Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 25 de maio de 2010
2081) Meus personagens (8.11.2009)
Sob um sol de rachar em São Paulo, às 16h, eu caminhava subindo a Bela Cintra. Ao parar num sinal olhei para dentro do boteco ao lado. Lugar mambembe, moscas, luzes fluorescentes. Mesas de fórmica, quase todas vazias. Numa delas, um homem de meia idade, num terno elegante, aparência abatida, palitava os dentes diante de um prato agora vazio. Reconheci-o: era um personagem meu, Ambrósio Ramos. Cinquenta e seis anos, desempregado, procura trabalho como um louco antes que a mulher desconfie do que está acontecendo. Foi despedido de uma multinacional onde ganhava 30 mil por mês e gastava 40. Desde janeiro está na rua.
É um guerreiro. Degustador de bons vinhos, só o faz agora em casa, enquanto dura a adega. Na rua, quando vai levar currículo de escritório em escritório, almoça um PF com guaraná. Não tem como pedir à esposa que gaste menos. Prefere a morte. Na verdade, no momento em que meus olhos cruzaram com os seus, percebi a serena certeza que o invadia, e a terrível resolução. Não havia outro caminho. Afastei os olhos, angustiado. Virei na direção da Haddock Lobo, fiz algumas compras na Bella Paulista (minha padaria favorita) e voltei devagar.
Ao passar por lá olhei de novo, e tive uma surpresa. Uma bela mulata, de vestido curto, estampado, estava sentada na mesa de frente para ele. Ela tomava um chope e ele uma água mineral. Os dois sorriam, animados... Como pude me confundir tanto? Ele é Ronald Seedorf, jornalista holandês de passagem por Sampa. Marcou encontro com uma “escort” ali, o bar mais próximo do hotel em que se hospedava. Queria conversar, quebrar o gelo, para que quando chegassem ao elegante saguão das suítes já houvesse entre os dois o confortável misto de intimidade e curiosidade que precede o sexo. Ronald escreve sobre economia e finanças. Conhece o Brasil há anos, e adora as mulheres brasileiras. Acha que são coquetes sem artificialismo, conseguem ser sensuais e alegres ao mesmo tempo (ao contrário das holandesas), conversam sem receio sobre qualquer assunto, mesmo que não entendam...
Vou descendo a rua e paro numa sorveteria. Peço um de maracujá com amora. Fico me deliciando, e, quando estou no final, quem vejo? O casal desce a rua e pára bem ali, fazendo sinal para um táxi. Entreouço frases cordiais de despedida, um aperto de mão cordial mas distante, ela entra sozinha no banco de trás... Agora entendi quem é ele. Chama-se Pepe Borriello, mora em Curitiba, e é o sogro dela. A mulata trabalha numa entidade ambiental, casou com o filho dele há um ano. Ele lhe trouxe recados e alguma pequena encomenda; ela marcou o encontro ali. Ele escreve ficção científica nas horas vagas (é dentista) e vai embora devagar, imaginando um planeta em que a pele das pessoas muda de cor de acordo com seu estado de espírito, de modo que elas são negras quando estão dançando e se divertindo, e brancas quando estão sonhando com a dor e a felicidade alheias.
2080) Penny Drive (7.11.2009)
A música dos Beatles nunca foi divulgada eletronicamente através dos I-Pods que existem por aí devido a uma pendenga judicial entre os quatro cabeludos e a Apple, de Steve Jobs. Ao que parece, os Beatles, que nos anos 1960 fundaram a gravadora/selo/loja Apple, não gostaram nem um pouco quando o americano escolheu o mesmo nome para sua empresa de informática. Houve um certo bate-boca, um conflito jurídico, de modo que a Apple dos EUA nunca teve o direito de comercializar as canções do quarteto.
Agora, os jornais anunciam que no próximo dia 7 de dezembro a Apple Corps (dos Beatles) e a EMI Music colocarão no mercado toda a obra dos Beatles num pen-drive especial, para o qual sugiro o nome de Penny Drive. Pena que esta coluna não seja ilustrada, mas quando eu postar este artigo no meu blog colocarei a foto da belezinha: uma pequena maçã verde com um talo que, uma vez puxado para fora, traz consigo a entrada USB para ser plugada no computador. A engenhoca tem 16 Giga de memória, totalmente preenchida, segundo os jornais, com todas as canções (remasterizadas) gravadas pelos Beatles, todos os elementos visuais dos discos originais (capas, fotos, encartes, textos de contracapa, fichas técnicas) e 13 mini-documentários sobre a gravação dos discos, traçando uma pequena história dos oito anos de carreira do quarteto. O material está dotado de uma interface que permite executar tudo tanto num PC quanto num Mac.
