sábado, 30 de junho de 2012

2910) Hora do recreio (30.6.2012)







(esculturas: William Bally, 1831)


A pior aula é a de matemática, pra não falar da de geografia, se bem que a unanimidade é a de desenho. O engraçado é que cada um de nós, mesmo detestando todas, detesta mais uma do que as outras. Às vezes discutimos tanto isto que perdemos minutos preciosos em que poderíamos brincar no pátio, jogar bola na quadra ou no ginásio, zoar na lanchonete. Vida de aluno interno é todo dia a mesma coisa, a mesma coisa, é de enlouquecer. Ainda sirenes tocando toda noite. Um de nós disse um dia, “nós somos um loop de imagens, eu tenho a impressão que todo dia eu digo isso de novo”, e rimos, e depois outro disse, “não, eu acho que nossos pais nos botaram aqui pra se ver livres de nós, eles têm a esperança que a gente se suicide”, e rimos, e outro disse, “nós não somos estudantes, somos espiões estrangeiros, e na verdade estamos num campo de concentração, eles nos deram uma droga pra gente pensar que tem 10 anos de idade e está no colégio”, e houve uma risadaria geral, na mesma hora cada um de nós pegou uma arma, uma régua (metralhadora), uma bola-de-papel (granada), e começamos a guerra, “morre, espião!”. Estamos em guerra (as explosões, os sinos). Nossos pais, na visita semanal, nos dizem que apesar do sofrimento e das baixas estamos ganhando, mas as despesas estão cada vez maiores e é melhor continuarmos aqui do que ir lá para fora. Sobem nuvens grossas de fumaça preta. Temos mais raiva da guerra do que das aulas. O bom mesmo são os recreios: uma vez na manhã, outra depois do almoço, outra no meio da tarde. É tanta coisa boa que ficamos ansiosos porque não podemos ter tudo ao mesmo tempo, os snacks e os refris da lanchonete, o corredor de fliperamas, as armas do play, os wargames do lan-room, e nós nos empurramos, nos acotovelamos, brigamos por uma cadeira, por um monitor, por uma bola, por uma posição no time. Se fosse só isso! Mas temos as aulas, a obrigação de estudar história, ética pública, bases constitucionais, metodologia das ciências, “para quando houver paz”, bradam os professores. Um dia um de nós quis saber por que motivo não havia meninas no colégio, e alguém disse, “porque eles estão nos treinando para ser homossexuais”, e nós rimos, e outro disse, “não, porque eles vão nos mandar para morrer na guerra e deixar a população com um homem para cada dez mulheres”, e todo mundo achou graça. Oba! Recreio de novo. Não está chovendo mas nos mandaram para o ginásio, nunca vimos o ginásio tão cheio, tão apertado, a gente mal consegue respirar, ainda bem que daqueles tubos lá no alto estão saindo jatos de vapor, estamos pensando agora que deve ser alguma coisa para que a gente consiga respirar melhor.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

2909) Antonio Silvino (29.6.2012)






Uma foto tem circulado nas redes sociais, mostrando dois homens de terno, frente a frente. São eles o presidente-ditador Getúlio Vargas e o ex-cangaceiro Antonio Silvino, que recebera indulto após 23 anos de cadeia, por bom comportamento (havia sido condenado a 239 anos). Diferentemente de Lampião, que em vinte anos de cangaço nunca foi preso, Silvino cumpriu pena, alfabetizou-se na prisão, converteu-se ao protestantismo  e trabalhou em vários tipos de artesanato até receber o indulto de Vargas. São duas histórias diferentes, dois finais diferentes.  Lampião, que era 23 anos mais novo, morreu numa emboscada na gruta de Angicos em 1938.  Silvino, aprisionado em 1914 (antes mesmo de Lampião entrar para o cangaço) morreu em 1944, na casa de uma prima, em Campina Grande. (Quando eu era menino, várias vezes me mostraram a vilazinha humilde onde ele findou seus dias, em frente à Praça Félix Araújo, esquina com a Arrojado Lisboa).

A carreira de Silvino está documentada nos folhetos de Francisco das Chagas Batista, que cobrem suas aventuras até 1912.  Uma ótima avaliação deles está em Memória de Lutas de Ruth Brito Lemos Terra (Global, 1983), onde ela compara a abordagem de Chagas Batista, mais documental, com a de Leandro Gomes de Barros, mais fantasiosa e romantizada. Tal como Lampião, Silvino foi exaltado por poetas e escritores como um guerreiro nobre e ético. Em As Infâncias de Quaderna, de Ariano Suassuna, é ele quem resgata o menino Quaderna, raptado por ciganos, e o devolve à família; em Menino de Engenho, José Lins do Rego reconstitui uma visita do cangaceiro ao coronel José Paulino, que o recebe à mesa, com todas as honras.

Foi, aliás, o próprio Zé Lins que em 1938 levou Graciliano Ramos a visitar Silvino na prisão, antes do seu indulto.  Numa crônica no Jornal de Alagoas (18-9-1938, aqui: http://bit.ly/NI7SRl), Graciliano faz um retrato elogioso do ex-cangaceiro, onde ficam evidentes os preconceitos de raça e classe que ambos inconscientemente compartilhavam. Diz ele: “Antonio Silvino é um homem branco. Seria mais razoável que fosse um representante das raças inferiores, que, no Nordeste e em outros lugares, constituem a maioria da classe inferior. Mas é um branco, e se for examinado convenientemente, não dá para bandido. (...) Homem de ordem, indispôs-se com outros homens de ordem, fez tropelias no sertão, caiu numa cilada e penou vinte anos para lá das grades. Continuou, porém, a ser o que era, apesar da cadeia: homem de ordem, membro da classe média, com todas as virtudes da classe média”. Sertanejos escritores, políticos ou cangaceiros que respiravam o mesmo ar, as mesmas idéias.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

2908) O Quarto do Pânico (28.6.2012)




Recebi (não, desta vez não é piada) uma circular eletrônica enaltecendo a utilidade do Quarto do Pânico, e me propondo uma avaliação sem compromisso. Para quem não sabe, o nome desse produto vem do filme com Jodie Foster, em que ela e a filhinha se trancam nesse cômodo para escapar de ladrões que invadem sua casa.  Por causa do filme, o nome pegou, o que aliás não acho muito bom em termos de marketing – deviam chamar de “Quarto Salva Vidas”, “Quarto de Segurança”, algo com um astral mais positivo.  O tal cômodo é um aposento blindado, no interior da casa, onde os moradores podem se refugiar e se trancar por dentro na hipótese de um assalto.  O quarto tem blindagem para resistir até a armas de fogo pesadas.  Tem energia com “No Break”, independente do resto da casa.  Tem câmaras que monitoram as partes internas e externas da casa, para que a família, ao se esconder ali, possa ver o que está acontecendo à sua volta.  Tem linhas de comunicação (rádio, celular, etc.) com várias alternativas para pedidos de socorro à polícia, aos vizinhos ou a uma empresa de segurança previamente contratada.  Tem oxigênio, água, comida, tudo que as pessoas possam precisar para passar um tempo razoavelmente longo até que os assaltantes desistam ou o socorro apareça.

A instalação (é cara, viu?) geralmente aproveita um espaço já existente (closet, banheiro, etc.) que não perde a utilidade no dia-a-dia normal, mas fica acessível para que as pessoas cheguem rapidamente a ele, se fechem por dentro, e acionem o socorro. O Quarto do Pânico é a versão contemporâneo dos abrigos nucleares dos anos 1950-60, quando, principalmente nos EUA, havia o pânico de uma guerra atômica. Muita gente cavou porões e os equipou com ar condicionado, água, mantimentos, gerador de eletricidade, etc., para se esconder em caso de guerra. Devia haver condições suficientes para que a família esperasse a queda dos níveis de radioatividade lá fora (meses? anos? não sei).  Bob Dylan fez uma canção famosa ironizando esse medo, “Let Me Die In My Footsteps”.

