sábado, 31 de agosto de 2013

3279) Seu Deca (31.8.2013)






Ontem estive me lembrando de Dona Zefinha de Seu Deca. Isso foi num desses lugares pras bandas de Tabira ou de Água Branca. Seu Deca vivia duma aposentadoria, de um gadozinho guardado nas terras dum genro, e de farra. Todo dia vinha almoçar em casa e depois ia freqüentar a rapariga, Fátima, uma moça que tinha uma perna maior do que a outra. Levantava da cama às 4 da tarde, hora do carteado na pracinha, onde se reunia com os amigos para deliberar onde iriam beber naquela noite. Dona Zefinha lavava os pratos e chorava, amaldiçoando Seu Deca e todos os homens do mundo, mas morria de medo dele, e com razão, porque Seu Deca apesar de generoso com o próprio dinheiro e escrupulosamente correto em todo procedimento, como ele mesmo dizia, era um sujeito com sangue no olho e de instinto ruim.

Todo dia era essa a história, o almoço de Dona Zefinha, a sesta com Fátima, e Dona Zefinha carregando essa cruz à vista da rua inteira. Ela confidenciou a Ceiça de Antão Procópio que ainda era nova (estava longe dos quarenta) e que o marido era um homem bom, mas que por ser muito bom tinha se deixado enfeitiçar por quem não prestava. Ela guardava umas economias e comprou roupas novas. Passou a fazer ela mesma o almoço. (Que até então eram obra de Tonela, a mucama que trabalhava com eles desde que era uma adolescente.)

Talvez nunca se saiba o que Seu Deca notou primeiro, se era a mulher que estava mais bonita ou a comida que estava mais farta. Mesmo no entra e sai da sala para a cozinha Dona Zefinha estava sempre com um vestidinho caprichado. E cada dia espalhava sobre a mesa a bandeja farta com dobradinha, mão-de-vaca, tripa torrada, galinha de capoeira, costela, chambaril, pirão. Era ele comendo e ela atochando comida no prato dele. Ela comia limpando a barba, arrotando, controlando o relógio.

Um dia, por fim, Dona Zefinha estava lavando os pratos quando ouviu um alarido na frente de casa, eram uns meninos à janela da sala, falando todos ao mesmo tempo, um deles dizendo “Seu Deca morreu!”, e outro corrigindo, “Morreu, não, está morrendo!” Daí a pouco o trouxeram, duro, morto, desengonçado. Ela cuidou de tudo, participou do enterro, recebeu calada o que os enteados lhe deram na partilha e foi embora para a casa de uma prima que tinha no Cariri. Chorou com sinceridade, porque nos últimos tempos voltara a gostar dele. Mas também foi a última vez na vida em que ela chorou.

Quanto a Fátima, ficou muito tempo impressionada com essa história de um homem ter morrido dentro dela. Mudou-se para Sergipe depois de alguns meses e nunca mais ninguém ali se lembrou dela, mas mora hoje em São Cristóvão, onde tem o apelido de Meio Fio.


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

3278) Histórias de horror (30.8.2013)




O saite BuzzFeed publicou os resultados de um concurso (http://bit.ly/11sZaxp) feito com leitores do Reddit, para escolher as melhores histórias de horror em apenas duas frases. (Se bem que, dependendo da sintaxe adotada, duas frases podem ocupar duas páginas; basta pensar em Proust ou em D. F. Wallace). Como tudo que envolve micronarrativas, não se deve exigir dessas histórias muita coisa em termos de descrição, caracterização de personagens, desenvolvimento, etc. É vapt-vupt. Um pequeno trecho que sugere personagens, ambiente e ação, contando com a colaboração imaginativa do leitor. Aqui vão algumas das vencedoras (sem nenhuma ordem especial).

1) “Você chega em casa, cansado, depois de um dia duro de trabalho. Estende a mão para o interruptor para acender a luz, mas encontra outra mão em cima dele.”

2) “Meu reflexo no espelho piscou para mim”.

3) “Você ouve sua mãe chamando-o, na cozinha. Quando se dirige para a escada ouve um sussurro vindo do armário dizendo: “Não desça, meu filho, eu também ouvi”.

4) “Os médicos disseram ao amputado que ele poderia sentir a presença de um membro fantasma. Mas ninguém o preparou para aquele instante em que ele sentiu sua mão fantasma sendo tocada por dedos muito frios.”

5) “Fui botar meu filhinho para dormir, e ele pediu: Pai, veja se embaixo da cama tem algum monstro. Olhei embaixo da cama, para agradá-lo, e lá estava ele, trêmulo de medo, sussurrando: Pai, tem alguém na minha cama!”

6) “Minha filha não para de chorar e de gritar, a noite inteira. Visito seu túmulo e peço que pare, mas não adianta”.

7) “Depois de um dia duro no trabalho, cheguei em casa e vi minha namorada com nosso bebê nos braços. Não sei o que me deu mais terror, se ver minha namorada morta segurando nosso bebê morto, ou saber que alguém tinha arrombado meu apartamento e colocado os dois ali”.

8) “Cara... pra onde foi aquela aranha?!”

A maioria dessas micro-histórias lida com os temas “família” e “morte”. Um elemento de fragilidade (algo delicado e precioso a ser protegido do Mal) e um elemento de ameaça. Com isto, os autores vão “direto ao nervo”, já que o formato proposto não dá espaço para caracterização de personagens. “Mãe”, “filho”, “namorada”, não são descritos além de sua função. O terror vem com a presença de “duplos”, do prolongamento maligno da vida após a morte, da presença invisível de algo estranho e ameaçador. O curioso é que algumas destas “histórias” já estão em seu tamanho ideal; aumentá-las só faria diluir seu impacto. A micro-história tem sua estética própria, é quase um episódio estático em que o tempo conta pouco. É menos narrativa do que cartum ou fotografia.


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

3277) "Phantom Lady" (29.8.2013)




Em algumas histórias de mistério, a grande questão é: Quem matou o milionário? Em outras, a questão é menor, mais modesta e mais grave: Qual o sentido da existência humana?  Um grande ponto de partida para um mistério é quando alguém tem sua vida virada de pernas para o ar, e não consegue convencer ninguém da sua inocência. Um mistério do tipo: “E se um dia algo me acontecesse, e todos os testemunhos em volta dissessem que aquilo não tinha acontecido?” Essa situação básica pode inspirar milhares de variantes. O turista que perde tudo num piscar de olhos em terra perigosa e estranha, p. ex.

Uma variante dessa situação é A Mensagem Misteriosa, ou O Cartão Misterioso. Uma pessoa recebe um cartão em língua desconhecida, e, sempre que pergunta a alguém o que tem ali, tudo que consegue é provocar escândalo, fúria, repulsa... ser vítima de preconceitos, fobias e perseguições... e ninguém lhe explica o que há escrito ali.

Outra variante é O Álibi Fantasma. O Álibi Fantasma consiste na história em que um indivíduo qualquer, para livrar-se de uma acusação, precisa comprovar coisas banais: quem é, o que faz, o que fez, o que lhe ocorreu de anormal. Parece simples... até o dia em que ele precisa de livrar da acusação de um crime e descobre horrorizado que ninguém confirma seu álibi, por variadas razões.

A Dama Fantasma (Phantom Lady, 1942), de William Irish, é um romance onde Scott Henderson, após uma briga com a esposa, sai à noite com uma desconhecida que encontra no bar, leva-a ao restaurante, depois a um show, despede-se sem perguntar seu nome ou seu endereço ... E descobre que alguém matou sua esposa durante a noite, e que seu álibi depende do testemunho dessa mulher, que ele não sabe quem é nem como localizar. 