A Apple Corps anuncia que “discussões relativas à distribuição digital do catálogo dos Beatles continuam em curso”, o que parece significar que a briga com a Apple americana continua. O preço do pen-drive não foi anunciado, mas em dezembro serão colocadas no mercado britânico 30 mil unidades, o que me parece uma gota no oceano, mesmo que o preço (ainda não divulgado) seja exorbitante. A vantagem de vender produtos dos Beatles é que, embora haja um imenso contingente de jovens que o adoram, o “núcleo duro” desse mercado é formado por cinquentões como eu, muitos dos quais numa situação financeira que lhes permite comprar até mesmo aparas das unhas de Ringo, se forem oferecidas no mercado.
No filme Homens de Preto, alguém mostra uma tecnologia alienígena revolucionária para reproduzir áudio, e o personagem de Tommy Lee Jones suspira e diz: “Lá vou eu comprar o Álbum Branco de novo”. O sujeito que gosta de uma obra musical não resiste a escutá-la através de novos recursos. Quando ouvi os discos dos Beatles pela primeira vez em CD, vi que não eram as mesmas músicas. Depois de 20 anos escutando o som analógico dos elepês, meu ouvido foi surpreendido por músicas remixadas em que um instrumento que antes era bem baixinho passava a se sobressair, enquanto outros quase desapareciam. A divisão dos canais estéreo também produzia um efeito que minhas modestas radiolazinhas de outrora não alcançavam: nunca ouvi tão bem os vocais de acompanhamento. Que venha o Penny Drive, e as novas descobertas.
2079) O jeito certo de dizer (6.11.2009)
Sempre que eu me hospedava em hotéis, costumava me referir ao número do meu quarto como um número qualquer: “Estou no quinhentos e três”, ou “No mil duzentos e um”. Depois percebi que muitos recepcionistas, mensageiros, arrumadeiras, etc., dizem esses números de maneira diferente: “cinco zero três” ou “doze zero um”. É um modo mais objetivo de dizer, porque menciona primeiro o andar e depois o número do quarto. Quando dizemos números de telefone, por exemplo, costumamos enunciar dígito por dígito: “Meu telefone é três três dois sete, quatro um nove três”. Dizemos assim porque basta informar ao interlocutor quais os algarismos que ele precisa acionar para falar conosco. Mas já vi gente que dizia assim; “Meu telefone é três mil, trezentos e vinte e sete, quatro mil, cento e noventa e três”. É uma enunciação absurda, porque é mais complicada, e na verdade não estamos nos referindo a um número contável, e sim a uma mera sucessão de dígitos isolados. Mas tem pessoas que se acostumam a ler todo número como se fosse a expressão de uma quantidade em dezenas, centenas, milhares...
Para sabermos o jeito certo de dizer as coisas, basta prestar atenção às pessoas que estão envolvidas mais de perto com aquilo. Passei anos assistindo a TV Record de São Paulo (que se pronuncia “recór”, à maneira francesa), e quando comecei a traduzir livros para a Editora Record do Rio demorei um pouco a perceber que, lá, o nome da editora se pronuncia “récor”, à maneira inglesa. Quando digo o jeito certo não quero dizer que o outro esteja errado, mas que, no interior de um grupo, define-se um modo de dizer que se torna o padrão. Esse padrão se impõe pela repetição, pelo maior alcance de quem usa um desses formatos. Quando surgiram no Brasil as Organizações Não-Governamentais, as ONGs, no Rio de Janeiro pronunciava-se “Ó-ene-gê” e em São Paulo “Ôngue”. Arrisco-me a dizer que depois da conferência Rio-92 (Eco-92), a pronúncia paulista se impôs em nossa televisão e daí para o resto das pessoas.
Algo parecido ocorreu com a Aids logo que apareceu. Ninguém sabia se era palavra masculina ou feminina, e ninguém se definia por uma pronúncia à maneira inglesa ou abrasileirada. Assim, durante anos em nossas rádios e TVs conviveram quatro pronúncias diferentes para se referir à doença: a áids, a êids, o áids e o êids. A primeira delas acabou se impondo. O mesmo vale para certas siglas criadas pela imprensa. Os fãs de ficção científica no Brasil chamam o gênero de FC (éfe-cê), e nos países de língua inglesa de SF (“éss-éff”). A imprensa criou e popularizou o rótulo “sci-fi” (“sái-fái”), fazendo referência à sigla “hi-fi” (“high-fidelity”, usada para qualificar os discos de vinil dos anos 1950). Nos EUA, costuma-se dizer que só quem usa “sci-fi” é quem é de fora do fandom, do universo dos fãs do gênero, e que basta alguém usar o termo “sci-fi” para ser identificado como um visitante, alguém que ainda não aprendeu o jeito certo de dizer.
