domingo, 21 de fevereiro de 2010

1682) Nós, ou seja, eu mesmo (2.8.2008)





Reclamam às vezes da minha disposição em meter o chanfalho em diversas categorias de pessoas: os políticos, os militares, os jogadores de futebol, e assim por diante. Defendo-me dessas acusações com o mais nobre dos argumentos, a liberdade de expressão, e com o mais acessível deles, a obrigação de escrever todo dia.
 
Nós, escritores... nós, brasileiros... nós, os homens... Tudo isto são os plurais humildes, de uso obrigatório por quem tem equilíbrio moral para exercer a crítica. 


Isto nada tem a ver com o chamado “plural majestático” com que os reis se auto-referem; “Nós consideramos que, para o bem do império...” O plural monárquico sempre me pareceu muito mais chique do que trono, coroa e cetro. Os reis sempre se referem a si próprios no plural, como se fossem uma Santíssima Trindade da tradição bíblica, ou uma Tríade da ficção científica. 


Por outro lado, o irreverente Mark Twain disse certa vez: “O uso do plural majestático só deveria ser permitido aos reis, aos presidentes, aos editores, e às pessoas que hospedam uma solitária na barriga”. 


Mas a exceção que defendo é a de quando estamos fazendo uma crítica a uma categoria inteira. Porque incluindo a si mesmo nessa categoria o crítico deixa claro que não está legislando em causa própria, não está salvando a própria pele. 


Além disso, tenho que aduzir um elemento que não sei se é sempre perceptível ao leitor: em geral, eu me incluo nas críticas que eu próprio faço. Por exemplo: “Nós, nordestinos, não valorizamos o forró pé-de-serra...” Embora acreditando que eu, sim, o valorizo, incluo-me na crítica porque provavelmente eu poderia fazer pelo forró pé-de-serra muito mais do que faço, e portanto tenho que colocar em mim uma das numerosas carapuças que estou distribuindo.


Criticar os outros é mais fácil do que criticar um grupo do qual nós mesmos fazemos parte. Em contrapartida, criticar nosso próprio grupo é muito mais útil, porque estamos contribuindo para melhorá-lo, ao passo que criticar um grupo adversário ou distante não parece render os mesmos dividendos.


Diz-se que certa vez alguém disse uma graçola diante da Rainha Vitória, e a comandante do império britânico retrucou: “Nós não achamos graça alguma”. Não há dúvida de que a rotunda soberana se considerava a encarnação viva da Inglaterra.


Ninguém mais, para o escritor do Mississipi, poderia considerar-se plural a esse ponto. E ele está muito certo. Quem mais pode falar de si próprio usando o “nós”? Um esquizofrênico? Um par de irmãos siameses?


Incluir-se no grupo dos criticados deixa bem claro que o objetivo da crítica não é dizer “eu estou certo, vocês estão errados”. E sim, numa crítica que se preza, dizer: “Existe o certo, que é um ideal ao qual todos nós aspiramos, e existe o nosso modo de agir, que pode ser aperfeiçoado para que possamos todos chegar lá”. É a única crítica que vale a pena fazer.







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