Hoje não temos mais medo da URSS, nem sequer da Al-Qaeda: temos medo dos humilhados e ofendidos das nossas periferias urbanas, que cedo ou tarde perdem a paciência e, como o “cobrador” de Rubem Fonseca, vêm exigir uma parte do muito que temos, parte que eles consideram ser-lhes devida.  O Quarto do Pânico é, depois dos edifícios com câmaras de segurança e dos condomínios com guardas armados na guarita, o último refúgio de uma culpa que nos envergonha, mesmo quando não a assumimos. Nossa casa será como a “Casa Tomada” de Cortázar, pouco a pouco invadida por alguém cujo rosto não temos coragem de encarar. 

quarta-feira, 27 de junho de 2012

2907) Um pequeno tesouro (27.6.2012)








Era tia-avó da minha esposa, e morava sozinha num casarão, numa capital nordestina cujo nome não preciso revelar. Quando tive que deixar São Paulo e passar uma semana lá, para trabalhar numa auditoria, minha mulher telefonou-lhe sem me consultar e as duas resolveram que eu me hospedaria na casa dela (a tia aproveitaria para me conhecer e, segundo minha mulher, “dar a nota”). Ficar na casa de uma pessoa de 70 anos não estava nos meus planos. Não que pretendesse cair na farra. Mas depois de um dia duro de trabalho, discutindo, argumentando, a única coisa que me interessa é tomar um banho, e depois dois uísques, sozinho, em silêncio, na beira da piscina do hotel. Mas esposa é esposa, e lá fui eu.

Dona Frederica me surpreendeu, não apenas por aparentar bem menos idade, mas porque na primeira noite em que voltei encontrei-a escutando música diante de uma garrafa de Dimple e um balde de gelo. Sentei ao lado e enveredamos numa longa cadeia de associação de idéias envolvendo boleros cubanos, orquestras tropicais e a arte da dança de salão, que ela me confessou não praticar há vinte anos, desde a morte do marido. Na segunda noite lá estava o Dimple, e desta vez conversamos sobre horóscopo, tipos psicológicos; ela contou “causos” saborosamente escabrosos ocorridos com amigas de juventude. Na terceira noite, Dimple e cinema (ela adorava musicais da Metro).

E assim foi, até que em minha última noite lá ela falou da mãe, e que a mãe lhe deixara um pequeno tesouro. Eu gostaria de vê-lo?... Diante da inevitável resposta, trouxe à sala uma caixinha laqueada, com cheiro de perfume antigo. Abri-a. Dentro era forrada de veludo, e havia uma folha de caderno amarelecida, dobrada, e sobre ela um anel de prata com pedra vermelha. Ela me disse que a mãe lhe dera a caixa ao morrer, sem mais explicações além de “É meu tesouro”. “É valioso?”, perguntei. “Mandei examinar, disseram que é bijuteria”, disse ela; “certamente tinha valor sentimental”. Retirei o papel do fundo da caixa, desdobrei-o. Era uma folha de caderno manuscrita, em tinta esmaecida e caligrafia equilibrada, com algumas poucas correções; o rascunho de um poema, dizendo algo como “No tempo de meu Pae, sob estes galhos...”. Perguntei o que era, ela deu de ombros: “Lembrança de um professor que ela teve, ao que parece. Valor sentimental”. Guardei o presente, devolvi-o, filosofamos um pouco sobre o sentido da palavra tesouro, sobre o sentido da palavra valor. “Veja como são as coisas”, disse ela, “isto aqui não tem valor nenhum, mas eu não venderia nem por mil reais”. Servi as duas últimas doses, brindamos e no outro dia vim embora.

terça-feira, 26 de junho de 2012

2906) "Blade Runner" 30 anos (26.6.2012)





Uma coisa fascinante no capitalismo é a capacidade que ele tem de nos fazer comprar a mesma coisa mais de uma vez. Ele cria em nós, primeiro, uma fascinação inesgotável por um produto; depois, nos ensina a fazer minúsculas, sutilíssimas distinções entre aspectos deste produto; em seguida, oferece-nos versões quase idênticas do produto, mas com diferenças suficientes para que digamos: “Quero todas duas!”. Ou todas três, ou trinta. 

Blade Runner (1982), foi um fracasso de bilheteria nos EUA, onde custou cerca de 28 milhões de dólares e rendeu 27. (Rendeu um pouco mais no mercado externo, mas em termos da contabilidade dos estúdios, que precisam de retorno rápido, isso não pesou muito.) Ao completar 30 anos, foi preparada uma caixa especial, custando cerca de 50 dólares, com nada menos de dez horas de cenas extras, e três versões integrais do filme.

Ao todo, existem cinco versões. Primeiro houve a versão original, exibida nos cinemas, e a versão internacional, que é quase a mesma, com a adição de algumas cenas de violência. Em 1992, o diretor Ridley Scott produziu a “Versão do Diretor” (“Director’s Cut”), removendo a narração em “off” e modificando algumas cenas, mas ainda assim não ficou satisfeito (ele é considerado um perfeccionista capaz de enlouquecer qualquer equipe), e em 2007 ele concluiu o chamado “Final Cut”, onde modificou tudo que achou necessário (inclusive chamando a atriz Joanna Cassidy para refazer, 25 anos depois, cenas que tinham sido feitas por uma dublê).  E existe uma quinta versão chamada “Work print”, que seria uma primeira edição do material filmado, com muitas cenas que foram excluídas depois. (Ao que parece, a caixa inclui as versões 1, 4 e 5.)

A cultura de massas é considerada o reino do descartável, do superficial.  Supõe-se que o espectador vê um filme, dá tchau e vai ver o próximo. Pertence ao mundo acadêmico essa disposição para examinar e comparar diferentes versões de uma obra. Quantas teses não já foram escritas comparando a versão em folhetim e a versão em livro de alguma obra de Dostoiévsky ou Dickens? Mas a tendência das últimas décadas é a de estimular a produção dessas versões, em primeiro lugar para vender as duas, é claro, mas com um efeito colateral: a criação de uma faixa crescente do público cada vez mais atenta a detalhes e a variantes. Isto é resultado do videocassete e do DVD, que pela primeira vez deram ao espectador comum a possibilidade de rever uma cena quantas vezes quisesse, parando, voltando, vendo de novo – uma experiência de espectador totalmente diferente da experiência passiva, meramente receptiva, do espectador tradicional do cinema.

domingo, 24 de junho de 2012

2905) "Tango de volta" (24.6.2012)





(Julio Cortázar)

Julio Cortázar foi um constante experimentador de formas narrativas, na estrutura aleatória e ziguezagueante de O Jogo da Amarelinha, na mescla de narrativa literária e notícias de jornal de Livro de Manuel, nos “almanaques” de estrutura verbo-visual como A Volta ao Dia em 80 Mundos.  Mas no interior de seus contos ele sempre estava testando novas maneiras de contar a história.  Uma de suas experimentações mais constantes é com o ponto de vista narrativo. Um conto narra uma história que acontece, mas, quem está contando a história?

“Tango de volta” é um dos contos de Queremos tanto a Glenda (1980, publicado no Brasil como Orientação dos gatos). É um conto narrado na 1ª. pessoa, e o narrador, como é de hábito em Cortázar, principia com um longo parágrafo aparentemente caótico em que salta de um ponto para outro entre informações desencontradas, referindo-se a pessoas como se imaginasse que já as conhecemos, comparando fragmentos de informações como se já as tivesse fornecido antes. A esse longo parágrafo segue-se outro que começa, paradoxalmente: “Como sou muito convencional, prefiro pegar desde o começo...”. Segue-se uma história em que uma argentina, Matilde, abandonou o marido no México e voltou a Buenos Aires, de onde forjou um atestado de óbito para dizer que era viúva, casou com um homem rico, teve um filho, e agora vê o primeiro marido rondando sua casa, namorando sua empregada Flora, tentando se infiltrar lá dentro.