2078) O perigo do pensamento positivo (5.11.2009)
Um artigo de Barbara Ehrenreich (publicado no New York Times e reproduzido em seu blog) vem corroborar uma série de diagnósticos sobre a recente crise dos 4 trilhões de dólares.
Como se sabe, investidores (= “indivíduos que investem em cima do dinheiro alheio como gatos investem em cima de ratos”) no mercado imobiliário norte-americano passaram anos financiando imóveis em condições “irresistíveis” para pessoas que não podiam pagar por eles. Isso era visto como um incentivo à compra da casa própria, como uma ajuda a populações de baixa renda, um trabalho social, etc. Acontece que as pessoas começaram a não pagar e os investidores começaram a falir.
Já falei aqui sobre a influência do café nesse processo, como droga euforizante (“O capitalismo e a Starbucks”, 15.11.2008).
O artigo de Ms Ehrenreich fala do efeito deletério do pensamento positivo, essa praga que arruína o mundo dizendo no ouvido das pessoas: “Todos os seus desejos serão realizados, basta querer”.
Diz ela que existe na cultura americana um esforço generalizado, que vai desde programas de TV a pastores de igreja, desde estratégias de mercado até livros de auto-ajuda, levando as pessoas a “acreditarem que elas irão conseguir o que querem, não apenas porque isso as fará sentir-se melhor, mas porque pensar positivamente nas coisas, visualizá-las, ardentemente, com concentração, fará com que elas aconteçam”. É o bom e velho otimismo norte-americano erigido em força mágica.
Ela prossegue:
“Todo mundo sabe que você só consegue um emprego que pague mais de 15 dólares a hora se for uma pessoa positiva, uma pessoa livre de dúvidas, sem visão crítica, e sorridente. (...) Os livros nos aeroportos gritam contra o negativismo e advertem o leitor a ser otimista o tempo inteiro, cheio de confiança. As empresas reforçam isto proporcionando aos seus funcionários palestras motivacionais cheias de histeria”.
É algo entranhado na cultura dos EUA, essa crença maníaca de que não apenas as coisas podem dar certo, mas darão certo mesmo, se quisermos pra valer.
Daí, segundo Ehrenheich, que “ninguém estava psicologicamente preparado para tempos duros, quando eles chegaram, porque, de acordo com as premissas do pensamento positivo, pensar em problemas é atraí-los”.
E toda essa bolha de trilhões de dólares era administrada por “uma nova classe de bilionários e centi-milionários que moram em Lear-Jets e se hospedam em hotéis de milhares de dólares a noite, e que podem mandar um avião particular comprar seu vinho preferido ou trazer o animal de estimação que deixaram para trás”.
Isto quer dizer que devemos ser derrotistas, lúgubres, medrosos? De jeito nenhum. Essa é a burrice equivalente no extremo oposto. Mas não tenho dúvidas de que a economia mundial entrou nesta crise devido, em grande parte, a essa crença absurda de que basta querer para conseguir, de que nossos desejos existem para serem satisfeitos, se os desejarmos com força suficiente.
2077) Os melhores movimentos de câmara (4.11.2009)
(A Arca Russa)
O saite FilmCritc (www.filmcritic.com) gosta de fazer aquelas listinhas dos “dez melhores” a respeito de tudo. Bom passatempo para a gente lembrar filmes vistos há muitos anos, e também para dar mais atenção a detalhes que às vezes passam despercebidos.
A lista dos “Dez Melhores Movimentos de Câmara do Cinema” me fez parar antes de ler e tentar fazer minha própria lista. O problema com essas listas é que alguns elementos são tão esmagadoramente óbvios que acabam aparecendo em todas.
Duvido que na lista do FilmCritic não apareça a sequência inicial de A Marca da Maldade de Orson Welles, um complexo travelling percorrendo numerosos ambientes e enquadrando numerosos atores durante um atentado a bomba, e a sequência final de O Passageiro: Profissão Repórter de Antonioni, em que a câmara literalmente atravessa uma janela gradeada e sai de dentro de uma casa.
Há um filme de Hitchcock cujo nome agora me escapa e que mostra à distância um avião voando serenamente entre as nuvens; a câmara (que supomos estar noutro avião que voa ao lado) se aproxima dele, chega a uma janela, atravessa-a, e em seguida segue pelo corredor do avião, mostrando os passageiros em suas poltronas.
De Hitchcock lembro também o arrepiante recuo da câmara em Frenesi, quando o criminoso ataca a moça e a câmara recua, sai do apartamento, sai do corredor, sai do prédio e estaciona na rua, por entre os ruídos pacatos do trânsito, e só nós sabemos o que está acontecendo por trás daquelas paredes.