Tudo é assim. A Dama Fantasma de William Irish (na verdade um pseudônimo de Cornell Woolrich, o autor da história original de Janela Indiscreta de Hitchcock ou A Sereia do Mississipi,  de Truffaut) é uma história clássica de “Ninguém Acredita Em Mim”. Toda a obra de Woolrich/Irish é cheia de armadilhas, identidades suprimidas do dia para a noite, corridas contra o relógio... São pesadelos kafkeanos numa Nova York do pós-guerra, com um senso de clima “noir” inigualável. Seus argumentos parecem aquelas histórias de Philip K. Dick em que o sujeito acorda de manhã e descobre que não existe.

Phantom Lady (filmado por Robert Siodmak em 1944) tem o melodrama sentimental típico de Woolrich, seus heróis quixotescos, seus lances mirabolantes, seu abuso das coincidências, mas esses romances têm um tal clima alucinatório, de pesadelo cósmico, que é mais fácil compará-los a um sonho do que a um livro. 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

3276) O robô apaixonado (28.8.2013)




É uma dessas pegadinhas da Internet. Me lembra a história de São Tomás de Aquino no mosteiro. Os jovens monges, para zoar com ele, começaram a gritar, olhando pela janela: “Vinde ver, irmão Tomás! Vinde ver um boi voando!”. O santo veio à janela e pôs a cabeça para fora, procurando o boi. Os rapazes riram e disseram: “Acreditastes mesmo que um boi pode voar?” E ele respondeu: “Achei mais fácil um boi voar do que um religioso mentir.”

A história é provavelmente apócrifa, mas como a li no livro de leitura do colégio, aí vai ela, para não ficar por perdida. Algumas pegadinhas manipulam nossa tendência a acreditar em algo que, mesmo impossível, faz sentido dentro da nossa cultura. Por exemplo: um robô apaixonado. Acreditei piamente na notícia quando vi isto aqui: http://bit.ly/16BCgE8), só para vê-la desmentida minutos depois. Kenji é o robô desenvolvido nos laboratórios da Toshiba, programado para emular (imitar) emoções humanas. Ele desenvolveu comportamentos afetivos e protetores para com uma boneca, com a qual passava o dia abraçado. Quando a boneca lhe era retirada, ele perguntava por ela, insistentemente. O problema principal surgiu quanto Kenji passou a agir do mesmo jeito com uma estagiária que todo dia atualizava seus softwares. Querendo reproduzir com ela o que fazia com a boneca, Kenji recusou-se a deixar a moça sair do cubículo, e foi preciso desligá-lo.

Tudo mentira, claro. A “notícia” já foi desmentida desde 2009 (ver aqui: http://bit.ly/10sf1b5). Por que motivo eu acreditei, então? Acho que porque a história do robô me lembrou a história de Bispo do Rosário. Bispo era um doido, o que não é muito diferente de ser um robô. É um ser a quem se pode atribuir pensamentos e intenções, mas tem limitações evidentes que para nós são mais visíveis do que as nossas, e é imprevisível. Bispo apaixonou-se pela psicóloga que tratou dele na Colônia Juliano Moreira. Tratava-a como se ela fosse Nossa Senhora. No seu mundo delirante, ela era uma representação de beleza, de pureza, de amor desinteressado.

Quer dizer – isso é uma “viagem” minha em cima dos relatos feitos sobre Bispo. Sei tão pouco dos pensamentos de Bispo quanto sei do robô Kenji, mas nunca duvidei da possibilidade de algum deles se apaixonar. Se a história de Kenji é inventada, tanto faz; estamos na contagem regressiva para a produção do primeiro robô capaz de se comportar como uma pessoa apaixonada. E como saberemos se a paixão é verdadeira? Aí, amigos, ninguém sabe. Dependemos sempre da decisão de acreditar, porque jamais saberemos o que se passa noutra pessoa. Quanto a isto, estamos tão desamparados quanto um robô ou um doido.


terça-feira, 27 de agosto de 2013

3275) A Cena do Diretor (27.8.2013)


(Polanski em Chinatown)

Nos filmes de Alfred Hitchcock tem sempre a cena em que ele aparece ao fundo, entre os figurantes. Quando menos se espera, ou quando já se está cansado de esperar, lá está Hitchcock, sentado num ônibus ao lado do herói (O Homem que Sabia Demais, 1956) ou vendo a porta de um ônibus se fechar na sua cara (Intriga Internacional, 1959). 

O escritor Tim Powers desdenhava esse macete. Achava um exibicionismo meio infantil, que atrapalhava a credibilidade emocional do filme: “Você está assistindo uma cena que se supõe séria e tensa, e aí, de repente começa a apontar: '- Lá está Alfred!'  Estraga tudo.”

A Aparição do Diretor virou cacoete, já utilizado de toda maneira por todo o mundo. Mas o que eu acho mais interessante são aquelas aparições meta-hitchcockianas, que vão além do que o que o gordinho fez. 

São cenas com sua própria dramaturgia, seu próprio impacto, e o diretor não está ali apenas dando adeusinhos para o eleitorado. Está carregando em si um papel, numa cena forte, e com a obrigação de defendê-lo bem diante de sua própria equipe técnica. 

Caso emblemático de “Cena do Diretor”: Roman Polanski em Chinatown (1974), no papel do gangster janota que pega um canivete e abre a narina de Jack Nicholson.

Não me refiro àqueles filmes em que o diretor é de certa forma o protagonista, como F for Fake (1974) de Orson Welles ou A Noite Americana (1973) de François Truffaut.  Em casos assim o filme já é concebido em torno da imagem do diretor-ator, o filme todo é a presença dele.  

A Cena do Diretor é quando ele dirige a si mesmo e aparece nesse momento específico, e praticamente não mais; uma cena curta, mas de peso. Marca presença, tanto quanto Hitchcock; mas seu aparecimento não é um “gimmick” meramente publicitário, como o do mestre, é um produto estético. Afinal, é uma cena de filme! Uma coisa tão obra-de-arte quanto uma sextilha.

John Huston é uma das poucas coisas boas que houve em seu A Bíblia (1966), aquele Noé grandalhão, apocalíptico, desbocado. 

Luís Buñuel só apareceu na tela na primeira e demolidora cena de Um cão andaluz (1928), como o homem que empunha e navalha e nos ensina a “ver com outro olho que o habitual”, como disse Jean Vigo. 

Martin Scorsese faz um passageiro patético e surtado numa das melhores cenas de Taxi Driver (1976). 

Quentin Tarantino é literalmente mandado pelos ares na cena em que aparece em Django Livre (2012), realizando com ironia sádica tanto uma fantasia dos seus fãs quanto a dos seus desafetos. 

A Cena do Diretor é uma figura de linguagem do cinema que pode até ter sido incrementada pela brincadeira de Hitchcock, mas virou algo muito mais interessante.





domingo, 25 de agosto de 2013

3274) Memória de cantador (25.8.2013)





(José Gonçalves, foto Roberto Coura)



“Cantar repente é como mentir, o cara precisa ter boa memória. O repentista precisa tanto de uma memória farta quanto precisa de ligeireza no repente. Como ele pode ter ligeireza se a memória dele não for bem organizada, e bem cheia de coisas? 

"O cara precisa lembrar, na hora que lhe vem uma idéia de um verso, no instante das palmas, e quando as palmas diminuírem ele tem que entrar cantando, ele tem que saber se aquele verso é dele mesmo ou é um dos milhares de versos dos outros que ele sabe de cor. Muitas vezes o cara canta um verso alheio sem perceber e nunca teve essa intenção, mas passa a ser tido como aproveitador. Melhor evitar.

“Precisa ter boa memória para os nomes das coisas: dos lugares, das pessoas, de todo mundo que está presente naquela noitada, naquela viagem, naquele acontecimento. 

"Tem que saber também as informações dos livros, e aí o céu é o limite, mas ele tem que ter. Não adianta estar cantando sobre o Papa ou sobre um craque do futebol se não hora H errar ou não souber o nome do Papa ou o apelido do craque.