O leitor prevê mais uma das bem urdidas histórias de crime de Cortázar. (É engraçado, nunca vi nenhuma delas nas antologias de contos policiais. Rotularam o rapaz de “autor fantástico” e pronto, morreu aí.) Tudo é narrado numa “falsa 3ª. pessoa” do ponto de vista de Matilde, a esposa, e depois de duas páginas já esquecemos que tudo começara com um “eu”. O conto vai até um desfecho violento, e no último parágrafo sabemos quem é o narrador: é o médico ou enfermeiro que chegou à casa logo após o crime, e a história é extraída da empregada, Flora, levando-o a reconstituir tudo que se passou. Acontece que tirando o primeiro e o último parágrafo tudo se passa dentro da mente de Matilde. Pegando os fragmentos de fatos fornecidos por Flora, o narrador romanceia por conta própria o que teria se passado na mente da mulher, seus medos, suas culpas, sua paranóia. É um narrador não-confiável, porque, embora os fatos provavelmente sejam aqueles, o texto está cheio de conjeturas e adivinhações do que Matilde teria sentido e pensado, e que ele não poderia conhecer. É mais uma das muitas experiências de Cortázar sobre um”eu” narrador que nunca é o “eu” narrador da literatura convencional.

sábado, 23 de junho de 2012

2904) O roubo digital (23.6.2012)

















Um artigo de Stuart P. Green no New York Times (http://nyti.ms/KmnlTw) aborda a questão do download não-autorizado de músicas, filmes e livros do ponto de vista do tipo de transgressão que isso constitui.  Para Green, não se trata de furto ou roubo, e esta é a questão crucial.  É um problema de nomenclatura, nada mais, mas dentro do nosso sistema jurídico, e do nosso sistema informal de valores e conceitos, o nome com que tratamos uma ação influencia e direciona nosso exame e nossas decisões futuras.  Se já começamos uma discussão dizendo que a ação tal ou tal é um roubo, vai ser difícil propor, depois, uma maneira de legalizar ou organizar o modo como isso vai ser feito, já que é um “roubo”, uma palavra condenada de antemão.

Dois aspectos são importantes: 1) ao contrário do roubo, o download não priva o proprietário original de um objeto único que ele possuía e não possui mais; trata-se apenas do ato de copiar o objeto e levar a cópia para si; 2) são poucas as pessoas, entre as que fazem essas cópias, que se dariam o trabalho (ou teriam o dinheiro) de comprar o objeto original que o “proprietário” supostamente está oferecendo à venda.  Se as cópias se multiplicam gratuitamente, deve existir alguma maneira de usar essa multiplicação para gerar um pequeno resíduo de renda que, acumulado e multiplicado por milhões ou bilhões, crie um bolo a ser repartido entre os produtores dos objetos culturais.  Ao invés de cobrar 20 reais por disco e vender milhares, cobrar 1 centavo e vender milhões.  Ou cobrar um imposto único e redistribuí-lo, proporcionalmente à contribuição de cada produtor cultural.

Nosso conceito de comércio cultural (livros, filmes, discos) foi criado em torno da idéia de que: 1) é caro e trabalhoso copiar uma obra; 2) quem tem essa despesa e esse trabalho precisa ser recompensado por isso; 3) essa recompensa geralmente se dá através do direito de explorar comercialmente essas cópias escassas e preciosas.  No momento em que o item 1 perdeu o sentido, o resto começa a perder o sentido também.  Precisamos agora achar um novo conceito de comércio, baseado na idéia de que é facílimo e gratuito reproduzir cópias de livros, filmes e músicas.  Há um oceano de cópias sendo trocadas, oferecidas e aproveitadas gratuitamente, e não adianta considerar isso um roubo, porque daqui a alguns anos vamos chegar a uma sociedade onde, como a Itaguaí de O Alienista de Machado de Assis, 99% da população estará presa e somente 1%  nas ruas.  Quando a vida real, avaliada por um conceito, mostra 1% de regra e 99% de exceção, um dos dois precisa ser substituído. É mais sensato substituir o conceito.


sexta-feira, 22 de junho de 2012

2903) Zédantas (22.6.2012)




Estou lendo Zédantas segundo a letra I, publicado pelo Memorial Luiz Gonzaga (Recife, 2010), com a longa entrevista da D. Iolanda Dantas, viúva do grande parceiro do Rei do Baião. 

Zédantas (ele gostava que seu nome fosse escrito assim) é autor de dezenas de canções eternas da música nordestina, como “A Volta da Asa Branca”, “Sabiá”, “Vem Morena”, “Forró de Mané Vito”, “Imbalança”, “Xote das Meninas”, “Acauã”, “Noites Brasileiras”,”Siri jogando bola”, “Derramaro o gai”, “ABC do Sertão”, “Samarica parteira”, “Riacho do Navio”... bem, são dezenas. 

Era sertanejo de Carnaíba (PE), e o Riacho do Navio cortava a fazenda de seu pai. Estudou medicina e clinicou no Rio de Janeiro, mas nunca deixou de pensar no sertão o tempo inteiro. Era extrovertido, contador de piadas, imitador de tipos, além de elegante e vaidoso – tinha mais de cem gravatinhas-borboleta. 

No Rio, foi muito amigo de Péricles (criador do “Amigo da Onça”), e de políticos como José Aparecido e José Joffily (que lhe deu de presente um violão).  Era considerado “a alma da festa” onde chegava, com suas piadas e suas músicas.

Quando viajava a Pernambuco, levava um gravador de rolo de 14 kg e trazia de volta para o Rio dezenas de fitas com cantorias, aboios, toadas e forrós, que usava como base para suas composições em seu apartamento na Av. Pasteur, onde acordava cedinho e ficava compondo, olhando a Baía da Guanabara. 

Tocava bem o violão, e o piano com dois dedos, mas tocava de ouvido e a esposa, que tinha estudado, passava as melodias para a partitura, para que ele não as esquecesse. 

O sucesso do baião o colocou em contato com políticos influentes; “Algodão”, p. ex., foi composta  por sugestão do então Ministro da Agricultura, João Cleofas (PE). Uma canção gravada por Marlene, “Piririm”, marca sua única parceria com o outro grande parceiro de Gonzaga, Humberto Teixeira. “Vozes da Seca” foi feito em resposta à campanha popular “Ajuda teu irmão”, para as vítimas da seca de 1953 no Nordeste.

Era médico obstetra, e por causa de dores nas costas tomou muitos remédios à base de cortisona (um medicamento novo na época), que prejudicaram sua saúde. 

Sofreu um ferimento no tendão de Aquiles em 1961, quando passava uns dias no sítio de Luiz Gonzaga em Miguel Pereira (RJ). Fez uma cirurgia que não resolveu o problema, e morreu um ano depois de insuficiência renal, no Hospital dos Servidores do Rio, no mesmo quarto onde tinha morrido José Lins do Rego. 

Foi enterrado no Recife, e seu último pedido foi ser sepultado “com uma cruz de madeira num pé de mororó e um bode lambendo a cruz”. Compositor de imenso talento, e sertanejo até o talo.






quinta-feira, 21 de junho de 2012

2902) O Manifesto Krashnavik (21.6.2012)




“Este manifesto é escrito em nome de Istvar Morisev, tecelão de ofício, aldeão de nascimento, alfabetizado aos 71 anos, famoso por seu livro de memórias aos 75, rico aos 80, morto e reconciliado com o mundo aos 90. 
Em nome da luz do verde das encostas de Krashnavik na derradeira tarde do seu tempo de paz, quando um regimento inteiro de ‘kalliks’ em retirada devastou o vale, ateando fogo às cabanas depois de saqueá-las e martirizar seus moradores. 
Em nome da bacia de porcelana em que uma criança era banhada quando foi atropelada por um corcel de guerra pesando trezentas libras e coberto de armadura em couro, bacia que escapou milagrosamente intacta a esse perigo, tendo a criança, por outro lado, não resistido. 
Em nome do oficial que deteve o sabre que se erguia sobre o pescoço curvado daquele homem de bigode negro que tinha sido dado como morto por entre as ruínas fumegantes de sua casa, e mandou acorrentá-lo.
Em nome dos vizinhos de Morisev a quem coube sepultar sua família e guardar como relíquia a bacia de porcelana que pertencera aos seus avós. 
Em nome das marretas de ferro com que ele foi obrigado a quebrar pedras durante anos, longe do vale de Krashnavik, crendo que cada dia seria o seu último.
Em nome da chuva que o refrescou, do sol que o aqueceu, da comida insípida que o manteve vivo, das mulheres que nunca teve, do sono que o trazia de volta à existência, das trinta e oito voltas que o mundo deu em torno do sol e que um dia lhe trouxeram a liberdade.
Em nome do sargento subornado que uma madrugada o libertou às escondidas, dando-lhe sem explicações um cavalo, uma sacola de mantimentos e um papel com um nome e um endereço.
Em nome de Olenka, a professora de álgebra que, depois de anos de busca, assim o libertou e o acolheu em sua casa num subúrbio de Varna, e nos anos seguintes tornou-se sua filha adotiva, mestra e secretária.
Em nome do artesão anônimo que gravou a história da família Morisev na bacia de porcelana que Olenka comprara num antiquário, e cujas inscrições releu para ele, ao longo de muitas noites, fazendo-o chorar pela perda do filho e pela salvação da história.
Em nome dos dias de estudo e das noites em claro à luz de lâmpadas fracas, desenhando letras negras em papel branco e repetindo palavras em voz alta.
Em nome do livro em que contou sua história, a dos seus antepassados, e imaginou, descreveu e celebrou as muitas vidas que poderiam ter sido do seu filho atropelado pelos cavalos dos “kalliks”.
Em nome da arte da palavra, que não muda o mundo mas lhe dá feição e sentido, e é capaz de modificar o passado, eternizar o presente e multiplicar o futuro.”