Duvido que apareça na lista do FilmCritic algum dos impressionantes movimentos de câmara na mão executados por Dib Lufti em Os Deuses e os Mortos (1970) de Ruy Guerra. Dib empunhava uma das câmaras 35mm daquela época, enormes e pesadas. Há uma cena em que dois sujeitos brigam de faca dentro de uma casa: um deles foge pulando a janela, o perseguidor vai atrás, e Dib pula a janela também de câmara em punho, sem tremer a imagem e sem perder o enquadramento.
Fui consultar o saite, e dos que citei eles lembram apenas o de Orson Welles. A abertura de O Jogador de Robert Altman também é citada, mas faz tempo que vi esse filme e não me lembro dessa longo travelling da sequência inicial (agora vou ter que ir na locadora, pegar, olhar, ver o filme todo até o fim, porque é bom demais...).
O travelling gerou a estética do plano-sequência e gerou inclusive os filmes-sequência, em que não há cortes, como o Festim Diabólico de Hitchcock, A Arca Russa de Alexander Sokurov (2002) e o recente filme brasileiro Ainda orangotangos de Gustavo Spolidoro (2007).
O que há de mais fascinante nisso é que essa estética abre mão de uma das coisas mais dinâmicas que o cinema tem, que é justamente a montagem, o corte, o picote, a justaposição, o ping-pong de imagens. O travelling longo ou plano-sequência se assemelha àqueles textos literários sem ponto nem pausa, como o monólogo de Molly Bloom no Ulisses ou as Galáxias de Haroldo de Campos.
2076) A literatura e o jogo (3.11.2009)
Num artigo na revista eletrônica Salon (http://tinyurl.com/mwo2sy), D. A. Blyler comenta os vícios de pessoas criativas (bebida, drogas, etc.) e a certa altura discute a questão de jogo. Será que o vício de jogar prejudica a criatividade de escritores e outros artistas? Curiosamente, parece que o jogo (baralho, dados, roleta, etc.) vem perdendo terreno para outros vícios. Cem anos atrás, era tido como um dos principais “fatores de desagregação da sociedade”. Hoje em dia, critica-se a proliferação dos bingos, das máquinas caça-níqueis, etc., mas apenas em termos da formação de quadrilhas e da desonestidade do jogo em si (as máquinas são preparadas para que o usuário sempre perca, etc.). Mas o jogo como vício do indivíduo vem perdendo terreno. Conheço gente viciada em bebida, em drogas, numa porção de coisas, mas não lembro de nenhum conhecido meu que seja viciado em jogos de azar.
Já foi diferente, e acho que na literatura o maior exemplo de gênio viciado em jogo foi Dostoiévski. Dizem que seu romance O Jogador é o melhor retrato literário desse universo soturno, à meia-luz, saturado de café e cigarros. O jogo produz uma droga biológica chamada norepinefrina. É um desses casos curiosos em que a droga viciante não é ingerida pelo viciado, é produzida pelo seu próprio organismo desde que o viciado se submeta a esta ou aquela atividade. (Vejam artigo “O Jogador”, de 13.5.2003, em meu blog: http://tinyurl.com/yguo4r2).
Blyler cita um cruel provérbio francês que diz bem do caráter precipicial dessa atividade: “Existem dois prazeres no jogo: o de ganhar e o de perder”. E a frase da Mark Twain (que, pelo visto, era chegado a um carteado): “Existem dois momentos na vida de um homem em que ele deve apostar tudo: quando pode, e quando não pode”. Blyler discute o lado positivo de “ter mentalidade de jogador”, e cita como exemplo elogiável o caso (que não sei se é verdadeiro) do jovem Steven Spielberg, que teria se infiltrado num estúdio de Hollywood, montado um escritório e começado a se comportar como se fosse funcionário do estúdio, começando assim uma carreira de sucesso.
Isso, no entanto, pra mim não conta. É um lance de ousadia profissional, talvez ligeiramente criminoso (“falsidade ideológica”?...), mas na selva de Hollywood vale quase tudo. Jogo, pra mim, é jogo-de-mesa. Aquilo que fez o filósofo Diderot dizer: “O mundo é a casa dos fortes. Nunca saberei, senão no fim, o que perdi ou ganhei neste lugar, neste vasto cassino onde passei mais de 60 anos, copo na mão, chacoalhando os dados”. O jogo serve como atividade lúdico-masoquista, e também como metáfora da condição humana. Sempre estamos jogando, ou seja, depositando todos os nossos esforços em ações sempre sujeitas ao Acaso, ao Improvável, à combinação de variáveis que raramente podemos prever e mais raramente ainda podemos controlar. Um lance de dados nunca abolirá o Acaso, mas, como dizia Fritz Leiber: “gonna roll the bones!”.
