domingo, 21 de fevereiro de 2010

1684) O regional e o universal (5.8.2008)





(Árido Movie, de Lírio Ferreira)

A literatura nordestina tem que ser literatura regional? Depende. “Literatura regional” deve ser uma literatura que fale da região, exprima o que é característico (embora não exclusivo) daquela região. 

Não é preciso reproduzir o que fizeram José Lins do Rêgo, Graciliano, Rachel de Queiroz, etc. A região mudou. Literatura regional não é apenas falar da cana-de-açúcar, dos cangaceiros ou dos beatos.

Nosso regionalismo de hoje poderia falar de transplante e comércio clandestino de órgãos, algo que ocorre muito no Nordeste.  

Ou prostituição infantil; ou o cultivo da maconha. Poderia falar do fato de que condomínios inteiros, terrenos imensos na orla marítima estão sendo vendidos para investidores estrangeiros. 

Poderia falar da ação das igrejas evangélicas; da invasão dos DVDs piratas, das lan-houses, dos cybercafés nas cidades e vilas do Sertão. 

Poderia falar da destruição de sítios arqueológicos por causa da exploração das mineradoras.
  
Essas mudanças sociais estão gerando histórias, conflitos, dramas humanos, fortes emoções.

Regional é o que retrata o visível, o imediato, o que está à nossa volta, o aqui-e-agora da nossa experiência direta como nordestinos. O interesse desse tipo de literatura é poder mostrar experiências humanas que são típicas de um grupo social: o dia-a-dia de um criador de cabras na Paraíba, de um esquimó no Alasca, de um agricultor no Cáucaso, de um missionário em Uganda, de um pescador no Mar do Norte. 

O regionalismo é sempre descritivo, demonstrativo, quer mostrar algo que os outros talvez não conheçam. Muitas vezes é lido e admirado apenas pelo que tem de exótico. Muitas vezes fica na história da literatura, não pelo que tem de literário, mas pelo que tem de etnográfico, de documental.

Quem aprofunda os personagens, os conflitos psicológicos, sociais, econômicos, etc., torna-se universal. O “universal” é algo profundo, como um lençol de petróleo. Obras superficiais não o alcançam. O universal está dentro das pessoas, é o conflito humano, que é basicamente o mesmo; é o “inconsciente coletivo”, são os medos, os desejos. 

Superficial é quando você descreve um cangaceiro ou um agricultor que são meras figuras, que agem de forma previsível, convencional; são “cangaceiros” entre aspas, “lavradores” entre aspas. 

Se você projeta num personagem desses tudo que você sabe sobre o ser humano, ele pode se tornar tão universal quanto um personagem de Shakespeare ou de Balzac.

Machado de Assis é um ótimo exemplo de autor regional que atingiu, por ser profundo, uma dimensão universal. Toda a obra literária de Machado ocorre numa região limitada, num raio de algumas dezenas de quilômetros quadrados, na cidade do Rio de Janeiro. Só sai desse âmbito para descrever lugares exóticos e imaginários. 

Machado é tão regional quanto José Lins do Rego. E ambos são universais, porque foram fundo nos personagens e nas histórias contadas, não se limitaram a descrever as coisas de fora.





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