Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quinta-feira, 30 de junho de 2011
2596) A paranóia de Truman (30.6.2011)
Nos meus momentos de euforia, tenho certeza de que o mundo é falso e só eu sou verdadeiro. Nos meus momentos de depressão, tenho certeza do contrário. Médicos canadenses já perceberam a ocorrência de uma nova doença mental nos últimos anos, que eles chamam de “Síndrome de Truman”, porque parece ter sido deflagrada pelo filme O Show de Truman de Peter Weir. Os indivíduos afetados por essa condição (todos eles homens) afirmam aos seus médicos terem certeza de que estão sendo vítimas de uma enorme conspiração. Sua vida pessoal é transmitida ao vivo para milhões de pessoas, ininterruptamente, e sua família (esposa, filhos, etc.), seus amigos mais próximos, seus colegas de trabalho, são todos atores contratados para representar aqueles papéis. Ou seja, exatamente o que ocorre com o ingênuo Truman Burbank do filme, interpretado por Jim Carrey. (Ver: http://goo.gl/00vvW).
Descontando o fato de que eu penso exatamente isto da minha própria vida, a emergência dessa nova forma de paranóia indica um curioso fenômeno de retroalimentação, de feedback. Certos aspectos paranóicos da realidade geram uma obra de arte que em troca reforça esses aspectos, até que a realidade produz a seguir outra obra ainda mais explícita, aumentando ainda mais a tendência, e assim por diante. Truman Show é um reflexo da obra de Philip K. Dick, cujos romances mostram o tempo inteiro personagens em dúvida quanto à própria identidade (“sou isso mesmo que penso que sou, ou sou outra pessoa que pensa que sou eu?”). Lembrem-se do personagem de Schwarzenegger em O Vingador do Futuro: um operário que para se distrair recebe implantes de memória dizendo que é um espião e nesse momento se lembra que é mesmo um espião, que havia recebido implantes de memória para pensar que era um operário. Será isso mesmo? Qual das duas certezas está certa?
Truman Show chegou a ser processado pelos agentes de Dick, que alegavam plágio a outra obra do escritor, Time Out of Joint, em que um sujeito mentalmente instável (mas importante para o Governo, que está em guerra) é mantido numa cidade artificial cheia de atores que o ajudam a viver uma ilusão pacífica. O filme tornou-se emblemático dessa nova condição moderna, que envolve os seguintes aspectos: 1) perda de privacidade (o mundo está se tornando um Big Brother, estamos sendo o tempo inteiro espionados por alguém); 2) expansão da Sociedade Espetáculo (o exibicionismo público é uma prova crucial de status; queremos ser vistos 24 horas por dia para termos certeza de nossa própria existência); 3) artificialismo e referencialidade no comportamento humano (as pessoas adotam, cada vez mais, modos de ser, falar, vestir, etc. copiados de filmes, comerciais, etc.; tornam-se cada vez mais artificiais e imitativas); 4) divórcio profundo entre o que realmente queremos ser (o Eu profundo) e o que a sociedade nos obriga a ser (o personagem que representamos diante do mundo inteiro).
quarta-feira, 29 de junho de 2011
2595) Diretores e idéias (29.6.2011)
Dias atrás me referi a Hitchcock como um diretor sem idéias. Perguntaram-me por que motivo não gosto dele. A verdade é que talvez eu goste de Hitchcock ainda mais do que alguns dos fãs que o defendem. Mas existem os artistas que são somente artistas, embora sejam Titãs da Literatura ou Gênios da Humanidade; e existem os artistas que têm idéias próprias sobre o mundo. Em qualquer categoria de atividade há as pessoas que têm idéias próprias e as que não as têm: matemáticos, pintores, taxistas, roqueiros, políticos, bancários, antropólogos, o escambau.
Peço perdão se estou sendo injusto, mas não me consta que João Gilberto, Buster Keaton, Chuck Berry, Castro Alves, Nureyev, Roberto Carlos, Basquiat, Paul McCartney ou Jackson do Pandeiro tivessem idéias próprias sobre o mundo. São estúpidos, sem personalidade? Longe disso. São artistas geniais (sou fã de todos eles), mas sua visão das coisas não vai além da visão coletiva das sociedade em que estavam mergulhados. Viviam suas contradições, suas dúvidas, suas descobertas; envolviam-se nas lutas do seu tempo; usavam seu talento com força máxima para exprimir suas opiniões, suas emoções, suas observações, mas isto não era o bastante para erguê-los acima do oceano mental em que flutuavam.
Para isto, o artista, genial ou não, precisa de idéias próprias, precisa de um mínimo daquilo que os alemães chamam de “Weltanschauung”, visão-do-mundo, palavra da moda nos anos 1960 em que fiz minha cabeça. Precisa ter idéias pessoais, fruto de um ponto de vista que é só seu e de mais ninguém, produto da salada pessoal, cultural, afetiva e intelectual que cada um de nós tem e é única, irrepetível, inimitável.
Quem, então, tem essas famosas idéias próprias? Em mais uma lista feita ao acaso, posso citar Ingmar Bergman, João Cabral, Rimbaud, Buñuel, Bob Dylan, Guimarães Rosa, Borges, Ariano Suassuna, Brecht, Maiakóvski, e por aí vai.
Em cada um deles, vemos, ao lado de uma obra notável, uma interpretação pessoal do mundo que vai além da obra em si, torna-se um pensamento. Lembrem daquelas coleçõezinhas que têm títulos como O Pensamento Vivo de Fulano. Eu consigo imaginar um livro intitulado O Pensamento Vivo de Jean-Luc Godard, mas não consigo imaginar O Pensamento Vivo de John Ford. Ambos são grandes diretores, mas Godard tinha um conjunto de idéias extra-cinema e John Ford (estarei sendo injusto?) parece que não.
Diretores como Spielberg, Hitchcock, Sérgio Leone, Don Siegel, Howard Hawks (e outros) são cineastas, ponto final. Indivíduos com uma compreensão instintiva da alma humana, dos dramas humanos, e com a capacidade de exprimir isto através da narrativa, dos atores, da câmara. Mas não me dão a impressão de serem pensadores, de serem pessoas que se destacariam caso não fossem cineastas.
Uns não são inferiores aos outros, porque ninguém é obrigado a ter uma visão do mundo própria (eu mesmo não sei se tenho). Mas essa distinção existe, é real, e é importante.
terça-feira, 28 de junho de 2011
2594) Fowles e a descrição (28.6.2011)
(John Fowles)
O escritor John Fowles (autor de O Colecionador, A Mulher do Tenente Francês, etc.) queixa-se, num trecho do seu diário publicado pela revista Granta (# 86), da cansativa tarefa de revisar um romance de mais de mil páginas (Daniel Martin, publicado em 1977).
Diz ele:
“Uma tarefa aparentemente interminável, com um manuscrito deste tamanho. Cuidando das repetições: desta vez os criminosos são as palavras “little”, “faintly” e “silent”. É difícil escrever sobre os ingleses sem usá-las. Posso perceber por que motivo recorro tanto a esses adjetivos e advérbios com idéia de diminuição: há uma escassez de verbos e de adjetivos para descrever o micro-comportamento, e isso aumenta o peso dos poucos que existem.
"Eu uso em demasia termos como “grimace” e “pull a face”; na verdade, há dezenas de variantes destas expressões, mas apenas duas ou três palavras ou frases para indicá-las. O pior é tudo quanto tem a ver com ironia ou secura – metade de qualquer conversação entre ingleses educados as empregam através de expressões faciais ou de atitudes, ou seja, de forma não-verbal, o que significa que não se pode (ou pelo menos não se pode sempre) transmitir a ironia através do diálogo”.
Isto revela um problema de escritor que se torna, por tabela, um problema de tradutor. As caretas servem como comentário ao que estamos dizendo, ou como reação ao que ouvimos do interlocutor.
Muitas dessas expressões são codificadas, têm um significado obrigatório (p. ex., franzir a testa para indicar estranheza, entortar o canto da boca para indicar desagrado), mas isto se dá dentro de cada cultura. Em outro país pode não significar nada, ou significar algo diferente.
Não entendo italiano, e fico imaginando se na língua italiana existem palavras específicas para indicar cada um daqueles milhares de gestos tipicamente italianos, que sublinham a conversa. Quando um italiano quer dar ênfase ao que diz, une as pontas de todos os dedos e balança a mão diante do rosto; há um nome para isto? Como se descreve isto num romance? E assim por diante.
O inglês é, como sugere Fowles, o contrário do italiano. Ele comenta não-comentando, ou seja, exagerando uma expressão pretensamente impassível, enquanto diz as maiores enormidades.