“Precisa ter boa memória também porque às vezes acontece de você ir fazer um verso e o verso não sair muito bom, por umas escolhas erradas de rima, ou qualquer besteira assim. Aí, não sei quantos anos depois, acontece uma chance de você poder voltar àquele verso, você improvisar aquele verso de novo, e o fato de já ter pensado nos problemas dele ajuda você agora a organizar as palavras de uma maneira melhor. O nome disso também é improviso.

“Precisa ter boa memória também para reconhecer o verso alheio que está sendo imitado ou repetido pelo companheiro, para ficar alerta e usar essa informação do modo que lhe convier. Porque acontece de, sem ser combinado, alguém se pegar com um decorado e você ficar queimando óleo pra inventar versos do nada. Pra depois dividirem a bandeja por igual.

“Quando se canta decorado é preciso ter boa memória para não se atrapalhar no que já sabe e já fez. Quando se está improvisando é preciso ter memória para não repetir, e para achar rápido o nome, a data, o detalhe de cada um. 

"Um cara uma vez pagou na bandeja com um cordão de ouro dessa grossura, só porque eu lembrei o nome do sítio onde ele tinha nascido, e das pessoas com quem ele passou a infância. 

"Ficar a vida toda brincando mentalmente com nomes de lugares e de pessoas, agrupando esses nomes pelo tamanho, pela rima, pela cadência, escolhendo rimas por afinidade e deixando-as próximas. Às vezes bastam duas linhas perfeitas para fechar uma sextilha; o resto pode ser deixado para resolver na hora, no calor do momento, às vezes sai até melhor do que o que já veio preparado.”




sábado, 24 de agosto de 2013

3273) A visita do Conde (24.8.2013)




(by Ralph Eugene Meatyard)

A morte repentina do Conde d’Aureville, em 1897, emocionou a Bretanha inteira, e ao seu funeral compareceram autoridades de oito países. Era autor de romances, de crônicas da corte, e de uma vasta correspondência com fidalgos e damas de toda a Europa. Sua coleção de documentos políticos foi doada ao Vaticano, mas sua biblioteca pessoal era o deleite dos pesquisadores de muitos países. Uma noite, no salão octogonal da biblioteca, estavam pesquisando documentos e fichários dois biógrafos (o húngaro Besolz e o alemão Scarblitz) e uma estagiária (a canadense Strumm). Os três trabalhavam a uma distância mediana entre si, por entre as estantes e arquivos. Naquela noite, foi como se uma mão gigantesca tivesse girado num botão. Houve como que uma ionização na atmosfera, o ar estralejou de energia, como se um toque de ponta de dedo emitisse um raio.

Eles se refugiram correndo junto à mesa central do aposento, onde a turbulência parecia ser menos intensa. No centroda sala, numa cascata de tremulações coloridas, apareceu o Conde d’Aureville. Sobranceiro, fornido, o chapéu de pluma arrogante, os copos da espada pronta para o desembainhar. Mas estava sereno, e olhou nos olhos cada um dos três intrusos. Sua voz era calma. Deu a cada um o direito a uma pergunta.

Besolz ergueu o braço. “Sire, estou consultando vossa correspondência, mas não sei quem é a tal Sereia que vos escrevia tanto.”  O Conde o encarou e disse: “Se és pesquisador mesmo basta dizer: é a mesma que um dia dirá sob outro nome que aprendeu comigo a amar a noite.”  Besolz assentiu devagar, com uma cara de quem já conseguiu metade do que queria.

“E tu?”, perguntou o Conde. “Mais de mil cartas militares,” queixou-se Scarblitz. “Tenho estudado muito mas não entendo tantas manobras, tantos armamentos, tantas combinações.” “Nem eu,” disse o Conde. “Limitei-me a copiar as cartas de uns generais para os outros, e dos outros para os uns. Ser político é ter uma dedução correta sobre o que acontece, com dados colhidos pelos outros.” O homem ficou calado. O Conde continuou: “Esquece isso. Procura minhas cartas com os ministros da Polônia e da Transbalcânia. Todo o resto é consequência dessas.”

Virou-se para a moça de rabo-de-cavalo louro. Ela lhe disse: “Senhor, há um código, não é verdade? Não o decifrei ainda mas percebi uma intercalação de letras sem sentido. É um código?” A imagem do Conde tremulou e, com um relâmpago cegante, desapareceu. Os três mal acreditaram no que tinham ouvido. Na manhã seguinte, a canadense apareceu morta durante o sono, com uma expressão de triunfo no rosto claro.


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

3272) David Foster Wallace e o navio (23.8.2013)



Em seu volume de ensaios
Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo (Cia. Das Letras, 2012), David Foster Wallace relata a empreitada que recebeu da revista Harper’s: fazer uma semana de cruzeiro pelo Caribe num navio de luxo, e relatar suas impressões. 

O texto resultante, “Uma Coisa Supostamente Divertida Que Eu Nunca Mais Vou Fazer”, é alternadamente fantástico, engraçado, assustador, intrigante. Como sou um escritor profissional e Wallace também o era, recorro ao senso ético da profissão para supor que ele não inventou nada daquilo. Sua interpretação dos fatos é a mais subjetiva e distorcida possível (ele mesmo o admite várias vezes), mas se os fatos forem mesmo aqueles o mundo é um lugar muito fantástico. Comparado a ele, Salvador Dali é um Mondrian.

As 125 páginas do ensaio são uma mistura do jornalismo gonzo de Hunter Thompson e da nostalgia claustrofóbica de E La Nave Va.  

Documenta a hipertrofia das glândulas consumistas que Henry Miller já tinha diagnosticado em Pesadelo Refrigerado e a cafonice endinheirada de True Stories de David Byrne ou de Heaven de Diane Keaton. 

Tem a voltagem de algumas das reportagens de Bruce Sterling ou William Gibson (só que com humor). E nos faz sentir o tempo inteiro a flutuação escheriana entre um corredor na Ilha de Caras e uma escada num filme de David Lynch. A terrível revelação de que o Sonho Americano é, e sempre foi, uma “bad trip” gerada por um LSD com defeito de fábrica.

Wallace observa, interage, recorda e escreve ora como um filósofo pessimista, ora como um adolescente travesso, ora como um intelectual mergulhando em espirais vertiginosas de associações de idéias dentro de idéias num torvelinho que se exprime por meio de suas famosas notas gigantescas de pé de página que se desdobram diante dos olhos do leitor como bonecas russas contendo outras bonecas, numa construção-em-abismo sem fim. 

Curiosamente, é um olhar tipicamente masculino, embora não machista, pelo tom do seu discurso, a empáfia das descrições técnicas, a auto-ironia peculiar, o prazer infantil das sugestões escatológicas, a camaradagem rude com os serviçais... 

Um grande livro, mas não consigo imaginar uma mulher gostando dele, pelo menos as mulheres para as quais se destina a chamada “literatura do olhar feminino”. Se isso de fato existe, o olhar de Wallace é um olhar masculino, mesmo que ele não dê muita importância aos aspectos de gênero. Ele tem uma irreverência e uma fascinação de rapaz adolescente pelos aspectos numéricos, verbais e técnicos do mundo que está descrevendo. E desenvolveu um estilo que é ao mesmo tempo produto desse mundo e caricatura crítica dele.







quinta-feira, 22 de agosto de 2013

3271) TV Vigilância (22.8.2013)



(Videodrome, de David Cronenberg)

As discussões a respeito do uso da TV daqui pra frente têm que considerar que a TV está deixando de ser apenas espetáculo. Continuamos vivendo na tal “Sociedade do Espetáculo”, mas quando tudo vira espetáculo, o poder magnético do espetáculo se dilui, se redistribui ao longo de toda a cadeia. A TV Espetáculo tenta se manter como pode, mas cresce uma coisa nova: a TV Vigilância, produzida pelos milhares de câmeras espalhadas pelas autoridades nas ruas, praças, prédios, etc.  Agora surgiu sua contrapartida: uma TV Vigilância da população. Com os novos meios de transmissão individual, cada pessoa pode se transformar numa TV ao vivo.