2075) Universos tangenciais (1.11.2009)
Quando acordou, estava subindo ao longo de uma escada cujos degraus eram tábuas, às quais seus dedos machucados mal podiam se apegar. Entre os degraus ele via a parede que estava escalando, e que parecia feita de cascalho solto. A luz das estrelas lhe dava apenas uma vaga noção de onde se agarrar; passou-se algum tempo antes que ele percebesse que os degraus pareciam estar transversalmente presos a duas barras de ferro luzidias. Experimentou uma delas com a mão, e sentiu-a vibrar, sentiu que ela trepidava numa vibração contínua e crescente. Aos poucos uma luz pareceu vir do alto, enquanto a vibração da escada aumentava a ponto de se comunicar aos seus próprios ossos, quando ele tentava aferrar-se ainda mais aos degraus. Olhando para cima, ele viu que a escada que escalava perdia-se numa altura indefinida mas que por ela vinha descendo rumo a ele uma imensa locomotiva fumegante com um facho de luz à frente.
Acordou com um arquejo de horror e espanto. Estava sentado num gramado à beira de um rio manso. Da água emergia uma jovem loura e alva, quase nua se não fosse pelo vestido diáfano, ensopado, que se colava ao corpo. Ela o avistou e caminhou para ele, os cabelos gotejantes, enquanto ele observava os seios miúdos e firmes, o movimento seguro dos quadris. Ela ajoelhou-se ao lado dele e acariciou-lhe os cabelos, enquanto gotas dágua lhe corriam pelo rosto. Ele ergueu a mão e segurou na mão dela. Uma corrente de milhares de volts atravessou-lhe o corpo, fritando-o com a temperatura do Sol, e despertando-o.
Ao abrir os olhos, estava na cama de um quarto de hotel barato: o único móvel que podia avistar da cama era uma cômoda desconjuntada de madeira, com um espelho oval, uma bacia de metal e uma toalha dobrada. Sentou-se na cama e percebeu que estava vestindo apenas um par de calções frouxos, de pano ordinário, que nunca tinha visto. Levantou-se com dificuldade e foi até o espelho. Não era um espelho: era uma vidraça oval que dava para um poço de elevador, onde ele via os cabos metálicos subindo de um lado e descendo de outro. Um elevador parou bem à sua frente, as portas abriram-se para os lados, e ele gritou ao ver lá dentro um homem de macacão azul, com um machado enterrado no crânio, estendendo as mãos para ele. E acordou.
Abriu os olhos e percebeu que estava num vasto descampado coberto de neve; vestia casaco espesso, luvas enormes, cachecol, gorro protegendo a cabeça. A neve se estendia à sua frente, lisa, intocada, e ele percebeu que estava andando de costas, como se a certa altura de uma caminhada tivesse decidido retroceder. Seus pés pousavam sobre as pegadas às suas costas e, mal se erguiam do chão, deixavam ali a neve intacta. A certa altura, escorregou, caiu, e acordou. Estava empunhando um jornal, percorrendo com os olhos uma coluna compacta de texto escrito, e agora seus olhos estavam chegando às últimas linhas.
2074) “The Graveyard Book” (31.10.2009)
Este livro de Neil Gaiman andou ganhando prêmios importantes (Hugo, Locus, Newbery) e se não me engano é o seu primeiro romance para “jovens adultos” (um termo inglês que acho preferível a “infanto-juvenil”) depois do ótimo Coraline, que resultou inclusive num bom filme.
The Graveyard Book, ambientado numa cidade inglesa qualquer, começa com a chacina noturna de uma família inteira: pai, mãe e filha pequena. Há um bebê de um ano e meio que, por distração do criminoso e conveniência do autor, sai do berço ao ouvir o barulho, caminha pela casa, vê a porta da frente aberta e sai caminhando na direção do cemitério que fica na esquina. Ali é acolhido pelos fantasmas dos mortos, que o protegem do assassino no momento em que este, precisando “terminar o serviço” segue o bebê até o Campo Santo. O garoto recebe o nome de Nobody Owens e daí em diante é criado pelos fantasmas.
Neil Gaiman é uma espécie de Stephen King com todas as qualidades deste e sem alguns dos defeitos (a morbidez excessiva, e alguns recursos de enredo muito “crus” herdados da pulp fiction). The Graveyard Book é a crônica do crescimento de Nobody Owens, ou “Bod” e das aventuras que ele vive no cemitério e fora dele.