Vem daí o famoso humor por “understatement”, que consiste em minimizar (gestual e verbalmente) coisas seríssimas ou problemáticas. Deduz-se o sentido pelo contexto, não pela frase.
Um autor inglês escrevendo para leitores ingleses pode contar com uma certa dose de entendimento implícito, mas um tradutor nem sempre percebe quando o que se diz é justamente o contrário do que se fala.
Como um tradutor estrangeiro, que pode interpretar errado um brasileiro dizer “Muito bonito, hem?!” em tom de censura, e pensar que se trata de um elogio.
Grande parte dos erros de tradução não se dá propriamente em torno do vocabulário, mas em torno desses sentidos implícitos que por uma razão ou outra o tradutor não capta.
domingo, 26 de junho de 2011
2593) Contracapa de iPhone (26.6.2011)
(www.imagesavant.com)
& resposta que não produz novas perguntas não vale a pena
& poesia é como suco de laranja, é tudo uma mesma coisa mas cada copo tem um sabor personalizado
& quem inventou uma molécula pela primeira vez sentiu-se um Deus desse tamanhinho
& tempestades, raios, tsunamis, terremotos, vulcões, são os naipes da orquestra de um Deus entediado e wagneriano
& conseguiremos um dia fabricar máquinas defeituosas que consertarão a si mesmas?
& se eu deixar de fazer verso, cabou-se o mundo pra mim
& ficar rico é uma ilusão, porque não há um momento em que se diga “pronto, acabou!”
&um relógio movido a chuva, outro movido a sombra, outro movido a silêncio
& um software chamado Windows Ovni Maker
& mulher chama aquilo de ninho-de-amor, homem chama aquilo de matadouro
& uma chuva de derreter locomotivas
& um dragão com três asas, marginalizado como monstro
& um dia ainda vamos tentar curar resfriado com anagrama e dor de dente com bússola
& coração que merece uma condecoração por serviços prestados & minha maior qualidade é ausência de ambição, meu maior defeito também
& pode-se medir a idade mental de uma pessoa perguntando se ela escova os dentes por obrigação, por consciência ou por hábito
& carisma é uma espécie de alma que uns têm e outros não
& uma hidra com muitas cabeças cujo veneno está na cauda
& a História é uma lista do que sobrou boiando depois dos grandes naufrágios
& crocodilo japonês dizendo “aligatô”
& a peleja da cobra criada com o cachorro doido
& o amor é a arte de adivinhar o momento do relâmpago para fotografar sem flash
& verdadeira originalidade em literatura seria inventar (e consagrar no uso) uma letra a mais para o alfabeto
& certas mulheres se apaixonam por um troglodita, dedicam sua vida a transformá-lo num civilizado, e depois o traem com outro troglodita
& todo mundo me pergunta, e eu não tenho a quem perguntar
& quem sabe um dia a gente possa combinar coincidências, agendar imprevistos e sintonizar emoções
& perdeu-se um capítulo no meio do romance dele e até hoje ninguém reparou
& sou um mastim furioso tentando me devorar
& a vassoura da bruxa, o guarda-chuva de Mary Poppins, o raio de luz de Einstein
& durante o tratamento de canal ele repassou na memória o Canto IX dos Lusíadas
& dar independência a alguém é reafirmar sua dependência eterna
& se o sol não nascesse amanhã, continuaríamos todos dormindo, e as flores sem murchar?
& literatura é como o dinheiro, que em cada país muda de nome, de rosto e de valor, mas não de essência
& todo beijo é uma aventura, uma revelação, uma negociação e uma nota promissória
& um software chamado Maestro Eletrônico que afina e equaliza todos os canais de uma mesa de som
& um chiclete cuja parte doce estivesse guardada no final
& grupos musicais com formação alfabética: cavaquinho, cello, clarineta e cravo; ou piano, pandeiro, pífano e palmas
sábado, 25 de junho de 2011
2592) O Lux Jornal e o Google (25.6.2011)
Entre as profissões em extinção no mundo inteiro certamente está a de “recortador, por encomenda, de todas as notícias de jornal referentes a uma pessoa ou entidade”. Antigamente existia uma empresa chamada Lux Jornal, que fazia exatamente isto. Quando a gente tomava parte em algum evento importante (por exemplo, estreava um show ou lançava um livro) era costume ligar para o Lux Jornal, dar o nosso nome e contratar os serviços. Durante os dias seguintes, qualquer referência que fosse publicada em qualquer jornal do país seria localizada, recortada, colada numa folha de papel (com a anotação do nome do jornal, a página e a data) e colocada num envelope. Ao fim de um período previamente acertado (uma semana, duas, um mês, etc.), esse material nos era remetido. E a gente pagava o preço combinado.
Eu já recorri ao Lux Jornal algumas vezes. Não me lembro quanto custava. Não era um preço inacessível, mas também não era uma coisa que a gente se dispusesse a contratar sem um objetivo específico (só pra ver se estavam falando na gente, p. ex.). Custava alguma grana, sim. Afinal, a empresa vivia disso, e tinha que pagar as toneladas de jornal que consumia.
O Lux Jornal foi suplantado pelo Google. E o mais interessante é que mesmo as pessoas que usavam o Lux Jornal acham que o Google é algo que surgiu do nada, que antes do Google existir não havia nada exercendo essas tarefas de busca. Reconheço que as buscas do Google são mais específicas do que a do Lux Jornal. Neste, não faria sentido mandar recortar toda matéria de jornal onde aparecesse a palavra “deputado” ou a palavra “gol”. São buscas mais variadas, também. E sempre que vejo gente celebrando o Google tudo acaba se resumindo a uma celebração da sua velocidade. Pelo que vejo, velocidade de resposta é um critério valorizadíssimo em nosso mundo. Vi há algum tempo uma imagem curiosa, o “Google Classic”, uma página do Google reproduzida como se fosse uma folha de papel impressa em estilo retrô, tendo abaixo: “Aguarde 30 dias pelos resultados”. Era exatamente o conceito do Lux Jornal. A imagem era engraçada porque obrigava pessoas do mundo de hoje a imaginar um Google que mandasse os resultados pelo correio, num envelope.
Arthur C. Clarke disse que qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia. A magia, segundo essa visão, é a produção de efeitos extraordinários sem que a gente perceba as mediações (todas as pequenas e sucessivas tarefas de ordem técnica) que produziram aquele resultado. Para mim, acender uma lâmpada elétrica não é magia, porque eu posso reconstituir mentalmente como aquilo é feito: o interruptor, o contato, a corrente elétrica, o fio, o filamento da lâmpada... Um primitivo não sabe. Ele vê a lâmpada se acender e diz “Caramuru!”. O Google é o conceito do Lux Jornal sofisticando-se até chegar a um ponto em que produzirá os resultados e nenhum de nós será capaz de entender como aquilo aconteceu.
sexta-feira, 24 de junho de 2011
2591) O Santos é o novo campeão (24.6.2011)
E o Santos acabou campeão da Libertadores da América. Foi sempre melhor do que o Peñarol do Uruguai, nas duas partidas decisivas. Foi melhor nestes dois jogos do que em todo o transcorrer da competição. Pelas transmissões que acompanhei, o Santos se impôs pela categoria em muitos momentos, e quando a categoria faltou se impôs pela raça e pela capacidade de resistência. Em vários jogos decisivos conseguiu segurar um placar favorável mesmo embaixo de um impressionante bombardeio do time adversário. É o melhor time do Brasil no momento, embora seja um time que, curiosamente, nem sempre joga dentro do que lhe é possível apresentar. Pelos jogadores e pelo técnico que tem, deveria estar jogando melhor e ganhando com mais facilidade. Se nem sempre acontece, paciência. Este ano já foi campeão paulista e campeão do continente. Tô reclamando do quê?
Vamos agora abrir uma cerva em honra de Muricy Ramalho. Ô cara pra dar sorte a um time! Três vezes seguidas campeão brasileiro pelo São Paulo, depois campeão brasileiro pelo Fluminense (uma verdadeira façanha), e agora campeão das Américas com o Santos... Houve uma imagem bonita no jogo de 4ª.feira, quando durante a comemoração Pelé ergueu a mão de Muricy e o arrastou para o centro do gramado, numa atitude de “esse é o cara”. E é.