As transmissões recentes da Mídia Ninja varam o dia, a noite, a madrugada, transmitindo ao vivo manifestações ou reuniões, mas sofrem uma crítica constante: “Quem diabo tem tempo para acompanhar uma manifestação em tempo real? Quem pode ficar a noite toda em casa sentado, assistindo uma passeata?” Amigos já me disseram: “Acho simpático, mas prefiro o compacto de 3 minutos sobre a passeata, feito pelas TVs convencionais”.

Eu vejo essas manifestações. Como? Abro uma aba no TwitCasting, solto ali a transmissão da Mídia Ninja, abaixo o som, troco de tela e fico trabalhando, ou então maximizo a imagem e fico lendo numa poltrona próxima. Quando a voz do narrador sobe de tom, olho para a tela. (É assim que vejo futebol, aliás. Não fico grudado no futebol os 90 minutos. Eu deixo ligado – e leio, escrevo, trabalho, toco violão, e só presto atenção “quando o bicho pega”.) Não é espetáculo, é uma parte do ambiente, algo que está sempre ali, como o rádio que acalenta as fantasias das donas-de-casa que cozinham, ou como a muzak que atenua a promiscuidade demográfica dos elevadores.

A TV Vigilância, aliás, não é nada de novo. Darei um exemplo: a TV Câmara e TV Senado. Quem assiste aquelas tediosas transmissões dos bate-bocas e dos bate-papos dos nossos bravos congressistas? Resposta: muito pouca gente, mas é bom saber que votações de leis e defesas de projetos podem ser acompanhados por alguns milhares de indivíduos interessados no que vai ser discutido naquela tarde ou noite. Aliás, a transmissão de algumas CPIs tem dado índices de audiência sensacionais para uma TV “chapa branca”. Esse tipo de vigilância não é para dar Ibope nem para ser assistido no dia-a-dia – mas precisa estar presente no dia-a-dia, para que grupos diferentes de pessoas assistam, de acordo com o interesse de cada um. É o contrário da TV espetáculo, em que “o Brasil para pra assistir o capítulo da novela”. E volto ao meu bordão: se o Governo vigia o Povo, o Povo deve usar a mesma tecnologia para vigiar o Governo.


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

3270) Escrever e cortar (21.8.2013)





Parece que foi Hemingway, ou Graciliano Ramos, ou Carlos Drummond, ou John Ruskin, ou Armando Nogueira, quem disse: “Escrever é cortar palavras”. 

Um conselho útil, uma boa frase de efeito. Mas tem um porém. Cortar o que? Para cortar, é preciso ter escrito alguma coisa. E se alguma coisa foi escrita e precisa ser cortada, é porque foi escrita em excesso. De modo que o conselho tem duas partes, com a primeira subentendida; o conselho completo seria: “Escrever muito, e depois sair cortando”. 

O que aliás tem sintonia com outra frase famosa, esta sim, de Hemingway: “Escreva bêbado. Revise sóbrio”. Conselho que pode incomodar os abstêmios, de modo que podemos substituí-lo por: “Escreva com entusiasmo, corte sem piedade”.

Não vale para todo mundo, é claro. Acho que James Joyce, Balzac, cortavam muito pouco. Cada vez que recebiam as provas da gráfica, enchiam as margens com novas frases, novos parágrafos inteiros. E os tipógrafos ficavam malucos. (Refazer essas coisas, naquele tempo, dava um trabalho insano.) 

Guimarães Rosa cortava muito, mas o texto não se reduzia, porque tudo que ele cortava substituía por outra coisa. (As antigas edições de seus livros, pela José Olympio, reproduziam páginas inteiras de provas revisadas por ele em letra desenhadinha, meticulosa, legível demais, como se pedisse desculpas aos tipógrafos.)

Escreva entusiasmado (se for esse o seu temperamento como escritor), escreva com exuberância, com exaltação, jogando no papel tudo que lhe passar pela cabeça. Descreva com detalhes, prolongue os diálogos, tente cobrir com palavras tudo que sua imaginação lhe sugerir. Naquele momento de escrever, abre-se uma janela em nossa mente, que depois se fecha. O que você está acessando naqueles minutos já não acessará na manhã seguinte; então, despeje tudo na página, antes que o portal se feche.

No dia seguinte, pegue uma caneta e vá cortando, sem pena. Veja entre essas frases qual delas merece ficar; veja qual delas já contém (ou sugere) as que estão indo para o lixo. 

Em geral, quando escrevemos, repetimos muito. Em diálogos principalmente. Dizemos a mesma coisa de duas ou três maneiras diferentes. Estamos ainda no processo de descoberta, por aproximações sucessivas. No dia seguinte, começa o processo seguinte, o de cristalização. O que estava ali só para ajudar, só para servir de veículo, pode desaparecer. 

Como um copo de água com sal, onde a água se evapora e deixa o sal no fundo. O sal é o texto que vai para o livro. Mas se esse texto for realmente bom, será possível sentir nele a presença da água que o trouxe até ali. 

Corte sem piedade. Cada palavra que você corta aumenta o valor das que ficam.







terça-feira, 20 de agosto de 2013

3269) Os ódromos (20.8.2013)



Circula a notícia de que a PM carioca sugere a criação de um Manifestódromo onde venham a se concentrar os novos protestos populares, que estão causando transtorno à cidade. É como se dissessem: “Um milhão de pessoas uma vez por ano, tudo bem, mas 500 gatos pingados todo dia não pode!”.

Há um paradoxo curioso e talvez insolúvel na criação de um espaço delimitado e oficial para protestos públicos. Tudo que os governos e as autoridades querem é controlar esses protestos, dizer o que pode, o que não pode, como vai ser, como não vai. O governo quer ser o coreógrafo do protesto, o carnavalesco da manifestação. Demarcar um lugar, estabelecer um horário (“é permitido protestar aqui das 6 às 8 e meia...”), disciplinar a produção sonora (“bater latas pode, soltar fogos não”), gravar e filmar quem entra e quem sai... Qualquer governo fará o possível para conseguir isso.

Por outro lado, tudo que manifestantes, protestadores, anarquistas, baderneiros, vândalos e rebeldes em geral querem é justamente não se deixarem controlar dessa forma. Para eles, liberdade concedida não é liberdade, protesto consentido não é protesto, revolta autorizada não é revolta. E têm razão, não é mesmo? Talvez o resultado prático traga contratempos para todo mundo, inclusive para mim (que fico preso no engarrafamento) mas filosoficamente não posso contestá-los.

Tudo que termina em “ódromo” fica com um cheiro de coisa fake, coisa falsificada, marca de fantasia. Não sei se foram Brizola e Darcy Ribeiro que batizaram com esse nome o Sambódromo carioca (foi Darcy, com certeza, quem criou a expressão “Praça da Apoteose”). O modelo, claro, foi o Autódromo de Jacarepaguá; durante a construção da Passarela do Samba, o termo “sambódromo” surgiu na imprensa e acabou pegando. Logo depois, veio o Camelódromo da Rua uruguaiana, para onde foram recambiados todos os camelôs e ambulantes que transformavam o centro do Rio num enorme mafuá. Hoje, o Camelódromo funciona que é uma beleza, vive cheio de gente, é um dos lugares mais tupinipunks do Rio de Janeiro, e o centro está virando o mesmo mafuá de antigamente.