quarta-feira, 20 de junho de 2012

2901) Tempo real (20.6.2012)




(ilustração: Gio MacCluskey)


"Tempo real". Esta é uma expressão curiosa, surgida, pelo que me consta, com a Internet.  Antes dela tínhamos milhões de coisas acontecendo em tempo real mas não nos sentíamos obrigados a dar um nome a isto. 

“Em tempo real”, na linguagem de hoje, significa um fenômeno qualquer em que transmissão e recepção sejam simultâneos, ou seja, a coisa acontece num lugar e é vista em outro no mesmo momento.  

(Se bem que nada é simultâneo, de acordo com a Física. Há sempre um intervalo, mas em termos da percepção humana é uma fração de segundo tão pequena que para efeitos práticos pode ser ignorada. Para tais grandezas, físicos e matemáticos usam o adjetivo “desprezível”, que sempre me pareceu meio insultuoso.)

Em tempo real significa aquela noite inesquecível em que o U-2 fez um show demolidor num estádio na Califórnia, e eu assisti o show em meu PCzinho no Rio de Janeiro, sentado na minha cadeira giratória, indo buscar cerveja na geladeira. 

Alguém pode argumentar que se o show tivesse ocorrido na véspera e eu o estivesse vendo 24 horas depois (ou 240 horas depois, etc.) minha impressão de ineditismo seria a mesma, e não discuto.  

Aí é que entram as sutilezas do Espírito do Tempo.  O prodigioso não é que a gente esteja vendo aquilo em tempo real, mas que SAIBA que está vendo em tempo real. O prodigioso não é a simples transmissão da informação, mas o pequeno triunfo psicológico que ela nos proporciona, aquela sensação de momentânea onipotência, a sensação de estarmos (a Humanidade inteira, ou pelo menos uma parte importante dela) envoltos num casulo telepático em que tudo nos acontece ao mesmo tempo aqui e agora.  Isto é precioso.

Talvez tenhamos sentido algo assim quando nos deparamos pela primeira vez com o telégrafo; com o rádio; com o telefone; com a televisão; mas isto nunca ocorreu com tanta intensidade. Quando estou num chat, tipo frase-vai, frase-vem, com algum amigo que está na Europa ou na Ásia penso: “Ora, isto não é mais extraordinário do que um telefonema”. 

Mas telefonemas são uma comunicação um-a-um, e a Internet nos proporciona isto multiplicado por multidões incalculáveis. E reparem bem na poesia do nome.  Todo tempo é real, não é mesmo? Quando leio uma peça de Ésquilo, foi real o momento em que foi escrita, é real o momento da leitura, bem como é real o intervalo de 2.500 anos que nos separa.  Hoje, porém, temos um real simultâneo, e não um real esgarçado no tempo. 

Como se o fato de outros seres humanos estarem pensando na mesma coisa no mesmo instante tornasse essa coisa mais espessa, mais socialmente verdadeira, mais humanamente real.  E, em última análise, é isso mesmo que acontece.

    


terça-feira, 19 de junho de 2012

2900) Harry Stephen Keeler (19.6.2012)



(esquema de uma "webwork" de Keeler)

Existem artistas que a gente admira mas não curte, e artistas que a gente curte mas não admira. Há grandes romancistas cuja prosa nos entra por um ouvido e sai pelo outro sem que o sismógrafo do cérebro sofra o menor estremeço. E há romancistas que reconhecemos serem menores, romancistas a quem obviamente faltam certos requisitos, mas que nos despertam um fascínio permanente.  

É o caso de um dos grandes excêntricos da literatura dos EUA, Harry Stephen Keeler (1890-1967), autor de uma obra gigantesca, disforme, muitas vezes canhestra, de vez em quando brilhante, com rasgos estilísticos que fariam encabular um ginasiano e com enredos de uma complexidade que faz Thomas Pynchon parecer um minimalista. Bem – comparar com Pynchon não adianta, porque Pynchon é um keeleriano sem os defeitos de Keeler.  Digamos: Balzac.

Keeler criou um processo, chamado de “webwork”, para compor seus enredos complicados, com dezenas de personagens, centenas de situações entrecruzadas, pistas falsas, confusões de identidade, coincidências e anti-coincidências (=quando algo que deveria acontecer não acontece). 

Escreveu quase 100 romances, e olha que o romance típico dele não tem menos de 400 páginas (muitos, por alguma razão, são traduzidos em Portugal). Mantinha um gigantesco arquivo de recortes de fatos estranhos, bizarros, inesperados, que usava em suas narrativas de crime e de FC. 

Sua homepage (http://bit.ly/bWvEZl) dá exemplos de sua prosa saborosa, inusitada, meio desconexa, em romances como O Enigma da Caveira Viajante, O Rosto do Homem de Saturno, O Caso dos 16 Feijões, O Mistério do Periquito de Madeira, O Homem que Mudou de Pele, etc. Sua volúpia fabulatória não tem paralelo, bem como seus extraordinários sistemas de criação de enredos.

Falei que não admiro Keeler? Falei mal. Poderia dizer, como o Conselheiro Acácio, que admiro suas qualidades mas não seus defeitos. E a verdade é que os defeitos (a prosa muitas vezes canhestra, as situações improváveis e forçadas, os personagens que não parecem pessoas mas meras funções para desencadear peripécias) só são considerados como tal num sistema de valores que visa à produção de uma prosa produzida noutro nível de realidade.  Criticamos Keeler com instrumentos feitos para medir Balzac (que aliás era combatido, em sua época, por críticos que usavam instrumentos pré-Balzac). 

A editora independente Ramble House imprime seus livros por demanda (http://bit.ly/9KpjZy); suas frases inimitáveis podem ser seguidas no Tweeter através de @HarrySKeeler. Era um homem obsessivo, trabalhador incansável, e fundou um império habitado por ele só.







domingo, 17 de junho de 2012

2899) Drummond: "Moça e Soldado" (17.6.2012)





Dizem os que conheceram Carlos Drummond que ele era um desses paqueradores meio tímidos, que ficam circulando pela rua, de olho nas moças que passam.  Não sei se isso é verdade ou se é uma auto-sugestão das testemunhas, influenciadas pelos inúmeros poemas em que o autor se descreve fazendo exatamente isto. Circular pelas avenidas cheias de gente, sempre de olho atento nos atributos das moças em volta, seguindo esta ou aquela no mesmo passo, é uma grande Arte; ainda mais quanto o poeta é mineiro, casado e não tem intenção de fazer assédio, de incomodar, de abordar moças na rua.  Ele não quer “nada além de uma ilusão”.

“Moça e Soldado” é um dos poemas do seu livro de estréia (Alguma Poesia, 1930) em que ele se dedica a esse esporte. “Meus olhos espiam / a rua que passa. / Passam mulheres, / passam soldados”.  O detalhe cinematográfico do poema é a angulação voltada para baixo, rumo às pernas dos passantes: “Meus olhos espiam / as pernas que passam. / Nem todas são grossas... / Meus olhos espiam. / Passam soldados. / ...mas todas são pernas.”  De olhos baixos, o poeta se livra de cruzar os olhos com as possíveis ofendidas, e aproveita para avaliar o torneado das pernocas.  No “Poema de 7 faces” que abre o livro, ele já se perguntava: “Pra que tanta perna, meu Deus?”.