Existe uma distinção interessante, que os leigos geralmente não percebem, entre um time de futebol e um clube de futebol. O time são aqueles onze caras em campo, vestindo aquela camisa. O clube é o resíduo acumulado das histórias, das lendas e da arte de todos os times que vestiram aquela camisa. O time é o presente, o clube é a tradição acumulada. Uma memória que produz uma ética própria. Daí que muitas vezes o time em campo, seja ele qual for, se amolda ao espírito do clube. Clubes famosos pela raça instilam essa raça em jogadores apáticos ou tímidos; clubes conhecidos como academias do futebol ensinam zagueiros truculentos a desarmar sem falta e atacantes rompedores a driblar com classe.
O Santos produziu o maior jogador de todos os tempos e alguns dos melhores times da nossa história. É bonito ver, numa conquista como esta, dois garotos como Paulo Henrique Ganso e Neymar ao lado do setentão Pelé, que vibrou como um menino. Quando eu falo em tradição cultural muitas vezes sou chamado de saudosista, passadista, nostálgico. “Ah, você é como Suassuna ou Tinhorão, acha que só as coisas antigas prestavam, e que as de hoje não valem nada”. Ledo engano, meus camaradinhas. Ser tradicional é ter consciência dos altos níveis que o Brasil já atingiu, e exigir dos brasileiros de hoje que atinjam, no mínimo, as mesmas alturas. Neste país que quanto mais se comunica mais emburrece, e quanto mais emerge da pobreza mais se torna escravo do consumo, é preciso lembrar sempre o que já fizemos de melhor. Ser tradicionalista é saber que o fato de termos tido Pelé nos ajuda (e nos obriga) a ter um Neymar. Parabéns, santistas.
quinta-feira, 23 de junho de 2011
2590) Drummond: Sweet Home (23.6.2011)
(Drummond, por Thiago Neumman)
Carlos Drummond era um personagem contraditório e surpreendente, meio caretão por um lado, meio devasso por outro. Visto do Norte-por-Noroeste era um burocrata sério, visto do Sul-Sudoeste era um garoto travesso e chapliniano. Tinha duas colheres de cristão, e uma e meia de comunista.
Foi moderno quando ser moderno era ser exposto à galhofa, e retornou ao soneto quando ser moderno era uma garantia de paparicação. Era um funcionário público acomodado? Era um desconstrutor de idéias herdadas sem muita reflexão? Gostava do quê? De transgressões molecas ou de aconchego familiar?
É nessa refração de possibilidades que fica mais interessante olhar “Sweet Home”, poemazinho do livro Alguma Poesia de 1930. É um texto que lê diferente para olhos diferentes, descrevendo a tranquilidade e o conforto doméstico que os poetas de vários idiomas atribuem aos burgueses:
“Quebra luz, aconchego.
Teu braço morno me envolvendo.
A fumaça do meu cachimbo subindo.
Como estou bem nesta poltrona de humorista inglês”.
Esta última frase é deliciosa, sugerida pelo cachimbo (que Drummond não fumava – estarei errado?). E que lembra o soneto de Mário Quintana, “Que bom ficar”, em A rua dos cataventos (1940), que se encerra com este terceto saboroso: “Sair assim (tudo esquecer talvez!) / e ir andando, pela névoa lenta, / com a displicência de um fantasma inglês...”
Esse inglesismo, esse burguesismo tão começo-de-século, é satirizado por Drummond no contexto de um mundo que vai ficando moderno e, quem sabe, ameaçando algum sossego antigo:
“O jornal conta história, mentiras…
Ora, afinal, a vida é um bruto romance
e nós vivemos folhetins sem o saber”.
O burguês quer aventuras, mas as prefere no folhetim semanal que lhe vem por baixo da porta, pelas mãos do jornaleiro. O burguês quer aventura sem perigo, emoção sob controle, novidades que já conheça. O que ele gosta, gosta mesmo, vem em seguida:
“Mas surge o imenso chá com torradas,
chá de minha burguesia contente.
Ó gozo de minha poltrona!
Ó doçura de folhetim!
Ó bocejo de felicidade!”.
Todo este poema é como uma daquelas imagens em que podemos ver duas coisas diferentes por uma simples mudança na maneira de olhar. O mesmo desenho mostra uma mulher ao espelho ou uma caveira. Outro mostra uma jovem ou uma velha; etc. O poema de Drummond mostra para mim o tédio insuportável, o ramerrão de uma vidinha sem graça, e ao mesmo tempo a felicidade e o aconchego de uma vida sem sobressaltos, sem desconfortos, sem questionamentos, a vida que o mundo burguês promete (e em muitos casos garante) a quem jogar o seu jogo.
Não sei se estou sendo muito ousado em supor que Drummond, tanto quanto eu, via essa vidinha com menosprezo e com nostalgia. Tudo em seu intelecto a repudiava por medíocre, mas algo em sua estrutura mental se conformava a ela como os humoristas ingleses se conformavam ao imperialismo, ao colonialismo e ao fardo do homem branco.
quarta-feira, 22 de junho de 2011
2589) Hitchcock (22.6.2011)
Está havendo no Rio de Janeiro uma vasta retrospectiva da obra de Alfred Hitchcock, exibindo os clássicos que todo mundo conhece, muitos filmes mudos que fez na Inglaterra no começo da carreira, e também um grande número de episódios das séries de TV que coordenou e eventualmente dirigiu. Creio que os episódios que vi quando garoto tinham o título genérico de Suspense, que era também o nome da edição brasileira do Alfred Hitchcock’s Mystery Magazine, publicado aqui pela Rio Gráfica Editora.
Minha relação com Hitchcock, até os trinta anos, era menos de espectador ou crítico do que de fã ou torcedor. Lia tudo que se referisse a ele, gostava de qualquer filme dele (inclusive os piores, como Topázio). O tempo amainou esse entusiasmo; o tempo e o entusiasmo alheio, porque já observei que a melhor maneira de me fazer desconfiar de um artista é vê-lo sendo elogiado por gente que ouviu o galo cantar e não sabe onde. Infelizmente é o que acontece com o diretor de Psicose, cuja irresistível propensão para o marketing, a propaganda pessoal, e para o efeito fácil, o truque óbvio, acabou fazendo dele o diretor cujos filmes qualquer desorientado assiste e sai convencido de que viu uma obra de arte.
Sem querer depreciar os fãs de Hitchcock, penso hoje que o cinema dele é mais superfície do que substância, mais genialidade intuitiva para a narração visual do que idéias a respeito do mundo. Nesse aspecto assemelha-se (embora com temperamentos e efeitos diferentes) a Steven Spielberg, outro animal visualizador e narrativo, mas que não tem dez mil-réis de idéias sobre o mundo. Tanto um como o outro são os reis das quatro linhas do enquadramento, assim como Romário é o rei da grande área. Ali dentro, sabem de tudo. Parecem ter sempre a noção exata de como posicionar a câmara, como mover os atores, como cortar de uma cena para outra, como explorar todas as possibilidades e sugestões visuais de um dado ambiente ou cenário natural. Tudo isto para dizer o que? Não sabem. Estão somente contando uma história.
Os temas hitchcockianos já foram peneirados pela crítica até não poder mais: o Duplo, o Homem Errado, o Fetiche, o MacGuffin, a Loura Gélida... Diferentemente de Luís Buñuel, com o qual tem muitos pontos em comum, Hitchcock não parecia prestar muita atenção no mundo. Suas entrevistas (o livro de François Truffaut é um exemplo disso) são sobre questões técnicas e narrativas. Não parece preocupar-se com o significado do que está dizendo, e sim com a maneira mais original e eficiente de dizê-lo. É mais um artesão do que um artista.
Seu imenso sucesso, tal como o de Spielberg, parece se dever ao fato de que a mente de ambos flutua num limbo muito próximo daquele onde fervilham as mentes dos seus espectadores. Não há profundeza a que eles desçam e onde seu público não seja capaz de acompanhá-los. São grandes cineastas porque mostram de maneira espontânea o quanto um cinema feito só de imagens pode prescindir de idéias.
terça-feira, 21 de junho de 2011
2588) “O Emigrante Amador” (21.6.2011)
Livros de viagens geralmente são uma coisa muito chata, porque a tendência do autor é sair enumerando os museus que visitou, os restaurantes onde comeu, as compras que fez, os pontos turísticos onde se fez fotografar. Aqui e acolá, para suavizar um pouco esse catálogo, conta algum episódio pitoresco, em geral achando graça nos hábitos estranhos da população local. Claro que nem todos são assim. Para redimir o gênero bastaria o díptico de Érico Veríssimo narrando os anos em que viajou como conferencista pelos EUA: Gato Preto em Campo de Neve e A Volta do Gato Preto. Acabei de ler outro título que justifica a existência dessa fórmula: The Amateur Emigrant de Robert Louis Stevenson.
