Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 21 de fevereiro de 2010
1685) Machado: “Ex Cathedra” (6.8.2008)
O Brasil comemora o centenário da morte de Machado de Assis, com seminários, conferências e reedições que não acabam mais. Resolvi contribuir com esse debate comentando alguns contos do autor de Brás Cubas. Não direi que são os seus melhores contos, mas como a crítica só fala num punhadozinho deles (“Missa do Galo”, “Noite de Almirante”, etc.) vou falar nos que guardo na memória afetiva desde que comecei a ler Machado, por volta dos dez anos de idade.
Por exemplo, “Ex Cathedra”, um contozinho insignificante pelo qual sempre tive o maior carinho. É a história do Dr. Fulgêncio, um homem meio aluado que vive entre os livros e para os livros, numa chácara da Tijuca, com sua afilhada, Caetaninha, de catorze anos. Melhor dizendo, é a história de Caetaninha, que adora o padrinho e as mucamas, mas algo lhe falta até o dia em que à porta da chácara apeia-se um rapaz órfão, da idade dela. Raimundo é sobrinho do doutor, instala-se na chácara e na vida dos dois.
Caetaninha vivia só, raramente descia à cidade: “Quando via passar na estrada uma cavalgada de homens e senhoras, punha a alma na garupa dos animais, e deixava-a ir com eles, ficando-lhe o corpo ao pé do padrinho que continuava a ler.” Os dois jovens ficam inseparáveis, e o Dr. Fulgêncio cisma em casá-los. Para tanto, põe-se a preparar um curso explicando-lhes as razões físicas e metafísicas do amor. Faz isto com a autoridade intelectual de quem redigiu por iniciativa própria uma constituição para a Turquia (que enviou ao ministro inglês) e de outra feita dedicou-se a estudar a anatomia dos olhos para saber se eles podiam ver de fato (concluiu que sim).
O Dr. Fulgêncio ensina o amor aos jovens pelo método “ab ovo”, principiando com a descrição do Universo. As aulas aproximam ainda mais Raimundo e Caetaninha. “Enquanto o velho falava, reto, lógico, vagaroso, curtido de fórmulas, com os olhos fixos em parte nenhuma, os dois alunos faziam trinta mil esforços para escutá-lo, mas vinham trinta mil incidentes distraí-los”. Os meses se passam, os dois passam a sentir emoções que não compreendem. “Para a semana,” pensa o doutor, “entro na organização das sociedades; todo o mês que vem e o outro é para a definição e a classificação das paixões; em maio, passaremos ao amor... já será tempo...”
Esse é o penúltimo parágrafo do conto, porque no último registra-se o primeiro beijo do casal, testemunhado por algumas lagartas, um marimbondo e um gafanhoto que passavam pelo terraço da chácara. Nada acontece de memorável no conto, como aliás na maioria dos contos de Machado. Tudo está no jeito de dizer, nas comparações, da descrição dos movimentos dos olhos dos personagens, na escolha das palavras, que têm sempre uma carga afetiva maior que sua carga denotativa, imediata. E na tensão (que é a da conto inteiro) entre um intelecto, que tudo quer compreender e explicar, e uma imaginação desejante, que dele se desprende e alça vôo.
1684) O regional e o universal (5.8.2008)
(Árido Movie, de Lírio Ferreira)
A literatura nordestina tem que ser literatura regional? Depende. “Literatura regional” deve ser uma literatura que fale da região, exprima o que é característico (embora não exclusivo) daquela região.
Não é preciso reproduzir o que fizeram José Lins do Rêgo, Graciliano, Rachel de Queiroz, etc. A região mudou. Literatura regional não é apenas falar da cana-de-açúcar, dos cangaceiros ou dos beatos.
Nosso regionalismo de hoje poderia falar de transplante e comércio clandestino de órgãos, algo que ocorre muito no Nordeste.