O poema faz o paralelo constante entre as “moças bonitas feitas para namorar” e os “soldados barbudos feitos pra brigar”.  A época era de conflagração política, e aquelas ruas deviam ser de vez em quando invadidas por soldados, ora desfilando, ora de folga. E o poeta compara as pernas que passam marchando ao som de “tambores e clarins”, e as pernas que simplesmente passam.  Passam para brigar, e passam para namorar; e Drummond conclui com sua melancolia recorrente: “Só eu não brigo. / Só eu não namoro”.  Essas duas provas de masculinidade lhe são vedadas; ele inveja os soldados, deseja as moças, mas pressente que os dois existem num mundo mais saudavelmente animal do que o dele.

Este espírito de paquerador peripatético seria mais bem descrito por Drummond em seu livro seguinte, Brejo das Almas, no poema “O procurador do amor”, onde ele diz: “Meu olhar desnuda as passantes. / Às vezes um bico de seio / vale mais que o melhor Baedeker”.  Baedeker eram os famosos guias turísticos do começo do século, publicados na Alemanha, muito ricos em informação. Ele diz: “O andar, a curva de um joelho, / vinco de seda no quadril / (não sabia quanto eras pura), / faço a polícia dos ‘dessous’”. O termo francês tanto se refere à parte de baixo quanto às roupas íntimas femininas. Que o poeta flâneur não perdia de vista nem de imaginação.

sábado, 16 de junho de 2012

2898) Manipulando textos (16.6.2012)



Vejam só que episódio mais pulga-atrás-da-orelha. Philip Howard é um blogueiro que mora na ilha de Ocracoke, na Carolina do Norte. Talvez eu esteja comprando gato por lebre, e ele seja apenas mais uma farsa ou pegadinha internética; mas dessa suspeita nenhum de nós, que somos de carne e osso, escapa. Então, suponhamos que ele existe mesmo e que no seu blog relatou uma estranha descoberta (http://bit.ly/L5d9wk).

Philip estava lendo Guerra e Paz de Tolstoi, livro que pode ter mais de mil páginas, dependendo da edição. Para a mão não cansar, Philip comprou um e-reader Nook, fornecido pela cadeia de livrarias Barnes & Noble. A certa altura ele leu uma frase com um verbo estranho. A frase era: “"It was as if a light had been Nookd in a carved and painted lantern...." Mais ou menos: “Era como se uma luz tivesse sido ????? numa lanterna entalhada e com pinturas...”. Ele não entendeu essa palavra “Nookd”, mas aquilo se repetiu outra vez, e outra. A repetição confirmou sua suspeita inicial: em todo o texto daquela tradução a palavra “kindle” (que por acaso é a marca do e-book da Amazon, maior rival da B&N) havia sido substituída por “Nook”, a marca do seu próprio leitor eletrônico. Isto é mais ou menos como você abrir um e-book de História do Brasil e ver que todas as vezes que o nome de Vasco da Gama aparece ele está substituído por Flamengo da Gama.

Philip comenta: “Alguém na B&N – um funcionário de 20 anos? o Diretor Geral? – tinha programado essa substituição”. Certamente (digo eu), sem dar atenção a incidências inesperadas (e mudanças indesejadas) de outras palavras. Deve-se ter sempre cuidado com a melíflua sugestão informática: “Substituir tudo”. Metade dos meus cabelos brancos com revisão de textos devem-se a ofertas deste tipo. O problema maior, no entanto, diz Philip, é não sabermos até que ponto o texto pode ter sido manipulado.  Se eu nunca li o livro, se eu não conheço a obra de Tolstoi, não sei ler em russo...  Que tipo de segurança, de confiança, posso ter a respeito da autenticidade daquilo que estou lendo?

Até parece que foi o livro eletrônico que inventou esse tipo de insegurança, mas devem ter sido a Arte da Cópia, primeiro, a Arte da Tradução, depois, e a Imprensa, por fim. Como podemos confiar na honestidade moral e intelectual (para não falar na competência técnica) de milhões a quem coube entender, traduzir, examinar, copiar?  Cada vez que uma informação passa por uma mente humana ela é refratada, como a luz passando através da água. O livro eletrônico e seu “substituir tudo” são apenas a ampliação desse risco antigo, e a introdução de novos dilemas cruciais de ordem técnica.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

2897) Primeiríssimas Estórias (15.6.2012)








Antes de estrear em livro com Sagarana, em 1946, Guimarães Rosa já tinha escrito outras obras que depois não quis publicar.  Uma delas foi o volume de poemas Magma, de 1936, com o qual chegou a ganhar um concurso, e que só foi oficialmente publicado em 1997. Estes 61 anos são um intervalo longo demais para um livro aparecer? Pois prestem atenção neste outro, que saiu no ano passado pela Nova Fronteira: Antes das Primeiras Estórias, organizado por Janaína Senna, reunindo contos publicados entre 1929 e 1930, ou seja, um intervalo de 82-83 anos entre publicação em periódico e publicação em livro.

Em meu livro A Pulp Fiction de Guimarães Rosa (Ed. Marca de Fantasia, João Pessoa, 2008) analiso estes contos que Rosa publicou, quando tinha 21-22 anos, em O Jornal e na revista O Cruzeiro. Minha primeira informação sobre eles veio de um artigo publicado por Ivan Teixeira no Estado de São Paulo (26.9.1992). Na Biblioteca Nacional, no Rio, consultei os originais, copiando longos trechos com lápis de grafite, para poder escrever o meu comentário. Agora os quatro contos saíram na íntegra pela Nova Fronteira, com um prefácio elogioso de Mia Couto.

Qualquer leitor de Guimarães Rosa e qualquer admirador da literatura fantástica sairá enriquecido da leitura destes “contos de aprendiz”, que mostram o escritor mineiro, ainda verde, vivendo aquele momento quântico em que um rapaz inteligente e devorador de livros pode se transformar tanto num imitador da literatura alheia quanto num autor capaz de reinventar a literatura.  Rosa era um sujeito vaidoso. Todo mundo que escreve é vaidoso, mas alguns têm a vaidade dos perfeccionistas, para quem nada do que produzem está à altura de sua genialidade, e acham que precisam retrabalhar ainda mais o texto. São sinais evidentes disto o fato de que ele rejeitou Magma (um bom livro de poemas) e estes contos, onde passa do gótico (“O mistério de Highmore Hall”) para o “weird” (“Tempo e Fatalidade”), e da fantasia heróica ("Makiné”) para o regionalismo exótico (“Caçadores de Camurças”). Sem falar que passou cerca de oito anos retrabalhando os contos de Sagarana até achar que mereciam publicação. Os contos experimentais de Rosa talvez desagradem àqueles que têm em mente um Guimarães Rosa monolítico, categorizado, decifrado por fim. Eu gosto deles porque suas influências juvenis modificam e enriquecem a obra posterior, revelam camadas de sensibilidade e de prosa que, em retrospecto, vemos estarem presentes nos sertões futuros. O passado pode ser modificado quando uma nova descoberta nos traz novas revelações, e Guimarães Rosa ainda não disse tudo que veio dizer.


quinta-feira, 14 de junho de 2012

2896) Três contos de FC (14.6.2012)



(escultura: Jeremy Mayer)


O escritor Luiz Bras, no jornal Rascunho (Curitiba) promoveu uma enquete informal entre leitores de ficção científica, pedindo que votassem nos três melhores contos da FC brasileira. Fui um dos consultados, mas o pedido veio num momento caótico do meu cotidiano.  Quando me toquei, vi que não tinha respondido à pergunta de Luiz. O conto mais votado foi “A escuridão” (1963) de André Carneiro, um dos grandes textos de nossa FC (eu o incluí na minha antologia Páginas de Sombra, de 2003).  Em todo caso, mesmo com atraso, aqui vão os contos que eu havia anotado e esqueci de enviar para a enquete.