Gaiman afirma ter se inspirado no Livro da Jângal de Kipling, a história de Mowgli, o menino criado na floresta pelos lobos. Isto não me ocorreu durante a leitura, mas, em retrospecto, dá para ver as semelhanças. Em Kipling, temos uma humanização dos animais, cujas emoções e valores morais são semelhantes aos nossos. No Graveyard Book todos os fantasmas são humanos, mas são de épocas diferentes: do tempo dos celtas, dos romanos, da Idade Média, etc.
O mundo de Neil Gaiman tem uma linha direta de diálogo com os contos de Ray Bradbury em obras como O País de Outubro e Uma Estranha Família. Não são propriamente histórias de terror, porque seu objetivo não é aterrorizar. São crônicas nostálgicas, humorísticas, ou emotivas, que têm lugar em ambientes ocupados por fantasmas, vampiros, ogres, lobisomens, etc. Como as obras de Bradbury, as de Neil Gaiman podem ser lidas tanto por garotos quanto por adultos, pela finura de sua observação, pela simplicidade e elegância do estilo, pela imaginação incessante que desencava surpresas a toda hora.
Outro paralelo que pode ser feito é com os filmes de Tim Burton, principalmente Edward Mãos de Tesoura, Beetlejuice, O Estranho Mundo de Jack e A Noiva Cadáver. Gaiman e Burton compartilham essa zona crepuscular da imaginação em que crianças convivem com medo mas sem traumas por entre esqueletos, vampiros, bruxas, lobisomens, fantasmas.
Ninguém é tão vulnerável ao terror quanto uma criança, para quem tudo é real e qualquer coisa é possível. Não há crianças cientistas, marxistas, agnósticas. Toda criança é um homem primitivo para quem um cemitério é um lugar tão fervilhante de vida quanto a rua por onde caminha, a escola onde estuda. Toda criança é uma casa mal assombrada.
2073) U-2 no YouTube (30.10.2009)
Era mais de meia-noite; dei uma olhada no Facebook e havia este post lacônico de uma amiga minha: “Fazendo hora para ver o show do U-2 ao vivo pelo YouTube”. Pensei que era uma brincadeira movida a trocadilho, mas havia um link, e fui lá. Abri a página, cliquei no link do streaming e fiquei no aguardo. Daí a pouco surgiram na tela Bono, The Edge e os outros descendo da van, do lado de fora do estádio, sendo recebidos por uma equipe de segurança... Tudo isso intercalado com imagens do interior do estádio, uma multidão indócil e bem-humorada. A imagem em alta definição era de tal natureza que se houvesse algum amigo meu na platéia eu poderia reconhecê-lo quando a grua passava em voo rasante por cima da turba.
Resumindo: das 2 às 4 da manhã assisti o show do U-2 em tempo real no Rose Bowl californiano, o mesmo estádio onde o Brasil foi campeão em 94 quando Baggio chutou o pênalte por cima da trave de Taffarel. E vi com uma imagem muito melhor do que a da TV da minha sala, logo eu que uso um monitor LG bem furreca; e um som que (graças aos fones de ouvido) eu pude botar bem alto sem inquietar o sono dos vizinhos, e curtir uma reprodução com ótima nitidez, permitindo-me escutar os harmônicos sutis da guitarra de The Edge e as complicadas e firmes linhas-de-baixo de Adam Clayton.
O cenário gigantesco foi chamado pelos seus criadores de A Garra (The Claw) mas Bono o chamou de A Estação Espacial (confira aqui essa beleza arquitetônica, coleguinha: http://tinyurl.com/yghz75o). Antigamente, se a gente desse 10 passos prum lado, perdia o som, perdia o retorno, perdia tudo. Hoje, o U-2 se espalha ao longo de passarelas, os membros da banda chegam a ficar 100m de distância um do outro e tudo flui. A tecnologia expande a platéia globo afora, espalha a banda por um perímetro impensável.
Os mais blasés farão um muxoxo e dirão: ora, amigo, então nunca viste um show ao vivo? Direi que sim, inclusive do próprio U-2 quanto tocou em São Paulo. Mas uma coisa é ver um show que está sendo retransmitido pela TV aberta para todo o país, algo a que é quase impossível fugir, crivado de comerciais chatos. Mas um show no YouTube necessita de um ato de volição, de uma decisão de procurá-lo, acessá-lo, assisti-lo. Torna-se algo mais intensamente coletivo justamente por ser seletivo. Naquele instante, eu não estava compartilhando meu prazer com 50 milhões de desinformados bocejantes. Quem estava ligado ali, no mundo inteiro, é porque gostava da banda. Egoísmo? Elitismo? Acho que não. Apenas um esprit-de-corps meio cineclubístico, de quem diz: “Somos só nós, alguns milhões de nós, vendo o que nós gostamos”. Variedade de oferta e possibilidade de opção são o lado bom do Capitalismo. Daqui a algum tempo, veremos apenas o que quisermos ver, porque os canais serão muitos, as ofertas serão muitas, eu e o mundo poderemos ver em tempo real The Decemberists tocando para 500 pessoas num teatro universitário de Seattle ou de East Lansing.