Ou prostituição infantil; ou o cultivo da maconha. Poderia falar do fato de que condomínios inteiros, terrenos imensos na orla marítima estão sendo vendidos para investidores estrangeiros.
Poderia falar da ação das igrejas evangélicas; da invasão dos DVDs piratas, das lan-houses, dos cybercafés nas cidades e vilas do Sertão.
Poderia falar da destruição de sítios arqueológicos por causa da exploração das mineradoras.
Essas mudanças sociais estão gerando histórias, conflitos, dramas humanos, fortes emoções.
Regional é o que retrata o visível, o imediato, o que está à nossa volta, o aqui-e-agora da nossa experiência direta como nordestinos. O interesse desse tipo de literatura é poder mostrar experiências humanas que são típicas de um grupo social: o dia-a-dia de um criador de cabras na Paraíba, de um esquimó no Alasca, de um agricultor no Cáucaso, de um missionário em Uganda, de um pescador no Mar do Norte.
O regionalismo é sempre descritivo, demonstrativo, quer mostrar algo que os outros talvez não conheçam. Muitas vezes é lido e admirado apenas pelo que tem de exótico. Muitas vezes fica na história da literatura, não pelo que tem de literário, mas pelo que tem de etnográfico, de documental.
Quem aprofunda os personagens, os conflitos psicológicos, sociais, econômicos, etc., torna-se universal. O “universal” é algo profundo, como um lençol de petróleo. Obras superficiais não o alcançam. O universal está dentro das pessoas, é o conflito humano, que é basicamente o mesmo; é o “inconsciente coletivo”, são os medos, os desejos.
Superficial é quando você descreve um cangaceiro ou um agricultor que são meras figuras, que agem de forma previsível, convencional; são “cangaceiros” entre aspas, “lavradores” entre aspas.
Se você projeta num personagem desses tudo que você sabe sobre o ser humano, ele pode se tornar tão universal quanto um personagem de Shakespeare ou de Balzac.
Machado de Assis é um ótimo exemplo de autor regional que atingiu, por ser profundo, uma dimensão universal. Toda a obra literária de Machado ocorre numa região limitada, num raio de algumas dezenas de quilômetros quadrados, na cidade do Rio de Janeiro. Só sai desse âmbito para descrever lugares exóticos e imaginários.
Machado é tão regional quanto José Lins do Rego. E ambos são universais, porque foram fundo nos personagens e nas histórias contadas, não se limitaram a descrever as coisas de fora.
1683) Os movimentos literários (3.8.2008)
Os movimentos literários podem surgir de várias maneiras. Existem os movimentos programáticos, produto de um grupo de pessoas que vivem em estreita convivência, geralmente têm um líder, colaboram intensamente uns com os outros, e atuam na imprensa através de manifestos, declarações públicas, editoriais (quando publicam revistas), etc. E existem movimentos totalmente diversos: são reconstituídos anos depois por historiadores e críticos, que descobrem, “a posteriori”, traços em comum nas obras de autores que na melhor das hipóteses só se conheciam indiretamente, mas não tinham nenhuma atividade coordenada, coletiva.
Talvez caiba uma distinção entre “escola” e “movimento”. Uma escola seria uma forma coletiva de fazer literatura, praticada à distância por autores que se relacionam de maneira indireta. Aprendem uns com os outros, mas as suas descobertas se dão através de uma rede de influências recíprocas, sem haver uma militância propriamente dita. Certas formas de narrar ou de escrever ganham evidências, e novos autores passam a adotá-las por que se identificam com elas, ou pela admiração que sentem pelos autores que as praticam, ou porque acham que participar daquela “nova onda” ajudará a torná-los conhecidos. Os motivos são vários, mas uma escola é basicamente um conjunto de influências indiretas, e de natureza majoritariamente literária. Seria o caso do Realismo, do Romantismo, etc.
