonhei-os / mas possuí-los não pude”), o que dá homogeneidade e simetria à estrofe.
As linhas 1 e 2 foram compostas a seguir, com rimas determinadas pelas 3 e 4. Mais uma vez, Louro rimou substantivo (“abalos”, “halos”) com um verbo+pronome (“realizá-los”). Desse modo, ele prepara o ouvido do leitor para aceitar mais facilmente o mesmo recurso quando é repetido nas linhas finais, na queda do verso ("seios" com "sonhei-os").
Note-se ainda que o poeta capricha em rimar verbo com substantivos (“pude” com “juventude” e “virtude”), adjetivo com substantivo (“medonhos” com “sonhos”).
Riqueza de rimas, fluência de métrica, beleza de sentido, delicado erotismo da imagem final. Uma beleza de verso. No mundo da Cantoria existem milhões assim.