Sambistas, camelôs, manifestantes... Esse tipo de gente é incontrolável, tanto pela sua mania de só fazerem o que querem quanto pelo fato de que parecem brotar de um formigueiro inesgotável. Muitas autoridades adorariam montar uma frota de cargueiros e embarcá-los para a Mauritânia ou a Indonésia. Como não podem, recorrem às pranchetas dos técnicos e ao concreto das empreiteiras. Talvez daqui a poucos anos o Rio tenha um “ódromo” a mais, o que não quer dizer que terá manifestantes, baderneiros ou vândalos a menos.


domingo, 18 de agosto de 2013

3268) O mundo do sucesso (18.8.2013)






(by Laurie Lipton)



Um escritor famoso faz uma viagem para outro país e, em cartas para os amigos, comenta a recepção que teve e a vida social em que mergulhou. Dois trechos:

1) “Esta cidade me engoliu como uma planta carnívora engole uma mosca. Tenho vivido sem fôlego há cerca de cinquenta dias. A vida aqui consiste em uma série de encontros marcados com uma ou duas semanas de antecedência: almoço, coquetel, jantar, festa à noite, são estas as várias fases de um dia, permitindo-me conhecer novas pessoas o tempo todo, para marcar novos almoços, novos jantares, novas festas e assim por diante, ao infinito. (..) Isto aqui não é a terra do imprevisto, mas é a terra de uma vida mais rica, onde todas as horas do dia estão preenchidas; a terra que nos dá a sensação de estar em plena atividade, mesmo que muito pouca coisa seja feita, a terra onde a solidão é impossível (só passei sozinho uma única noite, das cinquenta em que estou aqui).”

2) “Não me sinto feliz e estou terrivelmente rouco devido à laringite. A farra aqui é muito intensa. Você vai para um almoço com oito pessoas e no dia seguinte cinco delas o convidam para jantar. Assim, tudo que você consegue fazer é comer, beber e se entediar”.

Tudo indica que se trata do mesmo sujeito falando sobre o mesmo ambiente, mas as duas cartas têm origem diferente. 

A primeira é do italiano Ítalo Calvino falando sobre sua estadia em Nova York a partir de 1959, quando recebeu uma bolsa para passar seis meses nos EUA. 

A segunda é do norte-americano Raymond Chandler falando sobre sua estadia em Londres, em 1955, quando viajou para a Inglaterra tentando fugir à depressão causada pela morte de sua esposa.

Calvino era um rapaz de 36 anos, cheio de entusiasmo; Chandler um homem de 67, alquebrado pela bebida e pela perda recente de Cissy. Os dois, no entanto, transmitem em poucas linhas a sensação de vertigem do indivíduo caído de paraquedas no mundo da boemia e do sucesso. 

Um mundo onde não há distinção entre noite e dia, entre dentro e fora. Onde se dorme de luz acesa, vestido, com o quarto cheio de gente. Onde taças cheias de champanhe milionário esquentam esquecidas no parapeito da janela ou na bancada do banheiro. 

Onde há sempre alguém rindo e alguém gritando, onde a música não pára, onde se olha pela janela e não se sabe se é o fim da tarde ou o amanhecer, onde carros cheios de gente inebriada e lânguida percorrem a cidade, fechando um bar aqui, abrindo um bar acolá, onde as contas são pagas sem ser conferidas, onde as histórias são contadas dezenas de vezes, onde as gargalhadas se misturam na mesma algazarra que ora parece melodia, ora raiva, ora terror.









sábado, 17 de agosto de 2013

3267) Armagedon das abelhas (17.8.2013)




Na Bíblia, as pragas do Egito e outros fenômenos apocalípticos envolviam manifestações de caos no mundo dos animais e dos insetos (pragas de gafanhotos, rãs, etc.). Na vida real, são as abelhas que estão dando o alarme. Falei em 2007 aqui nesta coluna (“A debandada das abelhas”: http://bit.ly/11PVSo9) sobre o fenômeno da “Desordem do Colapso das Colônias”, que nos últimos seis anos dizimou cerca de 10 milhões de colmeias. Estudos recentes indicam que o pólen recolhido por essas abelhas está contaminado por um verdadeiro coquetel de pesticidas; já foram descobertos 21 agrotóxicos diferentes em uma única amostra.

Os cientistas dizem que a absorção de fungicidas era considerada inofensiva para as abelhas, pois eles se dirigem contra a população de fungos. A gravidade da situação trouxe um elemento de tensão a mais entre a Rússia e ao EUA. A Rússia questiona o uso de inseticidas chamados “nicotinóides”, que, afetando a população das abelhas, pode desequilibrar a cadeia ecológica e comprometer a produção de alimentos do mundo inteiro. Houve irritação, dias atrás, num encontro entre Vladimir Putin e o Secretário John Kerry. Dois dos principais nicotinóides (Actara e Cruiser) são fabricados pela Syngenta, baseada na Suíça, parte de um grupo que inclui outros gigantes como Monsanto, Bayer, Dow e DuPont e controla quase a totalidade de pesticidas, plantas e sementes geneticamente modificadas.

Críticas pesadas vêm sendo feitas ao governo Barack Obama pela promulgação de leis que liberam as grandes empresas para produzir e comercializar material geneticamente modificado, e pelo fato de que o presidente colocou pessoas ligadas à Monsanto (como Roger Beachy, Michael Taylor e outros) em postos-chave do governo. O peso político dessas empresas, e o modo como seus lobistas estão incrustados em Washington, não permite imaginar que venham a perder influência no futuro próximo.

Sem querer ser apocalíptico, mas as cadeias ecológicas são tão bem encaixadas que não precisa de muita coisa para produzir desastres localizados. Basta lembrar episódios de proliferação descontrolada como a de coelhos na Austrália, de pardais nos EUA, de abelhas africanas nas Américas. A ficção científica já imaginou inúmeros cenários de catástrofes ecológicas globais onde há mais interesse em explorar as consequências do que as causas, mas como ainda estamos na fase das causas, são elas que nos interessam do ponto de vista prático. Com os milhões de toneladas de agrotóxicos despejados no mundo todos os anos, é só uma questão de tempo. A cada década que passa, as possibilidades de um colapso ecológico se multiplicam por todos os lados.


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

3266) "Breaking Bad" final (16.8.2013)



Começou a temporada final do seriado (TV a cabo, HBO) Breaking Bad. O derradeiro capítulo tinha deixado alguns milhões de pessoas penduradas na borda da falésia, ou no parapeito de um arranha-céu. Houve o salto. O vácuo. O negror de um tempo. E de repente o retângulo negro se ilumina. Surge um homem de barba ruiva e óculos, arrombando uma casa abandonada, onde garotos praticam manobras bobburnquistianas numa piscina vazia. Ele invade essa casa onde há um nome próprio cruelmente pichado numa parede interna entre as ruínas, e atravessa uma cenografia que transmite de modo competente a idéia de longo tempo passado. Pega o que tinha ido pegar, e cai fora dali, não sem cruzar casualmente com alguém.

Breaking Bad é história de uma descida ao inferno de um sujeito que acha ter carta-branca para defender sua família. Nerd incurável, o negócio de Walter White não é droga: é planejamento, competência, ciências exatas e – agora, depois de tudo que passou – instinto assassino rumo ao topo do pódio. A lentidão bouleversante da terrível certeza de seu adversário Hank, uns olhos claros como olhos de zumbi de lenta iluminação, depois que caiu a ficha, ou melhor, a tampa de bueiro. O folhear febril dos dossiês, num clip de resumo. Um grande momento de tragédia grega, ou, no mínimo, aqueles momentos em que o personagem descobre o que a platéia já sabia há tempos.