Em 1879 Stevenson, aos vinte e oito anos, apaixonado pela norte-americana Fanny Osbourne (uma mulher mais velha do que ele, mãe de filhos, e em processo de divórcio), embarcou num vapor da Inglaterra para Nova York, e chegando lá pegou um trem para a Califórnia, para ir ao encontro da sua amada. Qualquer namorada ficaria envaidecida com semelhante esforço; mais ainda se lesse depois (como a futura Mrs. Stevenson certamente fez) a espantosa jornada que foi essa viagem, para um sujeito sem muito dinheiro e com a saúde seriamente abalada (chegando à Califórnia Stevenson ficou meses de cama, e quase bate o trinta-e-um).
A edição que li reúne dois textos que de início foram publicados separadamente. “From the Clyde to Sandy Hook” (1879-80) conta a viagem de navio através do Atlântico; a segunda parte, “Across the Plains” (1892) conta a viagem de trem da Costa Leste até a Califórnia, que acabou de arrasar com sua saúde sempre vacilante. Stevenson era de uma família relativamente rica, mas escolheu viajar de segunda classe, em parte porque estava liso (o pai era contra seu namoro com Fanny), e em parte por curiosidade literária. Sua descrição do ambiente do navio, dos tipos humanos, dos episódios patéticos ou pitorescos, é extremamente vívida. (O prefaciador, Jonathan Raban, diz que este é “o melhor livro que ele escreveu”, o que é visivelmente um exagero). A viagem de trem é às vezes de cortar o coração, pela maneira brutal como são tratados os imigrantes. Seria bom ler este livro e ver o filme de Chaplin O Imigrante (1917).
A prosa de Stevenson é vívida, direta, com um olho agudo para detalhes, e um julgamento rápido e preciso dos tipos humanos, comovendo-se com o patético, espantando-se com a pobreza de espírito de uns, simpatizando com a ingenuidade ou a honestidade de outros. Stevenson descreve com grande percepção literária os ambientes; as referências que faz à qualidade da comida e ao cheiro desses lugares é notável. Alguém já disse que qualquer vida humana, bem narrada, daria um grande romance. Livros como este mostram que os grande livros estão dentro dos grandes escritores, e que até um passeio à padaria da esquina pode resultar numa boa obra literária, se for narrado por alguém que saiba escrever.
segunda-feira, 20 de junho de 2011
2587) A Guilda dos Ladrões de Livros (19.6.2011)
Há anos não era convocada uma reunião urgente da Guilda. Quando o mensageiro entregou-lhe o pergaminho, Hassan limitou-se a jogar uma capa sobre os ombros e partiu para a soturna casa de pedra, semi-abandonada, onde a Guilda promovia seus encontros mensais. Mesmo apressando-se, foi o sétimo a chegar, e o presidente Watanabe deu por abertos os trabalhos. Havia uma missão incompleta, disse ele, que respondia pela ausência dos três membros faltantes. Leterrier, o caolho de rosto vulpino e cabelos grisalhos; Arbogast, rosto quadrado, atlético, capaz de arrombar qualquer porta e escalar qualquer muralha; Ivanov, o silencioso russo de crânio liso e olhos cinzentos. Todos tinham ido na mesma missão, e nenhum voltara. Tiraram as sortes na sacola de veludo, e coube a Hassan a esfera vermelha da missão.
Com a planta baixa da Biblioteca no bolso do casaco, ele primeiro estudou e depois percorreu o minucioso labirinto de galerias pluviais, esgotos, área de serviço, corredores secundários, elevador de carga. Chegou por fim ao 11o. andar, à sala 11-F. Seus olhos acostumados a ver no escuro o conduziam a passos de feltro ao longo das silenciosas estantes, até achar a que buscava. Conferiu o selo na lombada, o código, o título. Por que motivo, pensou, os três mestres tinham fracassado? Por medida de segurança, antes de pôr o livro na mochila que trazia às costas, abriu-o, virou-o na direção do débil reflexo de luar que vinha da clarabóia, conferiu o título no alto da página, percorreu com os olhos algumas linhas:
“...na areia da praia, à luz cegante do sol de meio-dia, entrecruzavam-se rastros de pegadas que conduziam ao molhe, onde um navio a velas estava atracado. Suas velas traziam tatuagens de rostos humanos, e seus canhões eram retilíneas serpentes de bronze. Ele caminhou ao longo do molhe e saltou para o tombadilho. Não eram apenas as velas: nas tábuas do convés estavam entalhadas rostos humanos, ruga a ruga, pelo a pelo, por uma faca finíssima e infalível. Pisou com pudor naqueles rostos ao caminhar. Ergueu os olhos: as nuvens no céu também assumiam formas ovóides em que era possível discernir rostos expectantes de barbas brancas, de olhos brancos. Um gemido o fez olhar para baixo: o rosto sob o tacão de sua bota queixava-se de algo. Afastou-se. O que viera fazer ali? Viera buscar algo? O quê? O diário de bordo? Caminhou na direção do que lhe pareceu a torre de comando, mas as portas estavam pregadas com tábuas transversais em X. Mais um gemido: um homem com olho vazado, na parede do corredor, movia a boca como se quisesse dizer-lhe algo. Ergueu os olhos: no teto, outro homem de crânio liso mordia os lábios fazendo brotar um sangue espesso e marrom. Na parede, o rosto quadrado de alguém que ele conhecia estava partido ao meio por uma janela. O que viera fazer ali? Por que estava agora imóvel, num corredor vazio, fitando a parede oposta, a poucos centímetros do chão?
2586) Ronaldo Fenômeno (18.6.2011)
Ronaldo Fenômeno despediu-se da Seleção Brasileira, mas não do futebol. Ao falar para a torcida que assistia o jogo no Pacaembu, ele disse: “Até a volta, mas não dentro de campo”. Jogador que abandona os campos sempre procura um jeito de não abandonar o futebol. A primeira opção de muitos, claro, é virar técnico. Temos jogadores medianos que se tornaram bem melhores como técnicos: aí estão Wanderley Luxemburgo (Flamengo), Abel Braga (Fluminense), Felipão (Palmeiras) e tantos outros. Craques que se tornam técnicos têm carreiras mais problemáticas, porque se espera que eles façam como estrategistas o que fizeram como atletas: Zico e Maradona são dois exemplos. Será que Ronaldo vai se tornar um cartola, como provavelmente será o caso do futuro presidente do São Paulo, Rogério Ceni? Duvido. Ronaldo não tem perfil para isto, e tudo indica que se tornará uma figura de relações públicas e de propaganda, pelo seu carisma de simpatia, acessibilidade, bom mocismo.
A discussão recente era se Ronaldo poderia ser comparado a Pelé. Acho que a única coisa em comum entre eles é o fato de que foram grandes artilheiros em Copas. Pelé era um jogador completo, talvez o mais completo de todos os tempos, o jogador que era craque em praticamente todos os fundamentos. Ronaldo não foi um craque completo. Era um artilheiro, com enorme visão de gol e precisão ao bater na bola, e acima de tudo um jogador de arranque extraordinário, como o provam os numerosos gols (consultem o YouTube, ou a memória) em que ele parte do meio do campo, perseguido por uma alcatéia de zagueiros que tentam tomar-lhe a bola, e consegue levá-la ao fundo das redes. Saber entrar na área em velocidade com a bola, sem ser desarmado, é uma virtude cada vez mais rara no futebol de hoje (ninguém, hoje, faz isto melhor do que Lionel Messi). Era um dos pontos fortes de Ronaldo, que parecia capaz de dar a volta à arquibancada do Maracanã com a bola nos pés sem que ninguém da torcida conseguisse roubá-la.
A agilidade do começo da carreira, quando era magrinho, foi destruída pela preparação física que o tornou um gladiador musculoso. E que destruiu sua carreira, porque seus tendões e ligamentos não suportaram aquela massa muscular. Seu auge foi no período entre o Barcelona (1996-97), Inter de Milão (1997-2002) e Real Madrid (2002-2007).
Além de ser um goleador fantástico e ter jeito de menino bom, Ronaldo ganhou o amor da torcida pela impressionante recuperação entre as Copas de 1998 (quando sua misteriosa convulsão desarmou o Brasil no jogo final) e 2002, quando, contra as expectativas de muitos que o deram como acabado para o futebol, não somente jogou, como foi o artilheiro da Copa e deu o título ao Brasil. Foi um daqueles jogadores que fazem o estádio inteiro ficar de pé quando eles recebem a bola, porque naquele instante tudo pode acontecer. Não pode haver homenagem maior do que esta.