Eu votaria em “Ma-Hôre” (1961) de Rachel de Queiroz, que incluí na antologia Páginas do Futuro (2011). É a história de um pequeno ser anfíbio em cujo planeta desembarca uma nave terrestre. Ele dá um jeito de entrar na nave, aprende a se comunicar mais ou menos com os astronautas, e ao subir com eles ao espaço começa a tramar um jeito de escapar. É um conto na linha tradicional da FC em que criaturas mais simples e mais primitivas conseguem, por sua engenhosidade, iludir membros de uma civilização mais tecnológica.

Votaria em “61 Cygni” (1960) de Fausto Cunha, que também incluí na antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo (Ímã Editorial, 2011). É a história assustadora de uma prostituta que, de madrugada, num beco escuro, se depara com um cliente muito fácil de satisfazer, porque sempre se satisfaz. É um conto cruel à maneira de Villiers de l’Isle Adam, e tem um final “slingshot” que projeta toda a história num outro nível de realidade. E votaria em “Dea mayor sperientiae”(1965) de Nilson Martello, disfarçado de crônica do século 14, relatando o encontro de um rei português com uma criatura extraterrestre, com direito a uma saborosa reconstituição/contrafação do português falado na época. Foi republicado por Roberto Causo em sua antologia Estranhos Contatos (Caioá Editora, 1998).

Escolhidos estes contos, percebi que eram todos de uma mesma época, e que eu não havia incluído nenhum conto contemporâneo, embora haja muitos deles de boa qualidade.  O que ocorre é que em enquetes assim nunca buscamos a surpresa, e sim o óbvio; buscamos textos que nos parecem tão bons ou tão importantes que ninguém ousaria discordar.  Um pequeno cânone em forma de pílula. São importantes para mim (não só estes, claro) porque os li antes dos 16 anos.  Eles me mostraram, a mim que lia de Ray Bradbury a Richard-Bessière, o que uma FC brasileira poderia fazer dentro do universo da nossa língua e da nossa intuição fabulatória. Eles me ajudaram a ter da FC brasileira uma alta expectativa literária, desde o começo.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

2895) Longe muitas léguas (13.6.2012)


A vida de um migrante sofre uma fratura que nunca mais desaparece. É como um vidro trincado: pode não ter perdido nenhum pedaço, mas aquela rachadura vai ficar visível para sempre. A tragédia dele começa pelo fato de que vai embora a contragosto: falta de trabalho, falta de oportunidades, guerra, catástrofes naturais (a seca, etc.)...  Vejam que estou excluindo dessa lista o sujeito que simplesmente decide ir embora do lugar onde nasceu, pelo simples prazer de conhecer lugares diferentes, ter novas experiências. Esse não é propriamente um migrante – é um viajante, um aventureiro, um cara que foi tentar a vida noutro país ou cidade. O migrante é o que migra a contragosto, o cara que, pela sua vontade, nunca sairia daquele lugar.

Na terra alheia, começa o processo de endeusamento e mitificação do lugar que foi abandonado. Ele pensa: “Nada do que eu vejo se compara ao que eu já vi”. O migrante sonha com uma Era de Ouro que é geográfica, em vez de histórica.  Uma Era de Ouro situada no espaço e não no tempo, na distância e não no passado.  Teoricamente, uma Era de Ouro à qual ele pode voltar um dia – basta ver o açodamento e a euforia com que voltam tantos.  Porém, toda viagem no espaço é também uma viagem no tempo, e quando o migrante retorna percebe que seu lugar de origem mudou, que seu pé de serra sofreu interferências, que sua Era de Ouro está toda azinhavrada.

Este é o motivo pelo qual tantos migrantes preferem não voltar.  Não querem passar pela decepção do protagonista de “Viagem aos Seios de Duília” de Aníbal Machado, um sujeito de meia idade que retorna à cidade natal para rever os seios de sua namorada adolescente, o que resulta num desfecho pra lá de previsível.  Nenhum par de seios resiste à ausência de quem os avistou uma vez, e nenhuma terra natal se preserva intacta e disponível, eternamente, à espera do migrante que a abandonou por motivos de força maior.

Melhor não voltar, e deixar que a memória fique tirando fotos de si mesma. Melhor deixar que essa memória seja contaminada pela imaginação, o que é mais embelezador do que contaminá-la de realidade. Na memória só muda o que nosso desejo ordena.  Todo migrante faz do lugar de onde partiu a sua nova “terra do sonho distante”; torna-se um migrante ao contrário, que todos os dias abandona o presente e foge na direção de um passado onde tudo acontece de acordo com seu desejo e nostalgia. E todo migrante é feliz porque a Era de Ouro de sua memória nunca foge, nunca se perde, nunca se deteriora. Pelo contrário: todos os dias é aperfeiçoada, burilada por esse retorno incessante de quem criou uma miragem maior e mais duradoura do que os desertos.

terça-feira, 12 de junho de 2012

2894) Budista Tibetano 234 (12.6.2012)






Procurei o meu Mestre logo após o trimestre das Cerejeiras, e o encontrei lavando folhas de chá. “Olá, Kagyu. Ouvi dizer que teu pai havia sido preso”. Ainda ofegante pela subida da encosta, respondi: “Por dois dias apenas, mestre, e logo foi solto.  Houve um equívoco”.  “Um equívoco?!” disse ele. “A prisão ou a soltura?”. Expliquei: “Confundiram-no com alguém que tinha agredido uma família, mas ele foi solto assim que um dos agredidos concordou em fazer o reconhecimento”.  “O que poderia ter acontecido dois dias antes”, observou ele. “Claro, mas quem somos nós para discutir com a lei”, disse eu.  Pobre só tem razão quando pede desculpas.

O mestre perguntou a razão da minha vinda. Expliquei que decidira tornar-me um contador de histórias, não um sacerdote. “Bastaria essa frase para comprovar que tens pelo menos metade da razão”, disse ele, “porque nenhum homem com vocação de sacerdote diria o que acabas de dizer. Se serás contador-não-sei-das-quantas é problema teu, mas sacerdote não tens a menor condição de ser”.  Acolhi com resignação aquelas palavras que já esperava e beijei-lhe a mão. “Mestre”, continuei, “deves lembrar que ainda me deves uma resposta”. “Sem dúvida, disse ele, “porque dei-te a nona resposta no Mês do Vento passado, era algo que dizia respeito a um silogismo, não?” Ele virou-se meio impaciente e saiu andando.  Acompanhei-o na direção do pequeno pavilhão onde ele tinha sua oficina manual. “Sim, mestre”, insisti, “mas quero saber só mais uma coisa”.  Segurei-o pelo braço, mesmo vendo-o apressado.  Mas eu tinha que perguntar aquilo. “Como se conta uma história?”.

Ele parou, olhou em volta, apontou uma pedra no jardim. “Estás vendo aquela pedra, que parece tão pesada, tão sólida?” “Sim”, respondi. “Achas que posso fazê-la levitar?” Encolhi os ombros: “Mestre, como posso saber?”. “Então, olha”, disse ele.  Fiquei olhando para a pedra. Em algum momento me pareceu que ela estremecera, que se movera um pouquinho de nada, mas fiquei o tempo todo atribuindo aquilo à auto-sugestão. “Chega”, disse ele, relaxando os ombros, e me conduzindo-me pelo braço encosta acima. “Por quanto tempo olhaste a pedra?”, perguntou. “Não sei, uns dois minutos talvez”, respondi. “De que cor era ela?”, perguntou ele. Meu estômago se fez silêncio e minha mente se fez um branco. “Cor?”, perguntei. “Desculpa”, disse ele, “esqueci de avisar antes qual a pergunta que iria fazer”.  Deu-me um tapa no ombro que me fez balançar. “E agora que encerramos a nossa atividade docente, vamos almoçar. Minha sacerdotisa pessoal preparou ninhos de andorinha à mongol, um prato especial para quem conhece sua origem”.

domingo, 10 de junho de 2012

2893) Arte personalizada (10.6.2012)






Falei algum tempo atrás na nova arte literária que consiste em pegar romances clássicos e misturá-los, de maneira irreverente, com histórias de terror.  O exemplo mais conhecido é Orgulho e Preconceito e Zumbis (2007), onde o romance de Jane Austen foi interferido por uma narrativa macabra de Seth Grahame-Smith. Aqui no Brasil a moda está pegando, e aí está meu comparsa Lucio Manfredi que não me deixa mentir, com seu Dom Casmurro e os Discos Voadores (2010).  Como isso se dá apenas com obras que estão em domínio público, não há nenhum problema jurídico.  O problema, se houver, é estético, pois muitos leitores têm uma certa noção da intocabilidade da obra, e se assustam com essas interferências. Eu não vejo nada de mais, pois elas não prejudicam nem Jane Austen nem Machado de Assis.  Isso me lembra a história daquele roteirista que adaptou para o cinema um romance famoso. Após o lançamento do filme alguém o acusou: “Você mutilou o livro de Fulano!”, ao que ele respondeu: “Não mutilei nada. Pode ir na livraria ou na biblioteca, o livro dele continua intacto”.  Pois é.  “Pobrema” era se a cada paródia ou a cada adaptação a obra original fosse modificada irremediavelmente.  Não é o caso.