Uma esgrima verbal em normal e itálico num balcão de lava-carros. Skyler vira Mrs. Heisenberg pra cima de uma intrusa. Um interminável diálogo Repo Man entre dois malucos, que pode dar aos detentores da franquia Star Trek pretexto para uma bilionária indenização. Cinco milhões de dólares de mão em mão e ninguém quer, dinheiro de sangue, dinheiro não vale nada mesmo, dinheiro na mão é vendaval. Momentos de tensão. Um ping-pong rápido de grafologia, dedicatórias em plano de detalhe, o espectador, saturado de informação, assinando embaixo de cada desfecho, ou quase todos.


O confronto em que A interpreta uma coisa para B com quem dialoga e outra para a platéia subentendida. O momento do arranque de máscaras de ambos. Hank não é um grande detetive num ranking sherlockiano, mas é um cara pentelho, vasculhador, que tem a intuição correta sobre os crimes que têm acontecido, mas não conseguiu (talvez por cegueira emocional, preventiva) enxergar a verdade que vê agora.  Dois indivíduos, um que se defende como um tigre, outro que tem todos os motivos para o ódio e a vingança, cada qual com a família do outro nas mãos. Momento sertanejo, com “slide guitars” tipo Sérgio Leone, num hardboiled bolañesco em Albuquerque, Estado do Novo México.


quinta-feira, 15 de agosto de 2013

3265) Os ensaios de Wallace (15.8.2013)





Este volume de ensaios de David Foster Wallace (Cia. Das Letras, 2012) tem um título que parece uma correntinha de clips: Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo (tradução satisfatória para o original: “Getting Away from Already Pretty Much Being Away From It All”). A tradução é de Daniel Galera e Daniel Pelizzari, que cortam um dobrado, com competência, para traduzir a prosa errática, precisa, absurdista de Wallace. O livro tem ensaios variados: um texto curto e perceptivo sobre o humor na obra de Kafka; uma análise em câmera lenta e stop motion dos prodígios que Roger Federer realiza numa quadra de tênis; uma aula magna em que ele diz aos estudantes, basicamente, que a vida é chata, e que cabe a nós torná-la excitante e maravilhosa através do esforço conjunto da imaginação e da vontade; uma reportagem gastronômica que desanda num questionamento do nosso direito de matar lagostas em água fervente.

Wallace é uma mistura de satírico feroz e humanista compassivo, tão frequente na literatura dos EUA. Ele consegue, num mesmo parágrafo, mostrar todo o ridículo do comportamento de um grupo de pessoas e ao mesmo tempo nos despertar uma certa simpatia por elas. Isto é mais visível nos dois primeiros (e mais longos) ensaios do livro. O primeiro, que lhe dá o título, é sua cobertura da Feira Estadual de Illinois, uma dessas feiras agro-industriais-precuárias que misturam comércio e lazer. Eu gostaria de ver o choque cultural que esse texto produziria num habitante de um grotão qualquer, alguém que não vê TV e tem apenas uma vaga idéia do que sejam os EUA. O próprio Wallace, que passou a infância e a adolescência em Illinois, quase se apavora diante daquele evento de desbragado consumismo, mau gosto, glutoneria, tacanhice, ostentação kitsch e ingenuidade caipira. E ao mesmo tempo ele parece estar pondo o braço sobre os ombros do leitor e dizendo: “Pssst... nós também somos assim”.

O outro ensaio é “Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer”. Outra reportagem encomendada, desta vez sobre um cruzeiro num navio de luxo pelo Mar do Caribe, em “uma entre as mais de vinte linhas de cruzeiro que operam atualmente a partir do sul da Flórida” (o ano era 1995, mas ouvi relatos recentes de uma viagem assim; não mudou muita coisa). Comentarei em detalhe esse texto numa próxima coluna, mas basta lembrar que Wallace, até por não ser um jornalista, e sim um escritor, mergulha nessas empreitadas de corpo inteiro e alma aberta, e equilibra de maneira prodigiosa o olho atento, o espírito incrédulo, o humor ferino e uma prosa permanentemente criativa sem traços de beletrismo.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

3264) Pentagrama misterioso (14.8.2013)




Assim como os cristãos têm uma tendência a ver a figura de Jesus em manchas de infiltração na parede, pedaços de pão cobertos de mofo, carapaças de caranguejo e outros suportes improváveis, o pessoal das Teorias da Conspiração costuma enxergar Satanás a torto e a direito. O ótimo site “io9” publicou há pouco as fotos de um local no Cazaquistão onde teria sido avistado “um Pentagrama diabólico” traçado em escala gigantesca na paisagem. Quem vê essas coisas, provavelmente, são adolescentes e aposentados com tempo para passear o dia inteiro no Google Earth e descobrir coisas suspeitas na paisagem, assim como tem gente que passa o dia inteiro filmando o céu e encontrando objetos que voam e que eles não são capazes de identificar.

Pentagrama, ou pentáculo (também pentaclo) é o termo que descreve a estrela de cinco pontas, às vezes inscrita num círculo. É essa a imagem que o pessoal flagrou no Google Earth, de uma altura de 400 metros ou 1.200 pés. (Aqui: http://bit.ly/1crYTRs.) Autoridades do Cazaquistão explicaram que se trata de um parque circular, cortado por alamedas (margeadas por algumas árvores, bem visíveis na foto) que traçam a forma de uma estrela. Como a obra data dos anos da União Soviética, é normal o uso da estrela, bastante comum em bandeiras e símbolos da época.

Teorias conspiratórias e místicas fazem o tempo todo esse tipo de leitura de formas e números elementares. A estrela de cinco pontas pode ser um símbolo satânico, mas pode ser também a estrela soviética, a estrela da Texaco, a estrela do xerife do faroeste, a estrela dos Tupamaros, e mais uma porção de coisas. (Algum tempo atrás, alguém descobriu pentagramas no mapa de Washington D.C.; qualquer cidade com traçado paralelo e avenidas oblíquas pode estar coberta de pentagramas, dependendo do ângulo de inclinação dessas diagonais.) Pessoas com manias de números atribuem sentidos cabalísticos ao 3, ao 7, ao 12 e assim por diante, e não lhes faltam exemplos, porque não nos faltam milhares de casos em que esses números aparecem, por serem números básicos. (Quero ver gente me apontar a presença reiterada, na natureza ou na cultura, de números como o 611 ou o 1573.)

Formas geométricas básicas estão por toda parte. A pirâmide, o círculo, a espiral, a cruz (ou o X)... Quando não estão na natureza estão na cultura, porque resultam das nossas experiências visuais mais simples de desenho, de produção de símbolos. Cada um vê nessas formas o que sua cultura lhe ensinou a ver. Antes do século 20, a suástica era um símbolo presente em decorações, em vasos, em insígnias religiosas. O nazismo a contaminou de horror e de opróbrio.


terça-feira, 13 de agosto de 2013

3263) Paulo César Pinheiro (13.8.2013)





Cerca de duas mil músicas compostas, mais de mil gravadas: Paulo César Pinheiro é um dos grandes compositores da MPB. Tido, em geral, apenas como letrista, por ter sido assim que começou, depois passou a compor melodias próprias, gravou discos cantando, publicou livros de poemas e um romance. É um desses compositores cuja obra sustentaria a programação inteira de uma rádio, e de quem seria possível criar uma lista de dezenas de sucessos para surpreender o público dizendo: “todas estas músicas são do mesmo autor”.

Histórias das Minhas Canções (Editora LeYa, 2010) reconstitui a história por trás de algumas dessas canções. Às vezes é o processo criativo que Paulo César desvenda, o modo como uma idéia inicial vai se transformando em palavras e estas vão puxando novas idéias para dentro. Outras vezes é a história em torno da canção: o que motivou os parceiros, as circunstâncias da composição, etc. Às vezes uma música fica vários anos sem ser terminada, esperando um verso, um refrão. Outras vezes é feita em poucos minutos; muitas vezes (no caso de PCP) para responder um desafio tipo: “duvido você botar letra nessa melodia agora mesmo”.