2585) A Internet e o microfone (17.6.2011)
Acho que muitos de vocês já presenciaram esta cena. Durante um seminário, simpósio, mesa-redonda ou seja lá que diabo for, há sempre um momento em que se faculta a palavra “para as perguntas da platéia”. Eu sempre achei essa premissa um tanto tendenciosa. E se a platéia, ao invés de perguntas, tiver respostas? E se, ao invés de pedir esclarecimentos aos luminares assentados na mesa, alguém tiver questionamentos a fazer, ou novas idéias a propor? Mas enfim, é o ritual, e coloca-se um microfone num pedestal perto do palco, ou circulando às mãos das mocinhas da produção, para que as pessoas façam suas perguntas. Um ou outro faz, e são respondidas. Mas aí alguém chega ao microfone e inverte a equação.
Ele começa sempre parabenizando o evento, parabenizando os participantes da mesa, elogiando a todos pelo brilhantismo de suas exposições... Aí depois fala um pouco de si mesmo, do quanto ele próprio perde noites de sono a pensar em todas aquelas questões importantes que estão sendo debatidas ali... Começam alguns murmúrios de impaciência, mas ele, impávido, começa a relatar um episódio que lhe ocorreu na juventude e que marcou toda sua vida a partir de então. Quando tentam interrompê-lo, pedindo que seja breve, ele assegura a todos que a narração desse episódio é essencial para a pergunta que fará a seguir; e há sempre algum participante da mesa que democraticamente aconselha, com um gesto, que é melhor “deixar o rapaz concluir o seu raciocínio”. Ele conta um episódio longuíssimo, fala em seguida do livro que acabou de lançar, menciona o endereço da editora, seu telefone, agradece e volta à sua poltrona.
Isso é igualzinho sabe a quê? À Internet. A Internet é uma espécie de microfone que de repente foi dis-po-ni-bi-li-za-do para uma platéia que há quinhentos anos, desde a invenção da imprensa por Gutenberg, estava acostumada a ficar apenas ouvindo, e julgando-se bem paga com isto. O mero direito de ouvir já era lucro. O privilégio duplo de saber ler e poder comprar livros era razão para festa, e não passava pela cabeça dos leitores que eles também poderiam ter seus 15 segundos de fama.
A maioria das pessoas que vai ao microfone nas mesas-redondas não tem perguntas a fazer nem respostas a distribuir. Quer apenas ver-se ali na frente e ouvir-se falando. O microfone lhe serve de espelho, no qual ele por alguns minutos sente-se pertencer ao mesmo mundo daqueles Olimpianos do palco. A Internet, idem ibidem. Na Internet, no blog, no saite, cada um de nós sente-se democraticamente escritor, porque o fato é que escreve, e tem todo o direito de pelo menos imaginar que é lido, mesmo que não o seja. (Quem publica livros imagina a mesmíssima coisa.) A Internet dis-po-ni-bi-li-zou um microfone para alguns bilhões de pessoas. Está saindo besteira a dar com um pau, mas paciência, mais vale deixar as pessoas concluírem o raciocínio delas.
2584) Ariano Suassuna, 84 anos (16.6.2011)
(detalhe de foto de Gustavo Moura)
“Por enquanto, só existem dois tipos de Governo: o dos opressores do Povo e o dos exploradores do Povo. O primeiro, é o dos Tiranos, o segundo é o dos Comerciantes. No primeiro tipo, o Povo é submetido e esmagado em nome da grandeza; no segundo é explorado em nome da Liberdade” (“A Pedra do Reino”, 1958-70).
“A carne implica essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo.” (“Auto da Compadecida”, 1956).
“É possível? Então não fomos feitos / somente para o amor e seus cuidados?” (“A Zélia”).
“As regras da Arte são constituídas pelos achados do gênio pessoal dos grandes artistas, achados que, depois de formulados intuitivamente, tornam-se exemplares, isto é, transformam-se em normas.” (“Iniciação à Estética”, 1972).
"[Eu escrevia assim] porque aquilo firmava uma tradição e um estilo, valorizava o que já existia na consciência coletiva, aproveitava, com maior solidez, uma arquitetura preexistente e que já recebera, na sanção coletiva, o selo de uma perenidade que só um orgulho muito tolo deixaria de lado em nome da criação exclusivamente individual.” (“O Casamento Suspeitoso”, 1957).
“Os brasileiros de compreensão e caráter menos elevados estão satisfeitos e sem remorsos, absolutamente de acordo com a situação e subornados por seus carros, suas piscinas, seus apartamentos, seus salários, suas rendas, seus empregados ou seus títulos universitários.” (“Aula Magna”, 1992).
“Eu tenho dentro de mim um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente e um profeta.” (entrevista, 2000).
“É melhor estudar um só livro, qualquer que seja ele, com raça, alegria e entusiasmo, do que estudar todos os livros do mundo friamente.” (“Iniciação à Estética”, 1972).
“Pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser dono da luz.” (“O Santo e a Porca”, 1957).
“Eu canto as Formas vivas, trabalhadas / pelo esforço que limpa e que Nos cansa.” (“Concepção, Quadro e Ode”, 1947).
“Homem, se é proibido eu não sei. O que eu sei é que você achava que era e depois, de repente, passou a achar que não era.” (“Auto da Compadecida”, 1956).
“Nós não precisaremos nunca de inventar uma imagem falsa da Vida para poder amá-la. Porque, na dureza e sob o Sol, nós aprendemos à força a amá-la, com o que ela tem de ardente e glorioso, mas também com o que possui de degradado, sangrento e sujo.” (“A Pedra do Reino”, 1958-70).
“Somos seres terríveis, majestosos, / mas ainda incompletos, / soltos no seio áspero da terra / em que abrimos primeiro os parcos olhos.” (“A Laurênio”, 1955)
“O inquérito continua aberto e em suspenso, de modo que, pelo menos por enquanto, sua Obra ficará assim, em suspenso e aberta, dependendo sempre de novos depoimentos que o senhor nos prestar.” (“A Pedra do Reino”, 1958-70).
2583) A badalação das celebridades (15.6.2011)
Semana passada a Seleção Brasileira se reuniu para dois amistosos, e o Globo do dia 3 anunciou no caderno de esportes: “Histeria por Neymar inaugura nova era na seleção brasileira”, comentando no corpo da matéria: “Natalle, Julliana, Noamy e Loyse, todas entre 15 e 17 anos, chegaram cedo, por volta das 9h, ao Hotel Castro, onde a seleção está hospedada em Goiânia. Barradas pelos seguranças, ficaram na porta, máquina fotográfica em punho, esperando Neymar”. É gozado como a imprensa adora a badalação juvenil. E pensando bem, também para um time de futebol é menos arriscado ser cercado por uma multidão de peruazinhas saltitantes do que por brutamontes de soco-inglês nos dedos reclamando que o time fez corpo mole.
A “nova era da Seleção” me lembra os tempos saudosos da Beatlemania, os quatro cabeludos correndo pela estação do trem, perseguidos por dez milhões de inglesinhas histéricas emitindo juntas um som equivalente ao de um milhão de turbinas de jatos da BOAC. Tudo muito divertido quando se tem vinte e poucos anos. Mas acabou cansando. George Harrison disse: “Me recuso a continuar subindo num palco para tocar música e não conseguir escutar o que estou tocando. I Feel Fine no show de ontem ficou horrível”. E Paul: “Oi, e tocamos I Feel Fine ontem?”. Em 1965 eles acabaram sua “nova era” do rock, trancaram-se num estúdio e se tornaram Os Beatles, pra valer.
É engraçado. No dia 7 de junho o mesmo Globo fez uma matéria sobre os 80 anos de Cauby Peixoto, “famoso no passado pelas estratégias de marketing de seu empresário Di Veras, que arranjava moças para desmaiarem diante do cantor (‘Só uma desmaiou de fato’, diz Cauby hoje) e rasgarem roupas já preparadas para este fim”. Não tenho dúvida de que as “macacas de auditório” de Cauby também inauguraram uma nova era na música brasileira.
E assim, meio serendipiciamente, esbarrei nesta página (http://tinyurl.com/3tu8q95) que comenta a histeria coreografada das fãs de Frank Sinatra após 1943, quando ele contratou o publicitário George Evans para planejar o tumulto das fãs. Evans dava 5 dólares a cada garota e as instruía cuidadosamente sobre o tipo de grito que deveriam emitir, e em que momento (sempre quando a canção subia de volume, nunca nos trechos mais intimistas). Treinava algumas garotas para gemerem em uníssono, e outras para desmaiarem nos corredores do teatro ou onde quer que houvessem fotógrafos por perto. .