Já um “movimento” pressupõe algo mais ativo, mais dinâmico, mais interligado. Autores que fazem parte de um movimento entram em contato direto, tornam-se amigos, freqüentam a casa uns dos outros ou freqüentam os mesmos ambientes (bares, restaurantes, clubes, festas, academias, etc.). Essa mistura entre o literário e o pessoal exige deles um envolvimento maior, e eles passam a ter uma ação que só pode ser descrita como política. Entram de maneira organizada e consciente na política literária: deflagram polêmicas através da imprensa, pressionam editores a publicar suas obras, defendem-se dos ataques dos críticos, redigem e publicam manifestos coletivos, e, principalmente, fazem tudo isto sob a égide de um nome: o Surrealismo, o Nouveau Roman, a Poesia Concreta, o Modernismo, a Ficção Científica...
O corolário disto é que movimentos podem ser criados artificialmente, escolas não. Um editor interessado na produção de certo tipo de literatura pode investir pesadamente em uma dúzia de autores, inclusive fornecendo-lhes (ou incentivando-os a criar por conta própria) um rótulo, um manifesto, uma plataforma estética e ideológica... A criação da ficção científica nos anos 1920-1940 teve algo deste espírito, mas, curiosamente, o que movia esses editores (Hugo Gernsback, John W. Campbell, Horace L. Gold) era menos o interesse comercial do que o sonho futurista de influenciar a mentalidade de uma população. Esses editores, Campbell principalmente, acreditavam no vôo espacial, por exemplo, e usaram os jovens autores que os cercavam (Asimov, Heinlein, etc.) como os profetas de um movimento que ainda hoje não se esgotou.
1682) Nós, ou seja, eu mesmo (2.8.2008)
Reclamam às vezes da minha disposição em meter o chanfalho em diversas categorias de pessoas: os políticos, os militares, os jogadores de futebol, e assim por diante. Defendo-me dessas acusações com o mais nobre dos argumentos, a liberdade de expressão, e com o mais acessível deles, a obrigação de escrever todo dia.
Nós, escritores... nós, brasileiros... nós, os homens... Tudo isto são os plurais humildes, de uso obrigatório por quem tem equilíbrio moral para exercer a crítica.
Isto nada tem a ver com o chamado “plural majestático” com que os reis se auto-referem; “Nós consideramos que, para o bem do império...” O plural monárquico sempre me pareceu muito mais chique do que trono, coroa e cetro. Os reis sempre se referem a si próprios no plural, como se fossem uma Santíssima Trindade da tradição bíblica, ou uma Tríade da ficção científica.
Por outro lado, o irreverente Mark Twain disse certa vez: “O uso do plural majestático só deveria ser permitido aos reis, aos presidentes, aos editores, e às pessoas que hospedam uma solitária na barriga”.
Mas a exceção que defendo é a de quando estamos fazendo uma crítica a uma categoria inteira. Porque incluindo a si mesmo nessa categoria o crítico deixa claro que não está legislando em causa própria, não está salvando a própria pele.
Além disso, tenho que aduzir um elemento que não sei se é sempre perceptível ao leitor: em geral, eu me incluo nas críticas que eu próprio faço. Por exemplo: “Nós, nordestinos, não valorizamos o forró pé-de-serra...” Embora acreditando que eu, sim, o valorizo, incluo-me na crítica porque provavelmente eu poderia fazer pelo forró pé-de-serra muito mais do que faço, e portanto tenho que colocar em mim uma das numerosas carapuças que estou distribuindo.
Criticar os outros é mais fácil do que criticar um grupo do qual nós mesmos fazemos parte. Em contrapartida, criticar nosso próprio grupo é muito mais útil, porque estamos contribuindo para melhorá-lo, ao passo que criticar um grupo adversário ou distante não parece render os mesmos dividendos.
Diz-se que certa vez alguém disse uma graçola diante da Rainha Vitória, e a comandante do império britânico retrucou: “Nós não achamos graça alguma”. Não há dúvida de que a rotunda soberana se considerava a encarnação viva da Inglaterra.
