domingo, 21 de fevereiro de 2010

1685) Machado: “Ex Cathedra” (6.8.2008)



O Brasil comemora o centenário da morte de Machado de Assis, com seminários, conferências e reedições que não acabam mais. Resolvi contribuir com esse debate comentando alguns contos do autor de Brás Cubas. Não direi que são os seus melhores contos, mas como a crítica só fala num punhadozinho deles (“Missa do Galo”, “Noite de Almirante”, etc.) vou falar nos que guardo na memória afetiva desde que comecei a ler Machado, por volta dos dez anos de idade.

Por exemplo, “Ex Cathedra”, um contozinho insignificante pelo qual sempre tive o maior carinho. É a história do Dr. Fulgêncio, um homem meio aluado que vive entre os livros e para os livros, numa chácara da Tijuca, com sua afilhada, Caetaninha, de catorze anos. Melhor dizendo, é a história de Caetaninha, que adora o padrinho e as mucamas, mas algo lhe falta até o dia em que à porta da chácara apeia-se um rapaz órfão, da idade dela. Raimundo é sobrinho do doutor, instala-se na chácara e na vida dos dois.

Caetaninha vivia só, raramente descia à cidade: “Quando via passar na estrada uma cavalgada de homens e senhoras, punha a alma na garupa dos animais, e deixava-a ir com eles, ficando-lhe o corpo ao pé do padrinho que continuava a ler.” Os dois jovens ficam inseparáveis, e o Dr. Fulgêncio cisma em casá-los. Para tanto, põe-se a preparar um curso explicando-lhes as razões físicas e metafísicas do amor. Faz isto com a autoridade intelectual de quem redigiu por iniciativa própria uma constituição para a Turquia (que enviou ao ministro inglês) e de outra feita dedicou-se a estudar a anatomia dos olhos para saber se eles podiam ver de fato (concluiu que sim).

O Dr. Fulgêncio ensina o amor aos jovens pelo método “ab ovo”, principiando com a descrição do Universo. As aulas aproximam ainda mais Raimundo e Caetaninha. “Enquanto o velho falava, reto, lógico, vagaroso, curtido de fórmulas, com os olhos fixos em parte nenhuma, os dois alunos faziam trinta mil esforços para escutá-lo, mas vinham trinta mil incidentes distraí-los”. Os meses se passam, os dois passam a sentir emoções que não compreendem. “Para a semana,” pensa o doutor, “entro na organização das sociedades; todo o mês que vem e o outro é para a definição e a classificação das paixões; em maio, passaremos ao amor... já será tempo...”

Esse é o penúltimo parágrafo do conto, porque no último registra-se o primeiro beijo do casal, testemunhado por algumas lagartas, um marimbondo e um gafanhoto que passavam pelo terraço da chácara. Nada acontece de memorável no conto, como aliás na maioria dos contos de Machado. Tudo está no jeito de dizer, nas comparações, da descrição dos movimentos dos olhos dos personagens, na escolha das palavras, que têm sempre uma carga afetiva maior que sua carga denotativa, imediata. E na tensão (que é a da conto inteiro) entre um intelecto, que tudo quer compreender e explicar, e uma imaginação desejante, que dele se desprende e alça vôo.

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