Como se vê, a era Neymar não é tão nova assim. É velha a arte de manipular a libido de mocinhas saturadas de hormônios eufóricos. No mundo pop, sucesso é sinônimo de fotos autografadas e mocinhas gritando. O modelo do mundo pop é a herança maldita do século 20. Aguardem o noticiário da Flip ou das demais festas literárias. A imprensa mostrará escritores autografando a blusa de jovenzinhas incapazes de ler mais de 140 caracteres, e anunciará que isto inaugura “uma nova era para a literatura brasileira”.
terça-feira, 14 de junho de 2011
2582) Um Museu do Cordel na Lua? (14.6.2011)
Uma notícia ainda não confirmada vem sacudindo os corredores da NASA, e interessa muito de perto ao leitor brasileiro, ao nordestino em particular. Segundo as agências noticiosas, trata-se do envio para a superfície da Lua, durante a Missão Apolo 12, em 1969, daquele que pode ser o primeiro museu interplanetário da Literatura de Cordel. A façanha se deve à presença de um grupo de brasileiros na equipe de centenas de pessoas (engenheiros, astrofísicos e analistas de sistemas) responsáveis pelo voo, contando com a cumplicidade eventual de norte-americanos.
No grupo de técnicos brasileiros foi confirmada a existência de dois pernambucanos, dois paraibanos e um cearense, sendo que ainda estão sendo interrogados um potiguar e um alagoano. Segundo as informações confidenciais que vazaram para a imprensa, o grupo conseguiu miniaturizar uma placa feita de uma liga especial de silício e titânio, que foi clandestinamente afixada a uma das pernas do “Intrepid”, o módulo lunar que após a missão permaneceu pousado na superfície do satélite.
A placa teria cerca de 16 milímetros de altura por 11 de largura, e segundo seus criadores reproduz as proporções de um folheto de cordel (que tem essa medida em centímetros), e transcreve trechos (em português) de alguns clássicos da Literatura de Cordel – a qual com isto, ironicamente, tornou-se a primeira expressão literária da Humanidade a ser oficialmente depositada em outro corpo celeste. A primeira biblioteca interplanetária, por assim dizer.
Interrogados, os autores do projeto confirmaram que a plaqueta contém seis palavras, cada uma delas extraída de um folheto. A palavra “Plutão” foi retirada da quarta linha da 5a. sextilha de A Chegada de Getúlio Vargas no Céu e o seu Julgamento, de Rodolfo Coelho Cavalcanti. A palavra “ultra-vermelha” foi retirada da quinta linha da 91a. sextilha de A Fada da Borborema de Delarme Monteiro da Silva. A palavra “futuro” foi retirada da sexta linha da 11a. sextilha do folheto Conheça o Enigma das Inscrições Rupestres do Lajedo Pai Mateus de Manuel Monteiro. A palavra “inteligência” foi retirada da sexta linha da 20a. septilha do folheto Sacco e Vanzetti aos olhos do mundo, de João Martins de Athayde. A palavra “perguntou” foi retirada da terceira linha da 11a. sextilha de Casamento e Divórcio da Lagartixa de Leandro Gomes de Barros. Finalmente, a palavra “vida” foi retirada da sexta linha da 4a. estrofe do folheto Trigésimo Aniversário da Conquista da Lua de Gonçalo Ferreira da Silva.
Uma fonte de NASA, que não quis se identificar, asseverou que em momento algum o transporte desta plaqueta (que pesa apenas poucas gramas) colocou em risco a segurança da missão, e que a investigação tem caráter mais administrativo do que criminal. “Recebemos cópias dos livros utilizados”, disse a fonte, “mas ainda não entendemos o critério científico da escolha dessas palavras, bem como o propósito desses poemas sem pé nem cabeça”.
domingo, 12 de junho de 2011
2581) O menor lugar do mundo (12.6.2011)
Algum tempo atrás estive pesquisando sobre as micronações, aqueles países que são oficialmente reconhecidos como nações independentes mas têm apenas alguns hectares de território e algumas centenas de habitantes. (O Vaticano é o melhor exemplo – não passa de um bairro de Roma.)
Um conceito parecido com este é o de cidades (ou vilas) pequenas. Descobri que a menor vila do mundo é a brava Monowi, que fica no Estado de Nebraska, nos Estados Unidos. De acordo com a Wikipedia, ela tem apenas uma habitante, que atende pelo nome de Elsie Eiler, tem 77 anos, e dirige uma lanchonete, o único estabelecimento comercial ali existente.
No censo de 2000, Monowi tinha uma população de dois habitantes; no censo de 2010, teve uma perda de 50% e agora tem apenas um. A explicação: o marido de Elsie morreu.
Monowi tem uma área de pouco mais de 6 km2. Foi fundada em 1900, e por volta de 1930 tinha cinco mil habitantes, que aos poucos foram indo embora, em busca de melhores oportunidades de trabalho. Em 1971, o fechamento da estrada de ferro que passava por ali decretou a morte da vila, em termos práticos.
Ela ainda pode ser considerada uma localidade, creio, porque dispõe de uma escola com duas salas, uma igreja, uma biblioteca. Tudo isto vive fechado, mas eventualmente é utilizado por moradores das localidades vizinhas, quando necessário. (Como Monowi é muito pequena, as localidades em volta ficam a poucos quilômetros, não é muito diferente da maioria das localidades em nosso interior. A pessoa entra no carro e dez minutos depois chega lá.)
Todas as estatísticas sobre Monowi podem ser encontradas neste saite: http://www.city-data.com/city/Monowi-Nebraska.html.
Estatísticas em situações assim são sempre divertidas (não sei se há muitas cidades norte-americanas cujo índice educacional é de 100% para “secundário completo”). Mas a existência desta cidade me lembra um fato que citei aqui há pouco tempo, o de um idioma indígena mexicano que está a ponto de desaparecer porque tem apenas dois falantes.
Os linguistas têm uma série de critérios bem precisos para qualificar um idioma como vivo ou morto: número de falantes, faixa etária dos falantes (ou seja, a probabilidade de continuar a ser falado nas próximas décadas), publicações escritas, uma porção de coisas. Qual o critério para que uma localidade possa ser considerada uma vila ou coisa semelhante?
Porque isso me lembra aquela famosa imagem de Jorge Luís Borges sobre o mundo de Tlon, onde os lugares só existem enquanto alguém se lembra deles. Diz ele que às vezes, naquele mundo, as ruínas de um anfiteatro se preservam porque são frequentadas por um cavalo ou por alguns pássaros. A existência de Monowi tem um pouco dessa afirmação teimosa de vida, dessa recusa em deixar alguma coisa morrer enquanto alguém ainda está vivo. Por exemplo, enquanto houver num pé de serra uma casinha com uma velhinha escutando um forró no iPod, o forró estará vivo?
sábado, 11 de junho de 2011
2580) A FC da América Latina (11.6.2011)
Acabo de receber um exemplar de The Emergence of Latin American Science Fiction de Rachel Haywood Ferreira (Middletown: Wesleyan University Press, 2011), o mais recente título na crescente bibliografia de brasilianistas norte-americanos sobre a FC no Cone Sul. Rachel é professora na Iowa State University, e esteve no Brasil anos atrás entrevistando autores e pesquisadores da FC brasileira. Fez o mesmo em outros países, e seu estudo é um apanhado da FC praticada em nosso continente antes de 1920, ou seja, antes que o próprio termo “science fiction” fosse inventado. (Oficialmente, o termo surgiu em 1926, criado por Hugo Gernsback na revista Amazing Stories. No mesmo ano, Monteiro Lobato já estava publicando aqui O Choque – Romance do Choque das Raças na America no Anno de 2228, que atualmente tem o título de O Presidente Negro e voltou a ser discutido em função da eleição de Barack Obama.)
Qualquer estudo desse período mostra de maneira muito clara que a ficção científica de nosso continente não deriva dos “pulp magazines” norte-americanos pós-1926, mas dos chamados “romances científicos” europeus do século 19, tipicamente as obras de Julio Verne e H. G. Wells. Naquele tempo, era a Europa que nos colonizava culturalmente, que era contemplada e imitada pelos nossos literatos. Os EUA só a ultrapassaram após a II Guerra Mundial, quando a invasão foi maciça, e, ironicamente, não poupou sequer a debilitada Europa. Na história de qualquer país europeu, 1945 é um divisor de águas, é o momento em que Verne & Wells foram suplantados pela pulp fiction.
