Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 25 de maio de 2010
2070) “Berro Novo” (27.10.2009)
O novo livro-CD de poemas de Jessier Quirino (para o qual, como Van Gogh, contribuí com uma orelha) amplia com mais uma robusta ala a Casa Grande poética que o arquiteto de Itabaiana vem construindo para o poeta de Campina morar. Jessier absorveu o que a poesia matuta anterior a ele tinha para oferecer, mas dentro dela foi abrindo novas veredas, criando modelos, impondo um jeito personalizado de ver e de dizer as coisas. Não é um poeta matuto como foi Zé da Luz, assim como João Bosco não é um sambista como foi Cartola.
A contracapa do livro traz um saboroso poema que ilustra bem minha tese: “Deu um vento na Serra do Araripe / que entronxou uma igreja no Japão / e, por falta de padre e de beato, / vei de lá com a molesta feito o cão: / derrubou as muralhas lá da China / levantou um poeirão em Bagdá / se enfiou num esgoto no Catar / foi sair no quintal da longitude / estourou um bueiro em Roliúde / que até hoje tá dando o que falar: / foi uma moça querendo se esquivar / de mostrar a caçola e os possuído: / Marilyn Monroe agarrada com o vestido / e o vestido danado a se enfunar.”
Os temas de um poeta, matuto ou desmatuto, são todas as coisas que fazem parte de sua vida, tudo com que ele entra em contato e que lhe sugerem uma constelação de palavras carregadas de sonoridade e de significados, que é meio-caminho-andado para a produção de um poema. Um crítico purista diria que um poeta matuto não pode escrever sobre Marilyn Monroe porque ela não pertence ao seu mundo, e talvez citasse precedentes de poetas que jamais escreveram sobre estrelas do cinema. Jessier Quirino, impérvio a essas discussões, escreve sobre as coisas que vê e os lugares onde vai, e nisso talvez esteja mais próximo dos cordelistas e dos repentistas, para os quais nenhum assunto é vedado.
Jessier é o rei do símile, ao lado de Raymond Chandler, e cada página nos dá de graça um exemplo de flash concreto transformado em paralelo abstrato: “mais descansado do que caranguejo almoçando”, “tranquilo que só jumento em sombra de igreja”, “devagar que só enterro de viúva rica”. Atenção para o símile não-auto-explicativo, aquele que elimina o adjetivo ou advérbio inicial e recorre apenas à imagem, para que o leitor faça sua própria comparação. É o caso de “saiu que nem uma vaca acuada de cachorro”, que para mim evoca a imagem de uma criatura pesadona perseguida por uma mais leve, e que sai bamboleando, meio aos tropeções, sabendo que não pode fugir mas fugindo.
Lá pela cozinha do livro, a seção “Gaveta de Bugiganga” traz pequenas definições irretocáveis como “Cauby Peixoto é um dos maiores Frank Sinatras do Brasil”, sugestões cívicas (“Retirar as poltronas giratórias do parlamento e trocar por tamboretes. Vá lá que o cabra não faça nada, mas ficar encostado e rodando já é demais!”) e fascinantes sinopses como “História do padre tatuado na virilha que esqueceu o celular no motel e engoliu a lente de contato misturado com um Engov”. Aí a coisa desembesta.
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