Encontrei nesse livro a história de alguns grandes clássicos da minha memória afetiva pessoal (“Canto das Três Raças”, “Pesadelo”, “Lapinha”, “Tô voltando”, “Vou deitar e rolar”...). Algumas canções marcantes que ajudaram a consagrar o poeta (“Espelho”, “Além do espelho”, “Um ser de luz”, “Cordilheiras”...). As parcerias com Lenine (“Candeeiro encantado”, “Leão do Norte”). As canções de sensibilidade cósmica (“As Forças da Natureza”) e de futurismo apocalíptico (“O dia em que o morro descer e não for carnaval”). Um repertório gigantesco que começa com o samba, mas se amplia em todas as direções a partir do samba.

Fiquei conhecendo algumas letras extraordinárias, cuja música completa pretendo rastrear no YouTube. E algumas experiências lúdicas como “De palavra em palavra”, montada com linhas das canções de João Gilberto, e “Nonsense”, montada com frases em português que também podem ser ouvidas em francês (“Longe / l’ ange / tentar- / tant tard / -se persuadi-la / se perds soir d’île..”). Filho de um paraibano de Campina Grande, Paulo César Pinheiro tem um veio profundo ligado com o Nordeste, outro com a África e a cultura africana, mas é acima de tudo um menino nascido perto da Praia de Ramos e que aprendeu a fazer samba na Mangueira. Seus versos têm a técnica impecável dos eruditos e o suingue imprevisível  da cultura oral, da fala das esquinas, da gíria das ruas; os versos como jangadas acompanhando o ondear das águas da melodia e do batuque.


domingo, 11 de agosto de 2013

3262) Editores (11.8.2013)




(by Arcimboldo)

Autores vivem reclamando que as editoras precisam “prestigiar o autor nacional”. Essa queixa deveria ser dirigida não às editoras comerciais, mas aos programas de formação de bibliotecas, por exemplo. (Os quais, aliás, prestigiam bastante.) Uma editora particular é um risco auto-sustentado. Os livros precisam pagar as despesas materiais da editora, e dar um lucro que possibilite ao editor as duas coisas que se faz com lucro: botar uma parte em sua conta pessoal e reinvestir outra parte.

Administrar uma editora não é diferente de fazer filmes ou manter um jornal. Há um trabalho artístico ou de comunicação a ser realizado, mas isso precisa render dinheiro, a menos que todos os envolvidos tenham outra fonte de renda e façam aquilo apenas por realização pessoal. Todo editor sonha que lhe caia nas mãos um livro que venda muito, que em pouco tempo multiplique seu capital e lhe permita reinvestir na estrutura física da editora: melhores salas, melhores computadores, profissionais mais qualificados, com melhores salários, etc. E também reinvestir nos autores – publicar livros com menor apelo comercial, mas de que a editora gosta, e acha que vale a pena revelar. O que um editor não deveria fazer é apostar todo seu capital apenas em livros difíceis, ou apenas em autores desconhecidos, ou apenas em autores ainda imaturos mas que são primos da namorada ou cunhados do irmão dele.

Se eu fosse editor, procuraria títulos que pudessem se pagar rapidamente, e que fossem marcantes de alguma forma, para chamar a atenção para o nome e o catálogo da editora. Às vezes, editoras pequenas surgem do nada e se tornam grandes porque descobriram um filão editorial a que ninguém estava dando muita atenção. Outras vezes, um editora pequena emplaca um best-seller, ganha rios de dinheiro, mas o proprietário, em vez de reinvestir, gasta tudo em carros de luxo e cruzeiros marítimos, e se apavora quando o segundo livro lançado não rende tanto quanto o primeiro.

“E o editor grande, que teria cacife para bancar o jovem autor?”, pergunta alguém. A resposta é que isso é uma possibilidade, mas cada editor só publica o que gosta. Se eu for dono de uma editora ninguém pode me obrigar a publicar um livro que eu (=minha equipe) ache ruim ou desinteressante. Se o livro não é bem escrito ou não tem um tema que valha a pena, por que eu o publicaria? Que o autor bata em outra porta. Por outro lado, acho meio covardes os editores que dizem: “Seu livro é excelente, mas não publico porque acho que vai vender pouco.” Se ele gosta e não publica, a única desculpa possível é que já esteja endividado demais e não queira correr o risco de aumentar o prejuízo.

sábado, 10 de agosto de 2013

3261) História de um Brasil (10.8.2013)




Nossa fantasia de ascensão social, cem anos atrás, no que foi chamado a “Belle Époque” carioca, era em torno de uma fantasia vagamente aristocrática, imitação de uma aristocracia vista e interpretada à distância, por sinais exteriores que tanto podiam sugerir refinamento quanto frivolidade, tanto nobreza de princípios quanto brutalidade de processos. Nos anos 1880, uma certa classe média urbana tinha Paris como norte magnético, e como ideologia um Iluminismo pragmático, e tentava transpor para a convivência republicana os investimentos acumulados na monarquia. Trocava-se o veículo na esperança de se conseguir manter o trajeto; o discurso, como se dá em tantas revoluções ou golpes de Estado, ganhava um tom de triunfalismo, que serviu naquele momento para fomentar a ilusão de que grandes mudanças estavam ocorrendo no país.

A abertura de portas promovida pela República, a mudança parcial nas regras do jogo e a presença de novos jogadores na mesa (principalmente os militares) ajudou a cultivar a sensação de que o país mudara, embora a mudança mais perceptível só ocorresse com o populismo da ditadura Vargas, que se manteve no poder pagando uma parte da dívida social que a primeira República assumira e vinha administrando em banho-maria.

A segunda metade do século 20, partido ao meio pela II Guerra, trouxe uma mudança no andar de cima, com a hegemonia cultural norte-americana sucedendo à européia. O Norte magnético deixou de ser Paris ou Lisboa, transferiu-se para Nova York ou Hollywood, e desta vez a invasão tecnológica (cinema, rádio, TV) passou o rodo nas ruínas da mentalidade aristocrática. Sem extingui-la de todo, o que talvez seja impossível: subsiste em bolsões urbanos afluentes e no avesso-da-costura representado por um certo tipo de feudalismo rural à moda antiga, que por sua vez está sendo empurrado para os recantos do mapa por um ruralismo predatório, impessoal, expansão da mentalidade urbano-industrial, impiedosa, voraz, mas que pelo menos se justifica, diante do delírio financeiro transnacional, com o álibi da produção de alimentos e da geração de empregos.

O lema utópico da bandeira positivista, “Ordem e Progresso”, revelou aos poucos sua verdadeira natureza: “Controle Ideológico e Acumulação de Capital”. A fantasia de ascensão social de hoje dispensa o aristocratismo, o refinamento, o iluminismo. Em seu extremo mais saudável, resume-se a trabalho honesto e consumo conspícuo. No extremo oposto, é a filosofia de enriquecimento a qualquer custo, a demonstração constante do poder do dinheiro, e o desprezo acintoso por qualquer atividade que não envolva grandes lucros ou generosas despesas.


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

3260) Mídia Ninja e Pasquim (9.8.2013)




A entrevista no “Roda Viva” (TV Cultura) com os organizadores da Mídia Ninja (Bruno Torturra) e Fora do Eixo (Pablo Capilé) veio depois da ida àquele programa dos organizadores do Movimento Passe Livre, um dos responsáveis pelas manifestações dos “20 Centavos” em junho. Eram jovens desconhecidos (eu pelo menos não sabia direito quem eram) sabatinados por velhas raposas da imprensa, que lhes pediram contas de seus atos com aquele ar meio paternal e meio sobranceiro com que um bedel entediado interpela estudantes que flagrou reunidos no banheiro, cochichando entre si, em atitude suspeita. “Bora, bora, o que diabo vocês andam aprontando?”.  Este, aliás, seria um bom título para esses programas, em que jovens na faixa dos 30 anos explicam aos profissionais da informação o que está acontecendo no mundo. Como disse Dylan: “Porque alguma coisa está acontecendo aqui, mas você não sabe o que é, não é mesmo, Mr. Jones?”.