O livro de Rachel Haywood Ferreira refere obras brasileiras como Páginas da História do Brasil Escritas no Ano 2000 (folhetim, 1869-1872) de Joaquim Felício dos Santos, São Paulo no Ano 2000 (1909) de Godofredo Barnsley, Doutor Benignus (1875) de Augusto Emilio Zaluar, O Fim do Mundo (1856) de Joaquim Manuel de Macedo e “Demônios” (1893) de Aluísio Azevedo. São textos familiares aos pesquisadores brasileiros, embora praticamente desconhecidos pelo público leitor em geral. Creio que para nós a maior descoberta será a análise de RHF sobre autores de outros países, tais como Eduardo Ladislao Holmberg, Eduardo Ezcurra, Amado Nervo, Miguel Cané, Juana Manuel Gorriti, etc. Alguns, desconhecidos para nós; outros famosos, como é o caso de Leopoldo Lugones, mas sobre cuja obra de FC pouco sabemos.
O livro de RHF vem se somar a outros lançamentos recentes como Ficção Científica Brasileira de Elizabeth M. Ginway (São Paulo: Devir, 2005), Cosmos Latinos: an Anthology of Science Fiction from Latin America and Spain, editada por Andrea Bell e Yolanda Molina-Gavilán (Wesleyan University Press, 2005) e o brasileiro Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil – 1875 a 1950 de Roberto de Sousa Causo (Editora UFMG, 2003). São as primeiras escavações em busca da pirâmide soterrada da literatura fantástica em nosso continente.
sexta-feira, 10 de junho de 2011
2579) O final onírico (10.6.2011)
blackandwtf.tumblr.com
Um subgênero interessante do conto fantástico são as histórias de final onírico. Numa narrativa protocolarmente realista começam a acontecer coisas estranhas, impossíveis. A narrativa avança, e quando chega ao clímax, nas últimas linhas, o autor diz: “Pois tudo aquilo tinha sido um sonho!”. Isto se tornou um clichê tão reiterativo que a enorme maioria dos manuais literários do tipo Como Escrever um Conto risca do mapa essa possibilidade, logo de cara: “Não faça isto! Todo mundo já fez! Ninguém aguenta mais!”.
Às vezes é um sonho propriamente dito, porque o protagonista adormeceu na poltrona. Outras vezes é uma alucinação provocada pela bebida ou alguma outra droga. Outras vezes uma história contada por um narrador pouco confiável (“Um esqueleto”, de Machado de Assis). Ou um estado de devaneio momentâneo, estado alterado de consciência que faz o personagem “viver” mentalmente uma situação surreal, mesmo desperto (“A chinela turca” de Machado de Assis). Ou então um delírio criativo de um escritor que confunde a realidade com as visões que registra no papel (“Demônios”, de Aluísio Azevedo). Mas o desfecho obedece à mesma mecânica: “não, caro leitor, nada disto aconteceu, era tudo uma ilusão”.
A crítica principal que se pode fazer a esse tipo de história é que ele se constitui numa espécie de fraude literária, onde o leitor é induzido a fazer um investimento de energia emocional (identificando-se com os personagens, preocupando-se com os perigos que correm, etc.) para no final ser informado de que esse investimento foi em vão, pois não havia nada em jogo. Argumento válido – mas contra ele pode-se dizer que, sendo assim, toda literatura é uma fraude, uma vez que nem Madame Bovary nem os irmãos Karamazov existem de fato, tudo não passou de um sonho sonhado de outra forma. (Dever de casa: Produzir um argumento irrefutável, contra ou a favor desse subgênero).
Creio que essas histórias são, antes de tudo, um sintoma. Um estudo sério da ficção fantástica precisa levá-las em conta, porque elas exprimem, a meu ver, a difícil negociação íntima do autor que tem uma idéia fantástica mas está escrevendo num contexto literário e social em que tais idéias são esnobadas ou temidas. O romance realista foi o clímax da literatura da burguesia, que expulsou do mundo (ou julgava ter expulsado) o sobrenatural, que a burguesia ascendente identificava com seu adversário histórico, a religião. O autor precisa, portanto, criar uma moldura realista para sua história visionária. O conto, por medida de precaução, começa “aqui” (o território do Real, literariamente permitido), vai para “lá” (o fantástico, o estranho, o maravilhoso) e no fim volta para “aqui”. A ida só é permitida se a volta for obrigatória. Existe um ensanduichamento da história (peço perdão por este termo bárbaro), para que o leitor não tenha que pegar com a mão no conteúdo fantástico, e o faça protegido pelas duas camadas de realismo que o protegem.
quinta-feira, 9 de junho de 2011
2578) O Mauzão e o Bonzinho (9.6.2011)
Emparelharam com sirene, luzes piscando, fizeram sinal pra encostar no meio-fio. Obedeci, puxei o freio de mão e fiquei por ali. Veio um por um lado e o outro pelo outro. “Desce”, disse o primeiro, que tinha um bigode preto que parecia um rôdo. “Boa noite”, disse eu, bem alto, mesmo a rua estando sem um pé de pessoa às três da madrugada. O bigodudo abriu minha porta com força, me puxou pela gola da camisa, quase rasgando, e no mesmo movimento me fez dar uma volta e bater com o peito na lateral do carro. “Êpa”, falei, “vamos com calma”. “Cala a boca, seu porra”, disse ele, me apertando contra o carro com a mão esquerda. Foi arrancando tudo dos meus bolsos com a outra mão e jogando em cima do teto do carro. Enquanto isso o outro deu a volta e perguntou, como se a gente estivesse num domingo de sol assistindo uma regata: “E aí, tudo em ordem?”. Esse era louro e usava óculos. Era o Bonzinho. O Mauzão botou um cotovelo pontudo na minha espinha, me apertando, enquanto manuseava meus documentos, habilitação, carteira, sei lá o que ele estava olhando. “Pode trazer o bafômetro”, falei, só para dizer alguma coisa. Ele deu uma pancada na minha coluna com uma baioneta do exército alemão, ou talvez fosse somente o cotovelo. O Bonzinho perguntou: “Por que não parou quando a gente deu sinal?” Sem me mexer, respirei fundo e disse: “Acho que não vi. Tava ouvindo música”. O Mauzão remexeu nas coisas em cima do carro, talvez procurando um papelote ou um baseado. Só ia achar alguma coisa ali se plantasse. O Bonzinho afastou pro lado o Mauzão (que estava olhando cada compartimento da minha carteira) e disse baixinho: “Fica tranquilo, ele é meio agressivo mesmo, mas eu te garanto”. Foi a gota dágua. Virei-me para ele (o outro logo ergueu os olhos ao me ouvir) e disparei: “Olha aqui, seus palhaços, cretinos, borrabotas, seus milicos melados-de-óleo, seus personagenzinhos de telenovela inframental, de filmeco policialesco sub-hollywoodiano... Tou cansado dessa clicheria ambulante, dessa catatonia formulaica de repetir o repetido e dissolver em entropia o eternamente recodificado!” Peguei um e outro pela gola, trinta socos cá, trinta pontapés lá, dei no Zé uma surra com o João e depois dei no João uma surra com o Zé, joguei no asfalto, pisei, sapateei, enrolei um no outro e malhei o asfalto como quem malha sisal. Bati tanto que quando parei para respirar a transformação estava feita, a fusão concluída, arre diabo, será que tudo na vida tem que dar tanto trabalho? Ele se levantou meio tonto, limpando o uniforme. Perguntei: “Tudo bem?” “Tudo, senhor” disse ele, “tive uma tontura... Aqui estão seus papéis”. Olhei-o: óculos, bigode louro parecendo um rôdo... Guardei os papéis. Ele ainda me deu uma lição de moral e de velocidade no trânsito. Ao me afastar, vi que ele se abaixava e se olhava no retrovisor da viatura, como alguém que escapou de um perigo e acabou de nascer de novo.
quarta-feira, 8 de junho de 2011
2577) O Império da Verdade (8.6.2011)
É uma dessas encruzilhadas ético-afetivas que tantas vezes nos fazem sofrer. Lembrei do fato ao arrumar uns CDs antigos, empilhados num canto do meu escritório há tanto tempo que seria melhor considerá-los um sambaqui musical.
Anos atrás recebi uma mala-direta de gravadora. (Tá vendo? O fato é tão antigo que ainda havia gravadoras mandando mala-direta pra gente.) Falava do lançamento do CD de uma cantora jovem, transcrevia elogios da imprensa, e num deles (assinado por um jornalista respeitado) fornecia o link para a matéria completa. Além de respeitado o cara era meu amigo, e morava numa capital brasileira cujo nome é irrelevante para o caso.