Existe uma nova moda, agora. A editora U Star aceita encomendas para fazer pequenas tiragens de livros clássicos trocando os nomes dos personagens originais pelos nomes indicados pelo cliente. (Ver aqui: http://bit.ly/HSgvrd). Olha que presentão para o Dia dos Namorados: uma edição do Romeu e Julieta de Shakespeare em que os nomes dos protagonistas serão trocados pelos do encomendador e de sua namorada, passando a peça a intitular-se, por exemplo, Wandergleysson e Tábatha Semyramis.  O regulamento diz: “Após escolher o livro desejado, você deve indicar sua capa preferida e dedicar 5 minutos ao preenchimento de um formulário, fornecendo os detalhes para a personalização do livro, o qual será impresso exatamente de acordo com as informações que você prestou, com exatamente a mesma grafia. Recomendamos que examine este aspecto, inclusive as letras maiúsculas dos nomes e dos lugares. Não devolveremos o dinheiro em caso de erros de grafia”.

Aparecer com seu nome no lugar do nome de um personagem não é muito diferente de ir a um parque de diversões, ou a um restaurante como o Mangai, e tirar um retrato botando o seu rosto naquela abertura circular no rosto de um boneco. Uma brincadeira ingênua, como muitas outras que hoje podem ser feitas em 5 minutos no Photoshop. Mas algo me diz que a maioria das encomendas vai ser de gente querendo puxar o saco do patrão, dando-lhe livros em que ele se torna seu personagem preferido. 

sábado, 9 de junho de 2012

2892) Santuário (9.6.2012)


Matei três deles em combate leal, mas minha arma se partiu e o último conseguiu me derrubar, já exausto.  Quando voltei a mim estava com os braços amarrados às costas, enquanto ele me  puxava por uma corda, encosta acima, até a cratera. “Não quis ofender ninguém”, falei, mais uma vez, achando que não entendiam meu modo de pronunciar sua língua. “Não sabia que era um Santuário”.  Ele parou, recolheu a corda com rapidez, fazendo-me cambalear na sua direção, e me esbofeteou várias vezes. Era um homem enorme, e apesar de idoso devia ser muito mais forte do que eu. 

Continuamos subindo. Eu sabia onde estava. Tinha a idade em que a curiosidade satisfeita produz um intenso prazer, como se o simples fato de ter previsto uma coisa e ela de fato acontecer me transformasse numa espécie de Deus.  “Ouvi dizer que são eternos, que nunca morrem”, falei. “Não”, disse ele, e continuou, num tom de quem aceita algo sem compreendê-lo: “São como nós, só que seu arco de existência é muito mais amplo. Sua infância é longa, e sua velhice também. Assim como durante alguns anos nós precisamos ser protegidos de tudo, eles precisam de proteção durante alguns séculos, até se tornarem o que são.” 

Uma criatura com infância interminável, exposta, sujeita a ataques.  Isso não tornaria inteligente qualquer espécie?  Não é de admirar que quando ficam prontos nos pareçam onipotentes, avassaladores.  Uma criatura capaz de avaliar situações corretamente, prevenir-se, proteger-se.  Mas quando infantes não podem se proteger dos que além de inteligentes são curiosos, e além de curiosos são cruéis.  Eu não estava ali para constatar sua existência, que já era sabida.  Estava ali para matar um deles e levá-lo comigo, para provar que eram mortais como nós, que podiam ser observados, compreendidos, combatidos, derrotados.  Para mostrar que nenhum inimigo é um Deus.

O homem finalmente se deteve.  Sentou numa pedra à beira de um barranco e me puxou. Parei ao seu lado. A pedra da montanha se lascava bruscamente e descia, centenas de passos, numa face lisa e abrupta. Olhei para a cratera e vi aquela massa pulsante. A cavidade era feita de um calcário amarelado, e as formas pegajosas se aglomeravam em alguns pontos dela, como caroços numa romã. Arrastavam-se tateando, fugindo ao sol que reluzia em suas mucosas expostas, aninhavam-se uns aos outros para se proteger, cegos sob aquela luz.  Não eram dragões. Eram as criaturas vistas pelos primeiros que usaram essa palavra. Meu captor arrastou-me até um trecho, creio que a sudoeste. Abaixo, um manancial que escorria da rocha produzia um lodo espesso onde umas cem criaturas flutuavam. Ali ele me atirou.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

2891) Ray Bradbury 1920-2012 (8.6.2012)




(ilustração: John Sherffius)

Ray Bradbury escrevia bonito, e muitos leitores (e críticos) da FC dos anos 1950 se impacientavam ao perceber que ao invés de avançarem rapidamente pelo livro, virando página por página, estavam se detendo para reler e saborear um parágrafo especialmente rico em nuances de significado, inversões sintáticas, visualizações inesperadas, forte apelo sensorial.  Ele foi um dos primeiros estilistas da FC nos anos 1950, juntamente com Theodore Sturgeon, Cordwainer Smith e outros que não tiveram medo de escrever FC numa linguagem “poética”, esse terrível adjetivo que para muito escritor é o “beijo da morte”.

O estilo poético proporcionou a Bradbury, que começara sua carreira nas revistas mais baratas de “pulp fiction”, a chance de publicar nas revistas chiques dos EUA, revistas que pagavam bem e serviam como vitrine diante da “intelligentzia” literária.  Com isto ele abriu duas frentes de leitores, simultâneas – os intelectuais que liam “Collier’s” ou “The Saturday Evening Post”, e a rapaziada da FC que lia pulp magazines como “Planet Stories” e “Astounding Science Fiction”.  Manter e unir esses dois públicos foi uma das muitas façanhas desse autor que sempre soube assegurar a ampliação e manutenção do seu contingente de leitores: foi roteirista de Hollywood (“Moby Dick”, de John Huston), teve dezenas de histórias adaptadas para a TV e os quadrinhos, e escreveu numerosas peças de teatro.

Quando Mikhail Gorbachev visitou os EUA e foi recebido por Reagan na Casa Branca, os únicos convidados cujo nome ele indicou pessoalmente foram Ray Bradbury e Isaac Asimov, com a explicação: “São os autores norte-americanos mais conhecidos e mais amados na URSS, e os favoritos da minha filha”.  A FC tem esse espírito eliminador de fronteiras geográficas e políticas. 

Assim como Asimov, Bradbury não dirigia automóvel e tinha medo de avião. Melhor para nós, porque cada vez que ele ficava em casa escrevia um conto como “O pedestre”, “Um som de trovão”, “Encontro noturno”, “O anão”, “A terceira expedição”...  Como escritor de FC, Bradbury sempre teve uma atitude crítica contra a tecnologia, a mecanização, a cultura de massas. Seu romance mais famoso, “Fahrenheit 451”, é um terrível panfleto contra uma sociedade dominada pela propaganda e por “reality shows”. “As crônicas marcianas” não são a história de um triunfo, mas de uma colonização brutal, em que os terrestres destroem impiedosamente a civilização marciana.  Seu temperamento sentia-se talvez mais à vontade na fantasia tenebrosa (“dark fantasy”) onde ele foi o mestre de uma mistura peculiar entre o lirismo, o fantástico, o terror e o humor. 

quinta-feira, 7 de junho de 2012

2890) Ganhando a vida (7.6.2012)





Dias atrás fui ao cinema e na saída encontrei uns conhecidos que não via há tempos.  Fomos tomar um chope ali perto, falamos de cinema (ou melhor, de como todo filme de Woody Allen parece uma continuação do filme anterior, só que com outros personagens), de futebol (e concordamos que nossos julgamentos sobre um clube de futebol dependem mais do resultado do último domingo do que de um século inteiro de altos e baixos), de política (concordei diplomaticamente com todos os absurdos que ouvi) e finalmente de dinheiro.  Cada um se queixou das dificuldades econômicas do país, e cada um descreveu como estava se virando.

