sexta-feira, 7 de março de 2008

0086) O fantástico (1.7.2003)




Organizei recentemente para a editora Casa da Palavra (Rio) uma antologia de contos fantásticos brasileiros, “Páginas de Sombra”, com ilustrações do paraibano Romero Cavalcanti. São dezesseis autores, desde clássicos como Machado de Assis e Aluísio Azevedo até contemporâneos relativamente jovens, como Rubens Figueiredo, Heloísa Seixas e Carlos Emílio Corrêa Lima. Este trabalho me deixou matutando sobre a questão: por que motivo no Brasil não se desenvolveu uma literatura fantástica mais rica? Até parece que é contravenção.

Os pontos altos da literatura brasileira, aquelas obras fundadoras que demarcam territórios e se transformam involuntariamente em modelos, são obras realistas. Numa direção, fica o realismo psicológico, de Machado a Clarice Lispector. Na outra, o realismo social de Jorge Amado, Érico Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Roberto Drummond, Rubem Fonseca. Em cada um desses autores (e dos outros) podemos até achar momentos de linguagem alegórica, sátira absurdista, breves tentativas de “realismo mágico”; mas ninguém poderia classificar nenhum como um típico autor de literatura fantástica.

Guimarães Rosa ajusta o pincenê e ergue o dedo, perguntando: “E eu?” Eis uma pergunta complicada. Rosa é por um lado um dos nossos maiores realistas, porque ninguém mais tinha um tal olho detalhista para decorar, um tal ouvido atento para aprender. Sua obra é um esforço monumental de trazer para o papel um mundo inteiro, com boiadas, plantas, gírias, armas, superstições, vaqueiros, bichos, capiaus, raparigas, almocreves, matriarcas... Por outro lado, existe ali uma infusão mágica permanente, um senso místico de que o mundo que vemos é apenas uma cortina fininha de filó, coberta de imagens, através da qual enxergamos imagens maiores, de um mundo mais verdadeiro. Por trás daqueles galopes, colinas, sertões e carabinas, as legendas de Minas Gerais são sombras ou reflexos de outra Guerra que ocorre noutro Plano, que só a literatura nos permite captar e transcrever.

Rosa, contudo, é um morro solitário, que só nos manda recados quando passamos perto dele. Em nosso trajeto, o que encontramos são autores realistas, autores que, com talento igual ao dele, fazem com palavras o que Rembrandt ou Velázquez faziam com pincéis. Vai ver que a literatura brasileira ainda não se sentiu tomando posse do Brasil. Como se o Brasil ainda estivesse para ser domesticado a poder de histórias. Poucos impulsos são tão fortes em nossa vida cultural (nossas universidades, nossa imprensa, nossas artes, nossas conversas de botequim ou de salões intelectuais) quanto o impulso de responder: “O que é o Brasil? O que são os brasileiros?” Uma angústia de auto-definição de quem mal acabou de emergir das trevas do Inconsciente, e precisa tomar pé, saber que lugar é este, o que está acontecendo em volta. Pedir a esta Literatura que explore o Fantástico é pedir-lhe que volte para estas trevas das quais ela ainda está úmida.

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