Fui no link. A crítica procurava ser comedida mas era tão otimista quanto ao futuro da cantora que na primeira chance que tive consegui o CD e escutei. Surpresa, rosto em branco. Era bem fraquinho o disco; o verso mais original dizia algo como “sem você não sei viver”, e a menina tinha até uma boa voz, mas vacilante, travada... Nada muito comprometedor, mas nem um pouco entusiasmante.
Algum tempo depois um trabalho me levou àquela cidade e o Roteirista do Mundo me colocou numa mesa de restaurante com meia dúzia de conhecidos, entre eles o jornalista em questão. A certa altura lembrei do CD e comentei que ele tinha exagerado na dose de elogios. A tal cantora era meio chinfrim. Ele passou a mão pelo cabelo grisalho e disse:
- É, rapaz, já me falaram isso... Mas é minha filha. Gravou o primeiro disco, uma batalha danada, a menina ainda está meio verde, mas pode melhorar. O disco é ruim, mas você queria o quê, que eu dissesse a verdade?
Corolário: existem verdades factuais (coisas concretas que aconteceram e que podem ser comprovadas por testemunhas independentes), verdades intelectuais (coisas que, argumentadas, fazem sentido, mas existem apenas no plano das idéias e não podem ter comprovação material, nem precisam) e verdades afetivas, as mais difíceis de definir, mas que exercem talvez a maior pressão sobre as decisões que tomamos.
Qual o mais importante, a credibilidade do jornalista ou a solidariedade do pai? Ser fiel a um juízo crítico, ou dar uma força pra menina? Como equilibrar as duas coisas? O simples fato de equilibrar as duas coisas não relativiza a verdade, que deveria ser um valor absoluto, não condicionado por valores de outra ordem? Pedimos umas três saideiras enquanto tentávamos deslindar este complicado nó filosófico.
É a velha questão que se coloca o tempo inteiro na tomada de decisões da vida profissional. Devo obedecer a critérios técnicos ou a critérios políticos? Devo ser objetivo, sincero e imparcial, ou devo ver o lado humano latente em cada questão, e usar mais a bondade que a verdade, mais o afeto do que o intelecto?
Despedimo-nos sem encontrar a resposta, mas ao apertarmos as mãos ele me confidenciou que a filha estava agora estudando Jornalismo. “Leva jeito?”, perguntei. Ele riu e disse: “Puxou ao pai”.
terça-feira, 7 de junho de 2011
2576) O oral e o escrito (7.6.2011)
(ilustração de Alexeieff para Russian Fairy Tales)
No posfácio que escreveu para uma coletânea de contos de fadas russos, Roman Jakobson dá a certa altura um exemplo interessante de como uma literatura oral se forma na memória de um povo. Diz ele, a certa altura:
“Aqui nós estamos diante de um dos aspectos mais peculiares da vida cultural russa, que a distingue claramente da cultura do Ocidente. Durante muitos séculos a literatura escrita da Rússia esteve quase totalmente dominada pela igreja: com toda a sua riqueza e suas formas refinadas, a antiga herança cultural russa é quase totalmente voltada para as vidas dos santos e dos devotos, lendas piedosas, preces, sermões, discursos eclesiásticos e crônicas ao estilo monástico. O mundo leigo da Velha Rússia, contudo, possuía uma ficção abundante, original, diversificada e altamente artística, mas o único meio para sua difusão era a transmissão oral. A idéia de usar a palavra escrita para a poesia secular era totalmente alheia à tradição russa, e os meios expressivos dessa poética eram inseparáveis das formas orais de execução e transmissão”.
Coisa semelhante a esta nunca aconteceu no Brasil, por exemplo. Aqui, a divisão entre literatura escrita e literatura oral não teve muito a ver com religião. Ela se deu muito mais por conta de critérios de classe social e de nacionalidade: os portugueses mantinham um vínculo com sua cultura escrita, enquanto os “brasileiros” de todos os matizes tinham um grau de alfabetização dos mais precários.
Foram 400 anos disto. O que a situação na Rússia nos sugere é a coexistência em paralelo de uma enorme e sofisticada literatura religiosa escrita, e de uma enorme e sofisticada literatura leiga oral. Dois universos convivendo invisivelmente um com o outro.
Essa situação talvez ajude a entender dois aspectos peculiares da literatura russa. Um deles é a importância dada pelos estudiosos sérios da literatura às narrativas orais. O trabalho de Vladimir Propp (Morfologia do Conto, As Raízes Históricas do Conto Maravilhoso) estabeleceu a estrutura básica dos contos maravilhosos, reduzindo-os a funções, personagens, etc., e demonstrou que esses contos são uma ilimitada recombinação de agentes e situações que recebem diferentes roupagens em diferentes culturas.
A riqueza da literatura oral russa proporcionou a Propp e aos que o seguiram uma codificação notável dessas histórias. Histórias que no Brasil se reproduzem no Romanceiro Popular: as histórias de trancoso, os romances de origem ibérica e os folhetos de cordel.
Outro aspecto diz respeito ao grau extremamente musical, sonoro e experimentalista da poesia russa, desde poetas como Khliebnikov até Maiakóvski.
Muito dessa poesia russa já foi traduzida aqui no Brasil, e os intrincados efeitos sonoros que ela cultiva mostram (à luz do que diz Jakobson) a existência de uma tradição oral rica e sofisticada. Nem tudo que é oral é primitivo. Nem tudo que é escrito é sofisticado.
domingo, 5 de junho de 2011
2575) O taxidermista (5.6.2011)
(foto: urban75)
Passava das duas da manhã e caía uma chuva fina quando o táxi dobrou a esquina e veio devagar ao longo da calçada. Diminuiu ao se aproximar de um edifício, antigo, com grades em forma de alabardas pontudas. Um homem emergiu do portal, acenando. Bateu o portão atrás de si e entrou no banco traseiro. “Sr. Ribeiro?” perguntou o motorista. “Isso mesmo. Boa noite.” “Boa noite. Para onde?” ”Pode pegar a Avenida Pedro II e seguir em frente, até passar o Hipermercado”. O carro pôs-se a caminho, enquanto a chuva aumentava. Pouco trânsito, pouquíssimos pedestres. Os limpadores produziam dois borrões em forma de leques, e o carro tinha que avançar com cuidado, rodeando poças e buracos. “Tempo brabo”, disse o motorista. “Pois é”, disse o outro. “Precisa coragem pra sair de casa”. “Na verdade, quando eu saí estava fazendo sol, mas agora tenho é que voltar pra casa”. “Tem razão”. Silêncio durante uma quadra, o motorista avisou: “Gosta de bala de hortelã? Tem um saquinho aí”. “Ah, obrigado”. O homem desembrulhou uma bala, pôs na boca, e comentou: “Trabalhar numa madrugada dessas deve ser cansativo”. “A gente trabalha pelo rádio”, explicou o motorista. “Às vezes fico em casa. Tenho dois rádios, um na sala. Dependendo da chamada, se eu vejo que tem segurança, eu aviso a Central e pego a corrida”. “Ah, entendi”. O homem olhou pela janela, viu um ou outro vulto encapotado apressando-se pelas faixas de pedestres. O cansaço do dia começou a bater e ele entrecerrou os olhos, abriu-os de novo. O motorista percebeu pelo retrovisor. “Fim de um dia de trabalho, não é?” O homem deu um sorriso que lhe entortou a boca. “Trabalho propriamente não. Diversão”. O motorista riu de leve: “Bom, sem querer ser indiscreto, vai ver que o sr. estava lá em Madame Dora.” O homem riu também: “É isso mesmo, conhece o lugar?” “Pego corridas de lá às vezes. É um lugar bem discreto. Andaram fechando umas casas como essas, mas a de Dora continua bem frequentada”. O homem bocejou, espreguiçou-se, recostou-se com os olhos fechados: “Rapaz, tem uma ruiva com um par de pernas... Ave Maria. Só estou voltando pra casa porque minha mulher é um porre. É passar uma noite fora e Dona Encrenca pega no meu pé uma semana. Devia era morrer logo e me deixar em paz.” O motorista ficou calado, depois disse, com leveza: “É, a gente pensa essas coisas de vez em quando”. O outro não respondeu. O carro começou a subir uma ladeira de terra, trepidando, balançando-se. O passageiro abriu com dificuldade os olhos. “Ei,”, disse ele, “isso aqui é o antigo curtume, não é esse o caminho”. O motorista replicou, tranquilo: “É um atalho. Só eu conheço.” O homem afundou-se no banco e ainda conseguiu murmurar: “OK, vá em frente, você é que é o taxista”. “Só nas horas vagas”, disse o outro. “O que eu sou mesmo é taxidermista”. O passageiro já estava roncando, roncava como quem se despede da vida.