Ninguém mais, para o escritor do Mississipi, poderia considerar-se plural a esse ponto. E ele está muito certo. Quem mais pode falar de si próprio usando o “nós”? Um esquizofrênico? Um par de irmãos siameses?
Incluir-se no grupo dos criticados deixa bem claro que o objetivo da crítica não é dizer “eu estou certo, vocês estão errados”. E sim, numa crítica que se preza, dizer: “Existe o certo, que é um ideal ao qual todos nós aspiramos, e existe o nosso modo de agir, que pode ser aperfeiçoado para que possamos todos chegar lá”. É a única crítica que vale a pena fazer.
1681) “Encarnação do Demônio” (1.8.2008)
Fui à pré-estréia carioca deste novo filme de José Mojica Marins, o retorno triunfal de Zé do Caixão, que nos anos 1960 foi o grande personagem do nosso filme B de terror com filmes como À Meia Noite Levarei Sua Alma (1963), Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967), O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1967) e outros. Perseguido pela censura e pela igreja, Zé do Caixão dividia a crítica. Uns o achavam violento, tosco, de mau gosto. Outros (como Glauber Rocha) o consideravam um talento bruto, bem brasileiro, e com aquilo que Borges chamava de “fulgor satânico”.
Mojica fez inúmeros filmes menores na Boca do Lixo paulistana, inclusive filmes pornô. Participou como ator de filmes alheios (como no extraordinário, e esquecido, O Profeta da Fome de Maurice Capovilla) e agora retorna de forma triunfal. O projeto de Encarnação do Demônio existia há mais de quarenta anos, antes mesmo do nascimento de seus atuais produtores, Paulo Sacramento e Fabiano Gullane, como eles lembraram antes da sessão.
O filme de Mojica tem de tudo: câmaras de tortura, terreiros de macumba, chacina policial, rituais violentos que nada devem a Hannibal Lecter ou ao Massacre da Serra Elétrica. Neste sentido, a evolução técnica e a produção cara (1,8 milhão de reais, quando o próprio Mojica confessa que teria feito o filme com 120 mil) deixam o filme mais parecido com os filmes de terror norte-americanos de hoje e menos parecidos com os filmes toscos, desajeitados, mas visceralmente pessoais, que Mojica fazia. Em 1970, não havia ninguém no Brasil cujo cinema parecesse com o dele. Hoje, continua a não haver, mas seu filme corre paralelo ao cinema de terror “gory” que enche hoje as nossas telas.
O lado positivo dessa mudança é que os antigos filmes de Zé do Caixão eram uma espécie de viagem pessoal, delírio particular do cineasta. Trechos deles aparecem em “Encarnação do Demônio”: em preto-e-branco, mostrando um Mojica jovem, magrinho, de barba preta. Era o tempo em que Zé do Caixão sentava à janela, vendo passar a procissão da Sexta-Feira Santa e devorando um blasfemo pedaço de galinha. Seu filme atual, contudo, está visceralmente misturado à violência e ao terror de São Paulo: crianças que cheiram cola, policiais que fuzilam favelados, garotas góticas que freqüentam cemitérios. Os filmes de Mojica nos anos 1960 eram contemporâneos dos porões da tortura na ditadura militar; o filme de hoje tem o seu próprio porão de tortura, no meio de uma favela miserável onde Zé do Caixão vive seu pesadelo de super-homem maligno.
As cenas de violência são para espectadores de estômago forte. Outras cenas insólitas mostram o talento selvagem do diretor, como a cena da mulher enforcada num galho de árvore que abre os olhos, volta à vida, corta a corda com uma faca e cai de pé, para perseguir Zé do Caixão. Uma imagem de pesadelo, mais forte que as cenas de tortura, e típica da imaginação “uncanny” de Mojica.