Alberto Dines, no último bloco, evocou uma semelhança que a cada minuto me vinha à mente, a semelhança dessa nova TV-de-Rua com a imprensa alternativa dos anos 1960-70. Quando O Pasquim surgiu eu tinha 19 anos e via os jornais comentando com desdém aquele jornaleco que já começava esculhambando a si mesmo a partir do nome. Comentários tipo: “Eles mesmos não sabem se é um jornal de humor, de política, de cultura ou de mulher pelada”. Para a imprensa da época, as gírias, os palavrões (inclusive os censurados, que davam origem a expressões saborosas como “vai pra asterisca que asterisquiu!”), a bagunça gráfica, a salada ideológica, tudo isso era uma afronta à grande imprensa da época, que era tão penteadinha, barbeada e cheirando a loção quanto a de hoje.

Fala-se no mundo da ciência que se um cientista velho diz que alguma coisa é impossível ele provavelmente está errado. No mundo da cultura, quando um crítico velho diz que alguma coisa é ininteligível é porque não sabe mais onde pôs os óculos (que estão na testa). Não conheço as atividades do Fora do Eixo (um coletivo de produção de eventos por todo o Brasil), mas tenho acompanhado transmissões da Mídia Ninja há um mês, madrugada adentro. Um celular na mão, um computador (e sua bateria) na mochila, uma conexão 3G, um saite para distribuir. Para quem só tinha as TVs abertas e a GloboNews, virou uma maneira diferente de ver os fatos públicos. Não sei no que vai dar isso tudo. O que os distingue da imprensa velha (a da minha geração) não é o fato de que saibam, porque eles também não sabem. É o mergulho nas novas tecnologias, que geram novas relações, que geram novas idéias. Se são boas (e para quem são boas), o tempo dirá. Vamos ligar e assistir.


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

3259) Fantasma no Cassino (8.8.2013)




O smoking alugado é do número certo, mas até os números são sujeitos a erro, pensa ele, e em seguida percebe que tem pensado muito essa frase ultimamente. Também pudera. O mercado de ações está nervoso. As estatísticas da guerra assustam. Os resultados da roleta e do bacará são os mais inesperados possíveis. Um garçon sorri e se curva com a bandeja, ele recolhe a bebida sem olhar o que é, e, sem se perguntar por quê, esvazia a taça de uma vez só. Vira à direita e vê-se de novo naquele espaço central de uma das alas do Hotel, onde há uma enorme gaiola cheia de araras vivas e multicores. Ele se esgueira por entre a multidão que ali circula, bebendo, flertando, dando gargalhadas escandalosas, e transpõe o limiar da grande sala circular dos jogos.

Engraçados, os números. Suponhamos alguém com memória eidética, exata, perfeita até o derradeiro dígito, como se diz de alguns gênios, alguns autistas ou alguns “idiots savants”. E que passasse uma noite assim, febril, em brasa, cabeça-a-mil elevada ao cubo, insone, acordado a poder de fornalha mental, álcool e qualquer outro aditivo que lhe estendessem. E com isso descobrisse a fórmula de acesso aos mundo transmaterial. Que é uma senha, um password numérico como os cofres dos Bancos empregam. O mundo transmaterial tem uma senha numérica, um string de alguns milhões de dígitos que estavam ali, à espera do primeiro ser humano que conseguisse percebê-los, decorá-los, recitá-los quantas vezes lhes fosse pedido. E foi ele. Leu o número em repetidas noites no cassino.

O Homem sempre procurou o famoso “nome de Deus”, mas entre as letras, não entre os números. Ele teve vislumbres de noites que passou no Hotel Cassino. A sereia mergulhando na piscina aquecida à meia noite. O ratatá do helicóptero que numa madrugada quente desembarcou o homem de terno branco, charuto e sorriso aberto. A discussão nos degraus da torre, que ele, subindo a escada, entreouviu entre um casal num patamar mais acima; e escutou, quase sem querer, uma revelação terrível. A visita à cozinha gigantesca, a visão do Inferno dos leitões e dos bovinos. 

Agora ele cruza o salão de baile. Sabe que se se detiver diante de cada candelabro, cada pintura, cada corredor de pé direito imenso, ou se tomar o estreito elevador de porta pantográfica, mais cedo ou mais tarde virá parar aqui. Ajeita o smoking. O número era para ser outro. Mas ele descobriu O Número. Deixou o Real em curto circuito. Tornou-se eterno no Tempo, mesmo à custa de virar um loop de si mesmo. Um garçon sorri e se curva com a bandeja, ele recolhe a bebida sem olhar o que é, e, sem se perguntar por quê, esvazia a taça de uma vez só.


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

3258) O Conselheiro Aires (7.8.2013)





Machado de Assis é o rei do “innuendo”, da insinuação, das nuances, da arte de sugerir uma impressão sem dizê-la com todas as letras, capaz de nos descrever a roupa de uma mulher com o propósito de que a imaginemos despida. 

No Memorial de Aires (1908), seu romance crepuscular, ele conta o amor nunca concretizado do Conselheiro Aires, um diplomata sessentão aposentado, pela viúva Noronha, que é jovem e perdeu o marido após dois anos de casamento. Vendo-a no cemitério, Aires, que ali passeia com a irmã, Rita, acha a viúva bonita, mas Rita lhe garante que ela amou muito o esposo, foi feliz com ele, e não voltará a casar. A viúva, aliás, chama-se Fidélia, mas o Conselheiro graceja: “O nome não basta para não casar”. 

Note-se que tanto o Conselheiro quanto Rita também são viúvos, e o romance explora este trio inicial de casais fraturados pela morte de um dos cônjuges. Irmão e irmã comentam a possibilidade de que a viúva Noronha case com ele. Aires fica em dúvida: “Com os meus sessenta e dois anos?”. Ela contesta: “Oh! Não os parece: tem a verdura dos trinta”.


Aires torna-se amigo da viúva, acha-a “saborosa”, mas ao ler um poema de Shelley cita com melancolia: “I can give not what men call love”, e traduz: “Eu não posso dar o que os homens chamam amor... e é pena!”. 

Que minha alma arda nas fogueiras se estou sendo infiel à intenção de Machado, mas maldo que o sentido que ele dá à palavra é avesso ao sentido platônico de Shelley no poema original (“One Word is Too Often Profaned”). Na minha terra, “o que os homens chamam amor” é sexo, e é isto que Aires receia não poder dar à viúva. O Conselheiro é um sexagenário introvertido, cauteloso, do tipo que acha melhor não se arriscar do que pagar um mico.

Em maio (o livro é em forma de diário) ele sonha que pede a viúva em casamento e ela o aceita. Mas vai se desiludindo: 

“Está na idade de casar, e pode aparecer alguém que realmente a queira para esposa. Não falo de mim, Deus meu, que apenas tive veleidades sexagenárias; digo alguém de verdade, pessoa que possa e deva amar como a dona merece”. 

Aires torna-se testemunha, e às vezes confidente, do romance inesperado que surge entre a viúva e o jovem Tristão. No ano seguinte, os dois casam e embarcam para a Europa. Assim o Conselheiro descreve a despedida: 

“Não acabarei esta página sem dizer que me passou agora pela frente a figura de Fidélia, tal como a deixei a bordo, mas sem lágrimas. Sentou-se no canapé e ficamos a olhar um para o outro, ela desfeita em graça, eu desmentindo Shelley com todas as forças sexagenárias restantes”. 

O Conselheiro descobre, tarde demais, que ainda tem “a verdura dos trinta”.