2072) Os ideogramas mitológicos (29.10.2009)
A história das religiões e das mitologias pode ser vista como um alfabeto de símbolos, os quais em si mesmos já são complexos, e quando se articulam uns aos outros geram possibilidades infinitas de interpretação. Um símbolo mitológico não é algo simples e uno como uma letra do nosso alfabeto, que só significa a si mesma. Seria mais parecido com um ideograma japonês, que é um desenho composto de desenhos menores, cada qual significando uma coisa diferente, e o sentido geral do ideograma é maior que a soma dos sentidos isolados de cada um. O exemplo clássico, muito citado nos manuais, é o do ideograma que significa “vermelho”, o qual é composto de quatro ideogramas menores que indicam “rosa”, “cereja”, “ferrugem” e “flamingo”. Vendo estes quatro ideogramas justapostos, todos eles sugerindo imagens que incluem a cor vermelha, podemos deduzir o significado geral do conjunto.
Indagado sobre o título de seu romance O Nome da Rosa, visto que nenhuma rosa é mencionada com destaque no livro inteiro, Umberto Eco ponderou que a Rosa é um símbolo universal, que pode significar a vida, o renascimento, a mulher, a paixão, a efemeridade, a beleza... É uma imagem com muitas facetas, e cada uma delas poderia ser associada ou contrastada àquela narrativa de crimes, mosteiros, livros clássicos, ascetismo, luxúria, transcendência espiritual e morte. Esta é a função de um símbolo: poder ser lido de formas diferentes, quando justaposto a coisas diferentes ou enxertado em contextos diferentes. Alguém dirá: “Ora, então qualquer coisa pode ser símbolo”, e eu concordo. Um ferro-de-engomar pode ser um símbolo, uma jaca pode ser um símbolo, um acento circunflexo, um cadarço de tênis, uma rolha de garrafa, uma verruga, um cágado. O que acontece é que, por motivos variados, alguns símbolos produzem leituras mais ricas e mais complexas do que outros.
O mesmo se dá com formas geométricas, que se prestam a mil associações. Um triângulo pode ser Deus: por ser uma figura de três lados ou três angulos, representa a Santíssima Trindade. Também pode ser uma imagem erótica – um triângulo com a ponta para baixo representa (pelo menos pra mim) o púbis feminino. Pode ser um símbolo do plano, da superfície, por ser a menor figura possível com apenas duas dimensões. Pode ser um símbolo do Infinito, se o virmos como uma verticalização do ponto-de-fuga de um desenho em perspectiva: a base é onde estamos, a ponta é o horizonte remoto para onde parecem convergir as paralelas. E assim por diante.
O que a linguagem poética, iconográfica, etc. tem feito é promover combinações diferentes desses materiais. Osman Lins utilizou A Espiral e O Quadrado como base para seu livro Avalovara. Que obras (de qualquer tipo) resultariam, por exemplo, da junção entre As Asas e O Quadrado? Ou entre O Labirinto e A Nuvem? Ou entre O Relógio, A Esfera e O Crocodilo? As possibilidades, como sempre, são infinitas.
2071) A maldição da France Télécom (28.10.2009)
Desde o começo de 2008 que a France Télécom, uma das principais empresas de telecomunicação da Europa, está sendo varrida por uma onda de mortes que parecem brotar de um livro de Dan Brown. Eu ia dizendo “um livro de Georges Simenon” por proximidade linguística, mas Simenon era um escritor realista da velha cepa, e o que está acontecendo na FT parece mais o produto da imaginação hiperbólica de um autor de pulp fiction, como Dan Brown indubitavelmente é.
Um jornal português resumiu assim a situação, dias atrás: “A France Telecom anunciou ontem a suspensão do programa de reestruturação da empresa, depois de 25 trabalhadores se terem suicidado no último ano e meio. As mortes terão resultado da pressão a que estiveram sujeitos enquanto decorria o plano de reestruturação agora adiado. De acordo com um porta-voz da empresa citado pelo Times, cerca de 10 mil trabalhadores mudaram de posto de trabalho nos últimos três anos. Na semana passada houve uma tentativa de suicídio e um outro consumado por um engenheiro de 48 anos, que se enforcou em casa. De baixa médica há mais de um mês, o trabalhador deixou uma nota onde culpava o ambiente de trabalho pelo seu ato”. Os métodos mais usados pelos suicidas têm sido tomar pílulas para dormir, enforcar-se e saltar da janela do escritório.