Romualdo, por exemplo, revelou que vive de ser fiador.  Como assim?, perguntei.  Ele explicou que os pais, precavidos, botaram no nome dele a casa que possuem.  Como no Rio a procura por fiadores que possuam imóvel é grande, ele virou fiador-de-aluguel para amigos e conhecidos, cobrando a “uma agenda” de gente uma quantia mensal que vai de 100 a 200 reais, conforme o valor. “Todos pagam”, disse ele, explicando ainda que para quem consegue um bom apartamento na Zona Sul tanto faz pagar 2.500 como 2.600 reais por mês.  E a inadimplência?, perguntei.  Ele deu de ombros e afirmou que tinha uma “reserva técnica” que até então não fora necessária.

Valdir, que tem vinte e poucos anos, ganha a vida como ressuscitador de dados.  Como assim?, perguntei.  Ele explicou que uma das coisas mais comuns hoje em dia é gente que tem arquivos importantes (orçamentos familiares, diários, relatos de viagens, TCCs e teses de mestrado, etc.) gravados em mídias que a maioria dos computadores de hoje não lê mais, como os famosos “floppy disks”, os disquetes de 3.5”, CDs gravados com softwares meio defasados (Wordstar... WordPerfect...) e assim por diante.  Como o sogro dele trabalha na “oficina digital” (setor de consertos) de uma grande empresa, ele tem acesso a variados de tipos de computadores 286, 486 e outras mídias jurássicas.  E na maior parte dos casos consegue recuperar os dados perdidos, atualizar seu formato e transferi-los para um pendraive ou outra engenhoca moderníssima.  “Tendo a certeza absoluta”, diz ele, “que daqui a 10 anos a mesma pessoa me virá com o pendraive pedindo-me que transfira os dados para a interface bioquântica que ela mandou implantar no cérebro”.

Um grande financista disse uma vez que onde existir uma necessidade humana existirá uma oportunidade para se ganhar dinheiro. Uma sociedade cada vez mais complexa aumenta exponencialmente essas oportunidades. Por que me maravilho com isto?  Talvez porque eu ganho a vida exatamente como milhões de pessoas ganhavam cem, duzentos anos atrás.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

2889) O repórter robô (6.6.2012)


(ilustração: Mark Allen Miller)



Sempre me perguntam como consigo redigir um artigo por dia. Mal sabem que recorro aos serviços da Narrative Science, empresa de Chicago (http://www.narrativescience.com/) cujos softwares redigem matérias jornalísticas a partir de bancos de dados. Os programas da NS já conseguem produzir relatos sucintos e precisos de 10 ou 15 linhas sobre jogos de beisebol da Little League norte-americana (uma espécie de campeonato nacional de juniôres, como se diz aqui). Segundo a revista Wired de maio, na matéria “The Rise of the Robot Reporter” (http://bit.ly/JXNvKq), a história começou em 2009, com um software simples: “Eles colocaram os dados, o placar e um resumo minuto-a-minuto, e em 12 segundos o programa citou exemplos de 40 anos da Liga Profissional, redigiu uma sinopse da partida, escolheu a melhor foto e escreveu a legenda”. A equipe de 30 pessoas da NS conta com “meta-escritores” que produzem os templates de texto, ou seja, as frases a serem usadas para exprimir as ocorrências do jogo, depois dos dados serem interpretados.

Diz Steven Levy, autor da matéria, que softwares desse tipo podem extrair significado de quantidades gigantescas de dados; finanças e esportes são duas áreas especialmente propícias para isto. Há muito otimismo na empresa, para quem “qualquer pessoa que precise verbalizar e explicar grandes quantidades de dados pode se beneficiar deste serviço. (...) Há muita gente disposta a pagar para converter todas aquelas informações confusas em alguns parágrafos legíveis que ressaltem os pontos principais”. Outras empresas estão entrando neste ramo ainda recente, como a Automated Insights (ex-Stat Sheets) da Carolina do Norte.  O custo de produzir esse tipo de informação é tão baixo que torna-se rentável até mesmo redigir relatórios específicos para um único cliente.

A NS pensa em ampliar seus serviços até para áreas de lazer como os videogames, produzindo, p. ex., sinopses de sessões de World of Warcraft, cujos jogadores teriam acesso a um resumo detalhado do jogo, uma narrativa que soaria como se um jornalista os tivesse acompanhado ao longo da aventura. David Rosenblatt, na NS, diz: “A Internet gera mais estatísticas do que qualquer outra coisa que já tenhamos visto, e a nossa companhia se dedica a transformar estatísticas em palavras”. O artigo de Levy considera que algoritmos e repórteres poderão trabalhar lado a lado no futuro, seja com os computadores interpretando dados e pessoas redigindo os textos finais, seja com repórteres humanos entrevistando pessoas e formalizando os dados que depois serão transformados em textos pelos softwares. As possibilidades, como sempre, são infinitas.

terça-feira, 5 de junho de 2012

2888) "Game of Thrones 2" (5.6.2012)




A temporada 2 de Game of Thrones encerrou-se com dois episódios bem diferentes. O 9, “Blackwater”, mostrou o cerco de King’s Landing pela esquadra de Stannis Baratheon: a aproximação dos navios, a batalha em mar, a batalha em terra, o triunfo final dos defensores.  Obedecendo a uma unidade de tempo e de espaço que acho ser rara em séries desse tipo, o episódio se pareceu mais com um filme do que com uma série (e a gente diz isso como antigamente dizia: “nesse momento, o filme fica parecendo uma peça teatral”).  No episódio 10, “Valar Morghulis”, a ação voltou a se multiplicar pelas várias aventuras simultâneas. Gente caiu e gente subiu ao poder. Longe dali, pouca gente se importava.

Duas das histórias secundárias ganharam força, e acabam sendo duas investidas de dois gêneros diferentes contra um terceiro que está no poder.  Game of Thrones é uma fantasia heróica de configuração medieval, como as obras de Tolkien e tantas outras. É fantasia no sentido de que decorre num mundo imaginário onde não existem as nações da Terra, as religiões da Terra, as referências da Terra. Dentro dessa estrutura, deverão ganhar força na temporada do ano que vem duas “invasões genéricas”: a espada-e-feitiçaria através de Daenerys, a lourinha dos dragões; e o horror através dos Caminhantes Brancos, os zumbis de além-Muralha.

O seriado tem personagens que na tela, mesmo talvez não tão bem esmiuçados quanto no livro, parecem plausíveis e às vezes surpreendentes, pela malícia do seu pensamento e pela ocasional nobreza de suas ações. A intriga cortesã e todo o xadrez das traições políticas são bem armados, embora alguns personagens ainda sejam muito de-uma-nota-só.  O anão Thyrion perdeu poder mas ganhou respeito entre as tropas, o que nas histórias de conspirações militares sempre ajuda. Robb Stark, o imperador do Norte, tinha provado ser melhor general do que se esperava, e agora vai ter que provar que é marido. A guerreira Brienne está conduzindo Jaime Lannister, numa situação meio sargento-getúlio, rumo a um destino ignorado, porque antes disso pode um matar o outro, ou podem acabar se casando. Os dragões de Daenerys virão aquecer uma possível situação de calmaria, assim que Lannisters, Greyjoys, Starks etc. consigam um naco suficiente do que estão querendo; aí, sai a parafernália Tolkien e entra a de Anne McCaffrey.  A menina Arya viverá mais aventuras dickensianas nas senzalas dos castelos, antes de empunhar a espada e abrir caminho até o rei Joffrey.  E vem por aí uma ameaça de além da Muralha, que vai mostrar um problema de verdade e a enorme infantilidade e irrelevância do jogo dos tronos e do choque dos reis.