Os leitores mais perspicazes desta coluna já terão notado que sou inimigo-a-ferro-e-fogo do Capitalismo Predatório, o espírito maligno que a cada século crava mais fundo seus caninos na jugular do mundo. O capitalismo “tout court” até que não é tão infernal assim, é apenas um deserto artificial, criado por firmas terceirizadas que exploram a concessão dos oásis. Mas o Capitalismo Predatório é um game em que algumas dezenas de executivos, enclausurados em seus bunkers nas coberturas das torres de vidros, manipulam organogramas, projetos, cronogramas, fluxos de caixa e outros números e conceitos abstratos, reduzindo aqui, ampliando acolá, minimizando custos à esquerda e projetando lucros à direita, cada qual querendo pontuar mais, performar melhor. Quanto aos seres humanos cujas vidas serão postas de pernas-pro-ar por essas medidas, eles não estão nem aí.
Os executivos da FT dizem que estatisticamente esta número de suicídios está dentro da média da população, e que muitos foram motivados por problemas pessoais, e não profissionais (embora vários suicidas tenham deixado bilhetes onde dizem claramente que se matam por pressões no ambiente de trabalho). A FT foi privatizada em 1997 e desde então tem passado por um drástico “enxugamento” para torná-la mais competitiva e lucrativa. Foi instalado um novo gerenciamento “cuja primeira preocupação é o lucro e a produtividade”, queixam-se os sindicatos. E desde então só tem feito crescer o número das pessoas que rabiscam num papel “prefiro morrer e deixar meus filhos órfãos do que trabalhar aqui”, e pulam.
2070) “Berro Novo” (27.10.2009)
O novo livro-CD de poemas de Jessier Quirino (para o qual, como Van Gogh, contribuí com uma orelha) amplia com mais uma robusta ala a Casa Grande poética que o arquiteto de Itabaiana vem construindo para o poeta de Campina morar. Jessier absorveu o que a poesia matuta anterior a ele tinha para oferecer, mas dentro dela foi abrindo novas veredas, criando modelos, impondo um jeito personalizado de ver e de dizer as coisas. Não é um poeta matuto como foi Zé da Luz, assim como João Bosco não é um sambista como foi Cartola.
A contracapa do livro traz um saboroso poema que ilustra bem minha tese: “Deu um vento na Serra do Araripe / que entronxou uma igreja no Japão / e, por falta de padre e de beato, / vei de lá com a molesta feito o cão: / derrubou as muralhas lá da China / levantou um poeirão em Bagdá / se enfiou num esgoto no Catar / foi sair no quintal da longitude / estourou um bueiro em Roliúde / que até hoje tá dando o que falar: / foi uma moça querendo se esquivar / de mostrar a caçola e os possuído: / Marilyn Monroe agarrada com o vestido / e o vestido danado a se enfunar.”
Os temas de um poeta, matuto ou desmatuto, são todas as coisas que fazem parte de sua vida, tudo com que ele entra em contato e que lhe sugerem uma constelação de palavras carregadas de sonoridade e de significados, que é meio-caminho-andado para a produção de um poema. Um crítico purista diria que um poeta matuto não pode escrever sobre Marilyn Monroe porque ela não pertence ao seu mundo, e talvez citasse precedentes de poetas que jamais escreveram sobre estrelas do cinema. Jessier Quirino, impérvio a essas discussões, escreve sobre as coisas que vê e os lugares onde vai, e nisso talvez esteja mais próximo dos cordelistas e dos repentistas, para os quais nenhum assunto é vedado.
Jessier é o rei do símile, ao lado de Raymond Chandler, e cada página nos dá de graça um exemplo de flash concreto transformado em paralelo abstrato: “mais descansado do que caranguejo almoçando”, “tranquilo que só jumento em sombra de igreja”, “devagar que só enterro de viúva rica”. Atenção para o símile não-auto-explicativo, aquele que elimina o adjetivo ou advérbio inicial e recorre apenas à imagem, para que o leitor faça sua própria comparação. É o caso de “saiu que nem uma vaca acuada de cachorro”, que para mim evoca a imagem de uma criatura pesadona perseguida por uma mais leve, e que sai bamboleando, meio aos tropeções, sabendo que não pode fugir mas fugindo.
Lá pela cozinha do livro, a seção “Gaveta de Bugiganga” traz pequenas definições irretocáveis como “Cauby Peixoto é um dos maiores Frank Sinatras do Brasil”, sugestões cívicas (“Retirar as poltronas giratórias do parlamento e trocar por tamboretes. Vá lá que o cabra não faça nada, mas ficar encostado e rodando já é demais!”) e fascinantes sinopses como “História do padre tatuado na virilha que esqueceu o celular no motel e engoliu a lente de contato misturado com um Engov”. Aí a coisa desembesta.